quarta-feira, 11 de julho de 2012

Um espectro




Carta a Murilo Medici Navarro da Cruz


Murilo,


Quando o nosso seminário foi suspenso sine die, eu confesso que estava cansado dos nossos impasses.  É verdade que eu sempre pensei que não importava muito onde iríamos chegar, desde que o percurso fosse bom, mas o labirinto de becos sem saída me aborrecia. Mais do que isso, ficou muito forte a impressão de “miséria da teoria” e não apenas da nossa teoria...

Já te contei que, como muitos latino-americanos católicos crescidos nos anos de chumbo, tive um breve namoro com a Teologia da Libertação então muito presente nas comunidades eclesiais de base. Minhas recordações dessa época são todas muito boas, mas a demanda de justiça social e de fraternidade não satisfazia meu desejo de entender os acontecimentos. Tudo o que eu sei é que rapidamente deslizei de Deus para o Mundo, que é o nome oficial do palco da História. Isso foi há trinta anos. Eu li a Contribuição à Crítica da Economia Política com o deslumbramento de uma revelação (então havia um método para apreender tanto o movimento histórico quanto a estrutura social!) e com uma ponta de desconfiança tanto teórica quanto prática, resultado da minha aversão ao comunismo soviético da era Brezhnev e ao tratamento dado ao movimento civil na Polônia.

Em 1983, ano do centenário da morte de Marx, o caminho para a Filosofia já estava traçado: eu queria desenvolver todas as ferramentas conceituais que permitissem entender a dinâmica das mudanças sociais nas sociedades ditas dependentes, como a nossa. Sinceramente achava que havia uma única chave que daria acesso à compreensão da crise econômica que o Brasil viveu nos anos 80 e da transição negociada entre poder militar e poder civil com alguma representação popular.

Para ficar à altura dessa tarefa, era preciso acompanhar a economia dos países capitalistas avançados (onde começava o processo de desregulamentação) e seguir os nexos de dependência com as economias latino-americanas fortemente estatizadas (e aqui o problema não era tanto a intervenção estatal na economia, da qual nossos empresários nunca reclamavam... o problema estava na natureza arcaica e autoritária do Estado – pelo menos é o que eu aprendi com o Cebrap).

Era preciso acompanhar também a filigrana das negociações políticas que conduziram à abertura e os percalços que adiaram a adoção de eleições diretas em todos os níveis. Ao mesmo tempo, o treinamento para filósofo exigia o estudo da história da filosofia através da leitura dos autores canônicos. Eu vivia num estado de apaixonada ilusão de onipotência própria dos adolescentes.

O início do curso de Filosofia em 1986 teve o efeito imediato de despertar-me do sono dogmático e do imperialismo teórico.  A insistência no rigor herdado da historiografia filosófica de Guéroult e Goldschimidt, com suas minúcias de close-reading, jogaram água nas minhas fantasias de teoria social. Reconheço a necessidade de rigor, mas esperneei o quanto pude contra o “Método” , como se dizia por antonomásia nos corredores do departamento. Mais tarde soube que quase todo mundo esperneava também, inclusive os professores.

Quando me tornei orientando de Oswaldo Porchat, sabia muito bem da sua reputação de professor exigente e de leitor rigoroso segundo o “Método”, do qual ele foi grande defensor e divulgador nos anos 60. Convivi com ele quase quatro anos naquela época em que os prazos do mestrado eram mais generosos. Foi nesse convívio que, finalmente, aprendi um pouco sobre o que é ser filósofo. Eu tinha um exemplo vivo bem diante dos meus olhos: abordagem rigorosa dos textos e dos problemas, argumentação precisa e pertinente, elaboração cautelosa das conclusões. Enfim, tudo o que se opõe à precipitação e à leviandade.

Ao terminar o mestrado, percebi que eu não queria ser filósofo. O convívio com Oswaldo Porchat reforçou em mim a sentença dura de David Hume: se um livro com pretensões teóricas não trata de lógica nem de empiria, então fora com ele!  Oswaldo Porchat me ensinou que uma atitude teórica que pretenda colocar o mundo vivido entre parênteses já começa mal. Mas, se a filosofia não tem mais o terreno privilegiado da vadiagem metafísica, se cabe apenas a estruturação da linguagem lógica e a observação e organização dos fenômenos, é melhor ir direto às ciências e deixar a filosofia como objeto de estudo de historiadores interessados naqueles indivíduos que ficavam se jogando contra os limites da linguagem, como moscas no vidro.

Então, no final dos anos 90, voltei ao meu ponto de partida, porque eu ainda precisava dar conta daquela antiga demanda por uma análise crítica das mudanças estruturais das sociedades capitalistas (centrais e periféricas). Na prática, isso implicava levar a literatura marxista a sério, mas os tempos eram outros e, como muitos, eu estava descrente.

Primeiro, pela debandada maciça dos intelectuais em direção ao polo liberal (seja a tradição do liberalismo político clássico, seja a tradição do liberalismo econômico de Hayek).   

Em segundo lugar, por causa das mudanças na perspectiva marxista. Num passado recente, os marxistas consideravam que a sociedade civil era apenas um nome que ocultava as desigualdades de classe no mundo organizado pelo poder violento e exploratório do capital. Por isso, o conceito de cidadania era motivo de derrisão. Mas a rejeição cada vez mais forte aos aspectos coletivistas do comunismo real levou a uma reavaliação positiva das minorias que reivindicam o reconhecimento de  seus direitos civis. As lutas pelo reconhecimento passaram a ser analisadas teoricamente pelos neomarxistas com ajuda da dialética hegeliana ressuscitada. A dialética do senhor e do escravo, que parecia ter sido superada pelas categorias econômicas materialistas de O Capital reapareceu como aspecto fundante do mundo social. Hegel retornou para colocar Marx de  ponta-cabeça!

Mas a dialética, Murilo! Como acreditar na dialética! Como aceitar que a mesma razão constituída no processo histórico seja capaz de aprendê-lo, colocando-se a cavaleiro do processo como se fosse o barão de Munchhausen? Como acreditar que haja pontos de vistas privilegiados que permitam vislumbrar a totalidade do processo? Como saber quais fenômenos fazem parte do processo histórico-social? Como aceitar acriticamente o próprio conceito de processo histórico-social, tão dependente de pressupostos iluministas e românticos, como o mito do progresso? São demasiados artigos de fé garantidos unicamente pela tradição e pela cara feia que fazem os próceres da esquerda quando alguém levanta o dedo para formular uma dúvida... A esquerda vigilante usa palavras como “reacionário” com a mesma finalidade purgativa com que a Igreja medieval falava em “hereges”.

O cético que sou suspende o juízo a respeito desses artigos de fé. O nietzschiano que há em mim se rebela e ri da promessa hegeliana de que as feridas do espírito se curarão a si mesmas, promessa que hoje faz parte do utopismo desavergonhadamente messiânico de certos autores que preveem tranquilamente o fim do capitalismo num futuro próximo indeterminado e acham que é preciso lutar para manter a esperança.  Como eu leio mais Spinoza do que Ernst Bloch, o princípio-esperança não é argumento que meu estômago aceite de bom grado, mas é a comida que se serve por aí nos bistrôs neomarxistas.

Quer dizer que nada se salva de Marx?

Eu aceito a tese de Karl Polanyi de que uma economia de mercado só é possível numa sociedade de mercado. Trata-se portanto de analisar a maneira como economia de mercado e sociedade de mercado se agenciam reciprocamente. Polanyi deu indicações preciosas que mostram que ainda cabe um exame das forças antagônicas que regem as relações sociais, dirigindo-as para interesses opostos mas não dissociáveis. Isso a tradição marxista fez muito bem.

Também me parece verdade que a análise do fetichismo da mercadoria e das metamorfoses do capital mostra que uma teoria social é possível, embora bem menos abrangente do que  gostaríamos. Talvez devamos nos contentar com a descrição das contradições objetivas que causam desequilíbrios sistêmicos e desistir da empreitada de desvendar as condições transcendentais de impossibilidade do capitalismo, na forma de tábuas de categorias corrompidas pela ontologia negativa do capital.

Tudo isso significa que voltei às minhas tentativas de teoria social?

Não. Isso tudo é o desfazer-se de uma ambição juvenil. À medida que envelhecemos, temos que jogar fora algumas ilusões para nos concentrarmos no que realmente está ao nosso alcance. Isto é um farewell ao livro com meu nome na capa que eu sonhava ver um dia traduzido e publicado pela editora Verso e transformado em mercadoria numa prateleira, ao lado daqueles autores-mercadorias que uma vez admirei.  Há quinze anos me despedi da filosofia, agora digo adeus à teoria social. Nada mais de Bouvard e Pécuchet: vou voltar ao meu livro sobre os subúrbios de São Paulo.

Quanto ao mais, um abraço pra Fabiana e pras meninas!




5 comentários:

  1. Apesar do texto estar na forma de carta, e portanto, estar endereçado, acho que as considerações atinentes à relação entre marxismo, filosofia, teoria social merecem uma melhor elaboração. Questões tão revelantes merecem um desenvolvimento mais cuidadoso. Abs. Anônimo.

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    1. Sr. Anônimo,

      É verdade que cada uma dessas questões mereceria desenvolvimento mais cuidadoso, mas acredito que as razões da minha demissão teórica ficarão mais evidentes, à medida em que eu for me explicando nas cartas.

      Por isso, humildemente eu o convido a acompanhar os textos deste blog, mas gostaria que o sr. ou sra. abandonasse o tom de professor universitário corrigindo trabalho de fim de semestre. Este é um espaço informal em que não cabe a atitude dos zelotas Fachmenschen.

      Um abraço e, mais uma vez, obrigado pelo comentário,

      V.

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  2. Caro,

    peço desculpas se o tom pareceu ofensivo - creio que a utilização da expressão "tom de professor universitário (...)" indica um incômodo (no meu entender, perfeitamente compreensível) com os intelectuais profissionais e seus "trejeitos". Sinceramente, não foi minha intenção arrotar uma erudição que não tenho e tampouco defender um modus operandi com o qual eu também me debato. O caráter informal do espaço é bastante evidente, se o ignorei no meu comentário não foi por distração, inépcia ou qualquer dificuldade cognitiva, mas sim porque o assunto de fato me interessou e fiquei curioso para ler o que o sr. pensa a respeito, arriscando-me assim a me meter a comentar uma carta que não era dirigida a mim.
    Humildemente também, peço desculpas mais uma vez e asseguro que não vou mais meter o bedelho onde não fui chamado justamente para evitar correr o risco de receber um rótulo que, honestamente, não busquei. Aguardo os próximos textos.
    Um abraço,

    Anônimo.

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  3. Sr. Anônimo,

    Dou por desfeito o mal-entendido e ficaria muito contente se você ficasse à vontade para fazer mais comentários apontando os problemas que lhe interessam. Se estiver a meu alcance, aceito desenvolvê-los nas próximas cartas.

    Como você viu, os assuntos que abordo nos meus textos recebem somente um tratamento provisório e um tanto minguado, já que sou apenas um amador bem-intencionado tentando lidar com questões difíceis que me obsedam há muito tempo.

    Escolhi a forma de cartas dirigidas a pessoas amigas porque sinto necessidade de ter um interlocutor conhecido, cujas objeções eu possa antecipar. É melhor do que desenhar rosto numa bola de vôlei e chamá-la de Wilson.

    A forma epistolar tem ainda a vantagem de me libertar da pesada obrigação de dar tratamento cabal e exaustivo aos vários temas. Minha prosa é digressiva e tenho gosto pelo fragmentário e pelo alusivo. Essas características me indispõem com a profissionalização exigida pela docência universitária, mas me dão a possibilidade de fazer alguns percursos teóricos off-road na companhia de pessoas de boa-fé.

    Meu único compromisso é que, brincalhonas ou sérias, minhas opiniões sejam pensadas. Tenho muito respeito pelos meus interlocutores, nomeados e anônimos, e quero muito ouvir o que eles tem a dizer, a fim de poder continuar pensando e dialogando.

    Um abraço de boas vindas,

    V.

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  4. Caro Valdir,
    Ler esta carta após estes anos da interrupção de nossos encontros é, primeiramente, um grande prazer, mas também, um oportunidade de pensar e organizar nossas discussões, o que parece ser seu objetivo nestas cartas: organizar pensamentos e impressões divididas com amigos. Aliás, a ideia é muito boa, pois me parece que, afinal, é isso que nos define.
    Mas, em relação à teoria social, tendo a concordar fortemente com você no mais geral de sua exposição. Quando nos encontrávamos, em 2007 e 2008, eu estava começando o meu afastamento da Universidade. Havia finalizado minha dissertação, na qual me dediquei bastante a entender o pensamento econômico de Marx. E depois de anos estudando o barbudo e alguns dos seus seguidores, restou-me uma impressão bastante esquisita e desconfortável.
    O materialismo parece fazer muito sentido, assim como a consideração da luta de classes, e mesmo de algo que parece ser o ponto de vista dialético. Quando, por exemplo, Marx faz sua crítica a Malthus, demonstrando que a superpopulação não é absoluta, mas sim relativa e que é um produto do desenvolvimento das forças produtivas sob o capital, mais do que, como dizia o inglês, da irresponsabilidade dos pobres bebedores de cerveja, bem, isso me parece um ponto de vista mais rico e elaborado.
    Também gosto bastante da colaboração do alemão ao nos falar do fetichismo da mercadoria. Desde que entendi esta perspectiva, ou seja, a de que as relações sociais entre pessoas se tornaram relações entre coisas e que esta transmutação parece apagar, aos olhos dos observadores, o percurso social pelo qual cada mercadoria veio ao mundo - desde então, acredito ter passado a possuir uma ferramenta de observação do mundo da qual não posso abrir mão.
    Mas sei que o materialismo dialético não se limita a estes pontos de vista renovados. Há nele uma pretensão sistemática. Há o objetivo de construir um edifício conceitual que explique a sociedade dita capitalista de cima a baixo, ou ao contrário, para nos mantermos no ponto de vista do materialismo que pôs o hegelianismo "de pé". E esta pretensão é que incomoda, porque me parece que deságua naquela discussão transcendental da qual você falou, a da teoria do valor e da dinâmica negativa do capital. Para o ceticismo, que compartilho com você, a imagem do sujeito-capital foi ficando cada vez mais estranha, distante e indesejável.
    Se a pretensão do materialismo era que voltássemos nosso olhar para as relações sociais, talvez seja preciso mesmo um olhar mais direto aos acontecimentos do varejo sócio-econômico e cultural que nos cerca. Isso não significa deixar de lado o marxismo e se bandear para a posição de um crítico deste, mas apenas se contentar com as contribuições que a teoria crítica pode nos dar nesse olhar, sem ficar dizendo "mas não é isso que está escrito n'O Capital...", como se este fosse um livro sagrado e o Marx nosso profeta.
    Neste sentido, para ir fechando este comentário também anti-twitter, ainda acho que vale a pena e faz sentido a consideração da filosofia. Como não fiz graduação nesta disciplina me sinto bem à vontade para me aproximar malandramente dos filósofos e seguir tentando me debater com os limites da linguagem. Até mesmo porque ainda acho que grande parte do que somos é linguagem e, por enquanto, é desta parte que eu quero tratar. É o que vem me interessando ultimamente. Será que já estou ficando velho? Esse é só o começo...?

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