domingo, 26 de agosto de 2012

Da Velhice






Carta a Ismael Fernandes de Andrade


Ismael,
 

Não se ofenda com a pergunta, mas quando é o momento de reconhecer que a velhice chegou?
 
Parece que a velhice só existe aos olhos dos outros. Dizemos que alguém está velho, que alguém parece velho. A consciência da nossa própria velhice só nos vem em momentos de depressão, como se contemplássemos – entre o espanto e a piedade - a ruína do que fomos. Hora em que se torna doloroso recordar das capacidades (reais ou imaginárias) que tínhamos. A velhice, vivida assim, é o recolhimento que se segue a uma grande derrota e tem pouco a ver com a idade. Há velhos prematuros, como há bebês prematuros.
 
Alguém poderia dizer que o envelhecimento é um processo natural que pode ser vivido com dignidade. A isso eu respondo que não é do envelhecimento que estou falando, mas da velhice: não da sucessão de pequenas perdas e mudanças às quais todos estamos sujeitos se temos uma vida longa, mas do estado de irreversibilidade: o estar definitivamente velho aos olhos de todos. Você consegue imaginar Ulysses Guimarães com 30 anos? E Papai Noel? Como ele era quando adolescente? A velhice congela a si mesma numa máscara eterna, como ensaio da máscara mortuária.
 
Até aceito que se possa enfrentar dignamente o processo de envelhecimento que começa. Acredito que é o que você e eu estamos fazendo. É possível até retardar o processo, prolongando uma aparência juvenil e apetecível, como Paula Toller, que fez 50 anos na semana que passou.
 
O que não me convence é que haja alguma dignidade em estar velho, em sentir-se velho, em ser visto como velho. A dignidade na velhice é normalmente associada a uma situação de saúde, posse de bens e reconhecimento público: ou seja, tudo o que afasta a pobreza, o esquecimento e a dependência vexatória. Fernanda Montenegro, Morgan Freeman e Oscar Niemeyer tem uma velhice “digna” nesse sentido burguês. Porém, quando aplicada aos velhos anônimos, dignidade  é somente um eufemismo para o autocontrole fatalista diante da perda da “eficiência” do corpo e da mente. Dignidade na velhice é saber não resmungar diante do  acúmulo de doenças e do ranger do organismo. Dignidade na velhice é o conformismo da carcaça. 

A dignidade é totalmente dispensável quando temos atributos melhores. Para que a dignidade quando se é vigoroso, ágil, atraente, pleno de esperanças de realização? Onde já se ouviu falar de dignidade na juventude? Toda essa bobagem melosa sobre a dignidade na velhice é, quando muito, o  prêmio de consolação que os mais jovens oferecem aos idosos, como se dissessem: Velho, você já trabalhou bastante, agora viva os dias que lhe restam em paz, pare de reclamar e deixe-me continuar minha vida.
 
A velhice é áspera e atroz. Aos 97 anos, minha avó sofre por causa de dores em todo corpo; sofre por não mais conseguir enfrentar um degrau de escada; sofre com a visão turva; sofre devido aos lapsos de sua memória que foi, outrora, proverbial na família. Ela sabia de cor o dia em que nasceu cada filho, cada neto e cada bisneto. Sabia o dia em que eu comecei a estudar na universidade!  Mas ela não se esqueceu do trabalho duro na roça, do choro doído de cada um dos filhos que morreu na infância, de todas as angústias da pobreza, de todas as humilhações sofridas e das ingratidões inesperadas.  E, mesmo assim, ela luta por cada pedaço de vida a que julga ter direito. Quase centenária, sua vida se reduziu a um poço estreito em que se pode apenas ouvir o ruído da água, quando uma pedra desaba e sobe o som cavo do fundo estagnado de tantos sofrimentos antigos. Há dignidade nisso? Se há, não vem da velhice, mas sim da mulher que existe ali.  Minha avó é digna a despeito da velhice. Diferentemente das garrafas de vinho, as pessoas não ganham valor ao envelhecer, elas apenas acumulam depósitos de mosto.
 
Quando se trata da velhice, assim como do câncer, ficamos delicados e cheios de dedos. Dizemos, a meia voz, que fulano – que não víamos há algum tempo – parece “envelhecido”. Quer dizer que percebemos os sinais da ferrugem que avança. O cantor Neil Young, de quem sou admirador antigo, sempre refletiu sobre o peso crescente da idade. Há muito tempo, ele já era o “velho” e sabia bem: rust never sleeps. Confesso que o assunto me interessa há muito tempo, refiro-me à gênese da ruína: a maneira como, antes de morrermos, temos várias mortes parciais: a das células que não se repõem, das memórias que se perdem, dos amigos que se vão, da consideração e do respeito alheio que se dissipam, do sentimento da nossa independência que se esfacela diante da necessidade de auxílio.
 
Meu amigo Roberto Pimentel, quando chegava aos setenta anos, costumava dizer que sabemos que estamos velhos quando ninguém mais se lembra de nossos pais. O mundo que amamos começa a morrer muito antes de nós. Há um ano, fiquei sabendo que meu melhor amigo da adolescência tinha morrido por causa de um tumor cerebral. Ao perdermos um amigo, deixamos de compartilhar uma área inteira de nossas memórias. O amigo que sobrevive é agora o portador solitário de uma experiência que morrerá com ele, como acontece com o último exemplar de uma espécie em extinção. É essa experiência de solidão do sobrevivente, que não pode mais compartilhar as suas memórias, que faz de alguém um velho.  O velho pode contar a sua vida quantas vezes quiser, mas ninguém comunga mais suas experiências porque o mundo em que elas faziam sentido se foi. Fica apenas a loquela que os mais jovens escutam por caridade ou por curiosidade histórica: as histórias do vovô expostas como peças do pequeno museu familiar.
 
Mesmo os amigos começam a sumir antes de morrerem de fato. Um amigo nosso está doente. Da última vez que lhe telefonei, ouvi uma voz fria e débil vinda de alguém que atravessa sozinho um longo corredor cinzento e não espera mais sair dele. Tomara que eu esteja enganado, mas parece que a velhice chegou para nosso amigo. Desabou bruta e forte como um temporal.  A depressão poderá ser remediada, mas não o sentir-se obsoleto, na constante ruminação das doçuras perdidas da vida. É a situação de segregação em que vive a maioria dos velhos, mesmo quando cercados por uma família amorosa. E ninguém me venha com o argumento de que muitos idosos são ativos e brilhantes. Eles são exceções assim como as crianças-prodígio e, na sua condição excepcional, não valem como modelos. Só acentuam, por contraste, a precariedade da velhice comum.
 
A velhice é particularmente cruel nas profissões que exigem o carisma de comunicador, como é o caso do nosso ofício de professores de cursinho pré-vestibular. À medida em que envelhece, o professor ganha experiência e compreensão, mas também se enrijece e fica intolerante com os hábitos dos jovens, que não compartilham mais o seu mundo, não importa quanto esforço ele faça para manter-se atual.  Nós vimos muitas vezes o que acontece em seguida: o professor velho e experiente, grande sucesso nos tempos idos, arrasta agora o seu carisma declinante, tentando animar os jovens alunos com piadas anacrônicas. Alguns fazem pior: tentam restaurar sua juventude pelo arremedo de gírias adolescentes colhidas aqui e ali e assumem o triste papel de teenagers caricatos, mas Machado de Assis tinha razão: o cabelo admite tintura, o coração não.

De qualquer maneira, o momento de parar chegará. Os professores de cursinho, em geral, lidam mal com a aposentadoria porque as salas de aula não são apenas meio de trabalho, mas instrumentos para a satisfação narcísica. Ninguém se torna professor de cursinho sem doses cavalares de narcisismo. Tanto o narcisismo no sentido comum de vaidade ou autopromoção, quanto o narcisismo no sentido dado por alguns psicanalistas: o narcisista só ama os outros na medida em que os outros confirmam e alimentam o amor que ele sente que merece ter. Os outros são apenas instrumentos para reforçar uma autoestima hesitante e sempre necessitada de homenagens e da atenção alheia.  Para obter esse amor, o narcisista – como vampiro de almas - está disposto a tudo: manipular, seduzir, trapacear, mimetizar os gostos daqueles que ele quer conquistar, inventar uma vida e uma cultura que ele não tem a fim de ser mais “interessante”.  Quantos desses talentosos Ripleys dividem conosco as salas de aulas dos cursinhos do Brasil?
 
Sem chegar a esses extremos, todos os professores de cursinho, como narcisistas que são, sofrem demais com o momento da aposentadoria. Eu imagino as almas desses velhos saudosistas, mesmo as almas dos que ainda estão de corpo presente, visitando à noite as salas de aulas vazias e escuras para “passar” os macetes e as dicas, enquanto esperam pela ovação barulhenta da turma, dando piscadelas  para  a menina bonita de saia curta, sentada na primeira fileira. E como eles gostam de repassar a crônica de suas conquistas, inclusive as amorosas, como aquele velho libertino, Giacomo Casanova.
 
Nosso amigo não era assim e gostava muito de rir disso. Um riso irônico e cínico, do qual eu tenho saudade e que procuro evocar e imitar para não deixá-lo desaparecer da minha memória.
 
Ainda não estamos velhos, mas meu mundo não é mais o dos meus alunos. Alguns de meus amigos já morreram, alguns de meus colegas mais queridos se afastam doentes. Quanto tempo se passará até que ninguém mais saiba o nome de meus pais? Como é que vai ser quando a velhice bater na minha porta (ou na aorta)?
 
Pois é. O nosso amigo está doente.  E fico triste por nós, que não podemos mais rir com ele, quando ainda há tanto do que rir.
 
Um abraço triste do seu velho amigo




domingo, 19 de agosto de 2012

O ofício e seu esqueleto




Carta a Nelson Akito Imagure  



Nelson,


Houve um ano em que parávamos todo sábado no posto da saída de São José dos Campos em direção a São Paulo. Éramos seis: Carlão, Robinson, Tião, Tomita, você e eu. As conversas variavam de acordo com o humor do grupo e dos casos da semana. Uma vez, depois de uma certa dose de álcool (os tempos eram outros...), começamos a dar palpite sobre o teorema da incompletude de Gödel. Acho que foi o Tião que puxou o assunto,  nem sei mais a propósito do que. Pouco importa. Vinte minutos depois, nós, os professores da área de Humanas - Carlão, Robinson e eu - tivemos que explicar que as matérias que lecionamos não se reduzem a uma série de interpretações subjetivas e arbitrárias. 

Apelei para a distinção, formulada por Edmund Husserl, entre rigor e exatidão nas ciências e, no calor da discussão e da euforia que o chopp traz, tomei a liberdade de parafraseá-la, incorporando inevitavelmente algumas das minhas obsessões sobre o assunto. O que eu disse foi mais ou menos isso:

As ciências exatas partem de um número relativamente pequeno de axiomas ou de parâmetros previamente definidos. Os problemas podem ser resolvidos através de algoritmos simples ou de procedimentos mais complexos. Alguns problemas podem ser difíceis e outros podem ser declarados insolúveis, mas quando se obtém um resultado, trata-se sempre de um resultado calculado, não um resultado adivinhado. 

As ciências humanas trabalham com um número maior de parâmetros, em geral não definidos previamente. O procedimento axiomático, embora não impossível, é pouco útil  para a maioria das pesquisas na área. O trabalho é em grande parte interpretativo, mas há regras gerais para uma boa interpretação. Ser objetivo nas ciências humanas não significa ser impessoal ou exato, mas sim aceitar as regras consensuais: buscar as fontes diretas, não forjar citações, comparar fontes diferentes, não aceitar uma única autoridade, justificar a discrepância da sua interpretação com as interpretações propostas por intérpretes reconhecidos etc. 

Agora ocorreu-me que tudo poderia ser resumido com uma analogia: os homens das ciências exatas são como construtores que trabalham com blocos regulares de tamanho padrão e sabem, de antemão, quantos deles serão necessários para levantar uma parede de certa altura e comprimento. Já os homens das ciências humanas são como construtores que vão erguer um muro rústico com pedras irregulares de vários tamanhos. Por isso, eles são incapazes de dizer de antemão quantas e quais pedras serão necessárias. A escolha de cada pedra depende de uma avaliação em que conta mais a experiência acumulada do que a definição explicita de parâmetros. Isso não impede, porém, que o muro seja sólido. Ele não foi construído com exatidão, mas com rigor, de maneira que, uma vez erguido, ele pode durar muito tempo. O construtor é capaz de explicar a posteriori as razões e motivos que o levaram a escolher esta ou aquela pedra, mas a verdade é que ele nem sabia que iria usá-las antes de começar a obra.

É por causa disso que, nas ciências humanas, especialmente aquelas que estudam a linguagem, fala-se tanto de analisar o “peso” das palavras: sua origem, seu uso, suas implicações. Pois é do “peso” de certas palavras que eu queria falar com você;  por exemplo, do “peso” da palavra que denomina o nosso principal local de trabalho: o cursinho. Não posso ter exatidão no que vou dizer, mas vou tentar ser rigoroso. 

Sempre me incomodou essa zona de sombras em que se encontram os cursinhos, do ponto de vista da sua posição no quadro educacional. Não há estatísticas oficiais sobre o número de alunos matriculados nos cursinhos pré-vestibulares do Brasil e de seu perfil sócio-econômico. Os poderes públicos fingem que os cursinhos não existem, o que é curioso porque muitos professores das universidades públicas tiveram suas temporadas nos cursinhos, como alunos ou como professores. Lembro também que José Atilio Vanin, quando era diretor da Fuvest, fazia palestras a convite dos cursinhos. Então, como se explica a falta de informações estatísticas?

A desculpa de que os cursinhos são “cursos livres” não me convence. As aulas acontecem em prédios que são fiscalizados; a relação contratual com os professores é regulamentada pelas leis trabalhistas; os lucros obtidos com o serviço prestado são taxados pela Receita Federal;  o consumo de água e luz é cobrado pelos órgãos responsáveis. Em São Paulo, a escadaria do Objetivo na Paulista é um local referencial na paisagem urbana. Como é que os cursinhos poderiam ser invisíveis?

Por que só o Ministério da Educação e Cultura  parece não se interessar pelos cursinhos? Definitivamente o estatuto de “curso livre” não é a resposta. Basta pensar que há algum tempo, os grandes cursinhos passaram a exportar seu modelo, através dos chamados “sistemas de ensino” em que a “competência e experiência” acumuladas  ganham a forma de material didático apostilado, escrito basicamente por seus professores, para uso na rede privada de ensino médio. Isso por si mesmo seria  suficiente para colocar os cursinhos, fonte desta experiência educacional,  no horizonte do MEC. Claro que não penso em fiscalização do ensino oferecido nesses estabelecimentos, mas no levantamento de informações sobre quão efetivos eles são nas tarefas a que se propõem: habilitar os alunos como competidores válidos nos grandes concursos vestibulares no Brasil. E principalmente entender as relações dos cursinhos com o ensino médio, público e privado, e com o ensino superior. 

Ser professor de literatura me leva a ficar “pernilongado” com as palavras (essa expressão excelente é do Robinson). A posição incerta dos cursos pré-vestibulares no âmbito educacional brasileiro é bem representada pelo uso do diminutivo “cursinho”. Diminutivo carinhoso, do ponto de vista dos alunos e professores envolvidos, mas claramente pejorativo do ponto de vista das instituições de ensino oficialmente reconhecidas, como os grandes colégios e as universidades, para quem os “cursinhos” são excrescências geradas pela grande demanda por um ensino superior carente de vagas (refiro-me, é claro, ao ensino superior de qualidade). 

Na palavra “cursinho”, o diminutivo também marca uma situação que os norte-americanos chamam de “shadow education”: “Shadow education is defined as activities outside of school that mimic (shadow) activities performed in school. For example, activities such as cram schools, private tutoring (for profit), and test prep services”.

O nome “shadow education” alude ao fato de que esse tipo de ensino segue, como uma sombra, os parâmetros curriculares definidos pelas instituições oficialmente reconhecidas (como aquele imposto pelo programa dos exames vestibulares), mas também evidencia a zona de sombra em que se encontram esses cursos, cuja existência é a prova do fiasco das políticas educacionais que não conseguem universalizar o ensino de qualidade, nem atender a demanda por ensino superior nem resolver o hiato entre um ensino médio sem identidade definida e o ensino superior.

Pela sua condição de mera “sombra” do sistema educacional oficial,  os cursinhos não tem autonomia para fazer mudanças ou adaptações curriculares, o que condena os professores a um exercício de repetição ilimitada ao longo dos anos. Devido à necessidade de preparar o aluno num prazo curto, a solução foi sempre encontrar recursos que tornassem as aulas “divertidas” e eficazes, uma vez que elas precisam superar o tédio da repetição e a quantidade  vertiginosa de “matérias” a serem assimiladas pelos alunos. Basicamente a qualificação para ser um bom professor de cursinho é encontrar uma fórmula pessoal de equilíbrio entre essas exigências. As chamadas “aulas-show”, tão famosas nas décadas passadas e hoje um tanto esquecidas, sempre foram apenas uma das muitas maneiras de lidar com o problema do tédio e da sobrecarga de informações. E, fiquem sabendo os pedagogos que, mesmo entre os professores  mais antigos, elas nunca foram consenso.

Os cursinhos são apenas um dos vários tipos de “shadow education”, que também compreende as aulas particulares, as escolas juku no Japão, os pequenos cursos de apoio a alunos com dificuldades escolares, os cursos que preparam para a prova do exame de ordem da OAB etc.

Mas há uma outra palavra, bastante pesada, que é usada internacionalmente para caracterizar o tipo de instituição que conhecemos como “cursinho”. Trata-se da expressão “cram school”. O nome é francamente pejorativo. Segundo o Dicionário Webster-Merriam, o verbo “to cram” vem de um antigo verbo escandinavo para apertar e esmagar. “To cram” significa atulhar (como quem enfia roupas demais numa mala pequena), comer com gulodice (como fazem aqueles sujeitos que devoram hot-dogs em concursos bizarros). O verbo também é usado para rachar de estudar, devorando rapidamente grande quantidade de matéria num tempo curto tendo em vista uma prova.  Numa “cram school” muitos alunos são enfiados numa sala de aula para assimilarem, numa corrida contra o tempo, todo o conteúdo exigido por um concurso.  Esse tipo de escola é comum na Turquia, no Egito, na Índia, na Malásia, na Coreia do Sul e no Brasil. Em todos esses países, as “cram schools” funcionam, paralelamente ao sistema oficial, com o objetivo de explorar economicamente as brechas geradas pela incoerência e incompetência das políticas educacionais públicas. Em toda parte, o aspecto atulhado da sala de aula e a luta contra o tempo são características de uma experiência com a qual nós convivemos diariamente há mais de vinte anos.

É fácil entender a desconfiança e a hostilidade que a maioria dos pedagogos nutrem pelas “cram schools”.  O pensamento pedagógico  parte da pressuposição e idealização de uma relação dual entre professor e aluno, segundo o modelo dos antigos tutores dos jovens da nobreza, e do Emílio, de Rousseau. Já os professores de cursinho costumam se referir a seus alunos como “minhas turmas”, colocando ênfase no coletivo.  A comunicação interpessoal professor-aluno é substituída pelas técnicas de comunicação de massa, as únicas eficazes em salas de cem alunos ou mais. Há um arsenal para isso: retórica, teatro, repetição, recursos multimidiáticos, todos eles apoiados na forte dose de carisma que todo professor de cursinho precisa dispor para desencadear e sustentar a atenção das “turmas” no aprendizado. A respeito do nível e profundidade desse aprendizado, só podemos fazer conjeturas, dada a ausência de pesquisas sobre o assunto no Brasil, o que lamento muito.

O sucesso dos “sistemas de ensino” liderados por grandes cursinhos, que vendem material didático para escolas privadas, fez surgir a tendência de considerar que o número de aprovações nos vestibulares (medida atual do êxito de uma escola) depende do suporte dado pelos livros de apoio e apostilas mais do que do talento pessoal dos professores. A mística em torno dos professores insubstituíveis está morrendo, por isso, dentro dos cursinhos, os professores procuram defender sua posição de força, ressaltando que um corpo docente experiente e selecionado é o que garante bons resultados.  Tudo isso, acaba ocultando o fato de que numa “cram school”, o fator determinante é o esforço dos estudantes em não deixar o fluxo de matérias se transformar na avalanche que irá sufocá-los. É aprovado aquele que tiver disciplina para estudar assuntos díspares e desconexos por tempo prolongado. Os professores das “cram schools” podem se esforçar para garantir um pouco de sentido ao que ensinam, mas o efeito geral – para o estudante -  será sempre o de uma cacofonia de mitoses, metáforas, números complexos e soluções molares. Enfrentar a falta de sentido de uma massa volumosa e fragmentada de informações será sempre o maior desafio do estudante de uma “cram school” seriamente empenhado em ter êxito.  

Do ponto de vista do professor, trabalhar numa “cram school”, como os cursinhos que conhecemos, significa estar sujeito a muitas pressões. Veja se você concorda com algumas das que eu me lembrei:

- garantir as metas de aprovação da escola, que concorre com as demais, num mercado disputadíssimo; 

- satisfazer a massa de alunos durante o processo, o que é aferido pelas pesquisas de opinião conhecidas nos cursinhos como “ibopes”; 

- descobrir meios de superar o hiato crescente entre o nível educacional dos alunos e os programas exigentes dos vestibulares mais concorridos. Nesse ponto, o suposto milagre que o cursinho poderia fazer esbarra com a crise de identidade e de qualidade do ensino médio, que ninguém sabe resolver; 

- enfrentar as críticas que são dirigidas pelos pedagogos e acadêmicos que questionam algumas das técnicas de transposição didática usadas nas “cram schools” e que teriam a consequência de baratear e banalizar assuntos complexos de maneira irrefletida;

- buscar meios de superar as difíceis condições de trabalho, em que as salas apinhadas, o nervosismo dos alunos, o stress, a repetição e o sedentarismo conduzem os professores à depressão, às doenças ocupacionais e ao burn-out.

Fico preocupado com o fato de que nos cursinhos em que trabalhei, sempre encontrei um grande número de professores dispostos a negar ou minimizar a existência dessas pressões e a idealizar uma situação sem atritos nem desgastes. Os valores pagos como remuneração aos professores de cursinho contam entre os fatores compensatórios, mas isso explica apenas em parte a atitude defensiva que usualmente os professores tem quando ouvem críticas ao cursinho como instituição. Conta muito aí um certo espírito corporativista, que liga os professores numa pequena comunidade que se conhece de rosto ou de nome e, ao longo dos anos, circula entre os vários cursinhos, como clérigos que faziam o tour pelas universidades da Europa medieval. Depois de alguns anos, todo mundo se conhece e se encontra, confirmando a sensação de “mundo pequeno” que os professores de cursinho costumam ter. Por fim, o narcisismo, tão notável em tantos professores de cursinho, torna-os avessos a ouvir suas estratégias de aula serem questionadas por teóricos da educação que, supostamente, nunca entraram numa sala de aula. Essa é a resposta padrão dos professores de cursinho aos pedagogos e ao mundo acadêmico. 

O que me entristece é que, agindo assim, nós, professores de cursinho, estamos contribuindo para normalizar o caráter excepcional e estranho do tipo de atividade que exercemos. É a situação do chamado professor “puta velha”.  Identificamos os alunos com um tipo de plateia e começamos a gostar de ser comunicadores de massa, mais próximos de figuras como Datena do que da dedicada professorinha que nos ensinou a ler. 

Quanto à morte do cursinho por causa de uma democratização do ensino superior, vou ficar à espera, de preferência dando aula, porque tenho família para sustentar e preciso ajudar os jovens a ingressar na universidade excelente que cursei.  

Se não me engano, você vai fazer a mesma coisa. 

O próximo jantar será na minha casa.

Um grande abraço para Denise e para as meninas.



domingo, 12 de agosto de 2012

A arte do possível




Carta a Antonio Carlos Biasse



Biasse,


No momento em que escrevo esta carta, o julgamento do “Mensalão” no Supremo Tribunal Federal chega ao sétimo dia. Confesso que não estou prestando muita atenção e nem me interessam as chicanas dos advogados. Jamais votei em nenhum dos envolvidos e meu voto deixou de ser petista muito tempo antes que me tornasse absenteísta. Faço parte dos indignados que não acreditam que estamos vivendo um processo de consolidação das instituições democráticas, o que não me exime de acompanhar o noticiário político com algo mais do que curiosidade perversa.

Uma grande lição que você me ensinou é duvidar que a vida política seja um embate direto de posições ideológicas. Com você, eu aprendi a observar a costura dos acordos e o conteúdo das barganhas. Como historiador, você sempre teve interesse na construção de pactos naqueles momentos em que as classes sociais ou frações de classe tentam resolver politicamente suas diferenças para vencer o desafio suscitado pela eclosão de novas reivindicações. Você tem gosto de estudar os “conchavos” (é a palavra que você usa) produzidos nos bunkers das elites políticas e empresariais, que tentam evitar que o tempo lento da política estabelecida seja ameaçado pela irrupção do tempo rápido das revoluções.

Além disso, nas muitas conversas que tivemos nos intervalos de aulas em Osasco, nas palestras, nas “pizzas burlescas” na casa do Rui, nos nossos almoços, você sempre me alertou para a necessidade de entender como a política econômica do Estado, verdadeiro núcleo duro do poder, é resultado da tensão permanente entre a coordenação política e a administração tecnocrática.  Por isso era interessantíssimo ouvi-lo narrar o percurso dos planos econômicos “salvadores”, de Dilson Funaro a Fernando Henrique Cardoso.

Em resumo, você transmitiu aos seus amigos o entusiasmo pela análise da Realpolitik nacional, naqueles anos em que, sob o governo FHC ou Lula, não faltaram ocasiões para observações preciosas - do ponto de vista histórico -, e revelações frustrantes - do ponto de vista das convicções políticas pessoais.

A tarefa de observador da vida política brasileira não é fácil, ainda mais no caso de alguém que, como eu,  não se despiu de certos preconceitos de classe e de formação.

Para começar, não superei - nem quero superar - aquela moralidade de classe operária que herdei de meus pais e avós, gente sem posses e sem instrução cujo único capital social era ter bom nome como sujeito honesto e trabalhador. Medido por esse metro – que eu sei limitado - o político parlamentar profissional é uma figura de vagabundo matreiro pela qual só tenho desconsideração e asco.

Em segundo lugar, não perdi a empolgação pelo conflito aberto de posições ideológicas, pela formulação clara de teses e princípios: os pontos inegociáveis. Respeito muito a intransigência esclarecida - isto é, não utópica nem voluntarista - no campo político, tanto quanto desprezo a mobilidade infinita dos apolíticos. Por isso, minha curiosidade histórica sempre me devolve aos momentos de tensão ideológica irredutível: as décadas de 1920 e 1930 na Europa ou o período imediatamente posterior ao AI-5 no Brasil. Momentos em que a pergunta era: quando se deve renunciar à política e passar à ação direta e violenta?  (Não que eu defenda a ação direta, mas eu a vejo o tempo todo no extremo do horizonte político).

Essas duas limitações de natureza moral e ideológica não me habilitam a ser um observador paciente da Realpolitik, mas vou arriscar algumas considerações gerais – vício de ex-filósofo – e espero que você corrija meus disparates de amador bem-intencionado:

A pior Realpolitik é o fungo que nasce na carcaça de uma ilusão revolucionária perdida. Períodos de agitação revolucionária são marcados por apostas utópicas ou radicais. Revoluções querem dominar o futuro. Quando essas revoluções são derrotadas, o tempo veloz das decisões revolucionárias é substituído pelo tempo lento da política institucionalizada, que se concentra na tarefa de manutenção do status quo presente. Práticas de Realpolitik surgem, portanto, quando a política de curto prazo toma o lugar do utopismo e do radicalismo revolucionários, que passam a ser vistos como demônios que precisam ser esconjurados. O próprio fato de que o termo Realpolitik tenha surgido no refluxo das esperanças radicais de 1848 é algo a ser considerado. A conjunção ideal para as piores práticas de Realpolitik se dá quando antigos militantes revolucionários desiludidos encontram os pilantras apolíticos que vivem bem em qualquer regime. Claro que não estou falando de Zé Dirceu e Marcos Valério (meus amigos petistas dizem que eles são inocentes); estou pensando nos chamados períodos de Restauração (essa palavra sozinha mereceria um tratado semântico-ideológico).

A Realpolitik floresce melhor quando os tempos políticos são extremamente lentos por causa da rotina institucional. Ela começa como uma série de expedientes de gabinete para fugir dos processos institucionais de legitimação das decisões, como as medidas provisórias do Executivo com as quais estamos acostumados. Trata-se sempre de encontrar atalhos valendo-se de posições de força, de modo que exercer a Realpolitik é praticar o golpe de estado em escala cotidiana, pontual e permanente, mantendo-se, porém, a aparência de vida institucional organizada. Mestres da Realpolitik devem  ser ventríloquos com dons de punguista.

A Realpolitik depende da manutenção das instituições políticas – especialmente do parlamento - na mesma medida em que burla cada uma delas. Elas oferecem a aparência de legalidade e de normalidade que deve ser preservado contra as investidas da anarquia e da revolução. A desordem institucional é o espantalho que os praticantes da Realpolitik cinicamente sacodem para desqualificar os movimentos que questionam o tempo lentíssimo da política. É preciso, por exemplo, acreditar no despropósito de que as eleições são “festas democráticas” que consolidam as instituições brasileiras e contribuem para uma saudável alternância no poder. Em 1983, vi na televisão um desses intelectuais que se colocavam a serviço do poder – acho que era José Guilherme Merquior -, dizendo que a meta da democracia era atingir aquela chatice social-democrata das eleições suecas! Rotina e eleições: tudo o que é preciso para sustentar as práticas de Realpolitik, como devia saber Merquior, amigo e admirador de Roberto Campos.

A Realpolitik não pode ser circunscrita à esfera da justiça, nem ao menos à da legalidade. Ela precisa de zonas cinzentas de amoralidade apoiadas em alguma interpretação do “laissez faire, laissez passer” no plano ético.  Por isso, os seus praticantes podem apenas aduzir pretextos cínicos ou alegar que seguem práticas usuais e disseminadas de conquista de posições pela barganha, pela troca de favores, pelos acordos tácitos, mas também pelas ameaças, chantagem, suborno e extorsão. No limite, a política segundo  la vecchia maniera fiorentina, política feita nas sombras e nos recessos através do exercício do poder nu. O segredo é elemento fundamental da Realpolitik, palavra de Henry Kissinger, que entendia bem disso.

Os defensores da Realpolitik alegam que estão garantindo a vida do processo político, sem o que ele restaria imóvel, com danos para toda a sociedade.

Bismarck encontrou o slogan da Realpolitik ao definir a política como “arte do possível” (Kunst des Möglichen). Como outros slogans políticos, ele pretende afirmar de maneira clara e peremptória, conceitos que, no entanto, são ambivalentes e demasiado genéricos.

Em Struggle with Time: a conceptual history of Politics as an activity, o cientista político finlandês Kari Palonen, que estuda a retórica política europeia posterior a 1789, faz considerações muito interessantes sobre o uso do conceito de “possibilidade” no vocabulário político. Basicamente ele argumenta que, no plano político, há dois usos opostos do conceito de “possível”: o possível como campo de ações futuras e ainda indeterminadas e o possível como aquilo que já foi comprovado e está dado no presente. Daí a distinção que Weber fez, em A Política como Vocação, entre dois tipos ideais de político: o heroico e o habitual. O primeiro investiga o campo das possibilidades em busca de opções viáveis que aprimorem a vida social. O segundo se limita à política do dia-a-dia, feita de rotina e de metas de curto prazo, isto é, a receita que ele sabe que funciona.

Quando Bismarck dizia que a política é a arte do possível, estava pensando naquilo que já está dado e bem estabelecido, não numa prospecção do horizonte de possibilidades de ação: “Despite his use of the Kunst des Möglichen formula, which first appeared in a comment from 1869, the discussion of possibilities has no prominent position in Bismarck”. Ou seja, a política como arte do possível tentaria nos convencer de que outros caminhos são impossíveis. A estratégia de domínio é levar a uma rendição ao existente.

Não creio que o sentido fosse outro quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso repetia que “a política é a arte do possível”. Com a bandeira do Plano Real, ele tentou fazer pose de político heroico na acepção weberiana, mas logo partiu para o âmbito que lhe era mais confortável. Na época, a Realpolitik parecia a consequência lógica que os tucanos tiravam da tese do “fim da história”. Uma vez que não havia mais ponto de vista privilegiado do proletariado nem do Estado, a política não poderia mais ser regida por fins últimos nem por imperativos morais. Tratava-se de permitir o livre movimento dos participantes do jogo democrático,  segundo regras constituídas ao longo do  próprio jogo, dentro daquela zona de indefinição em que os juízos morais devem ser suspensos sob o risco de travar o  jogo da democracia. Foi mais ou menos isso que escreveu José Arthur Giannotti em maio de 2001, no ocaso da presidência de FHC, num artigo que fez muito barulho na Folha de São Paulo. Marilena Chauí e José Genoíno escreveram respostas irritadas; os leitores mandaram seus usuais e previsíveis protestos de indignação cívica, mas a lição sobre as “zonas cinzentas” de amoralidade geradas pelo livre jogo democrático foram colocadas em prática por Delúbio Soares, Marcos Valério, João Paulo Cunha e outros. Não vou mencionar o Zé Dirceu, porque acusá-lo seria atacar a Constituição, segundo o advogado dele, que me forneceu uma pista da profunda interdependência entre a Realpolitik e o quadro institucional. 

Alguns petistas impenitentes que eu conheço fazem questão de afirmar que a própria visibilidade pública do julgamento no STF é sinal da consolidação das instituições democráticas. Gente um pouco mais sofisticada lembra que o “Mensalão” é uma fatalidade institucional gerada pelo presidencialismo de coalizão brasileiro. Um presidente se elege com milhões e milhões de votos de cidadãos que apoiam seu programa, mas no dia seguinte às eleições, é preciso começar a garantir a governabilidade formando uma base parlamentar à partir de concessões de pastas ministeriais e outros favores. Cada um desses acordos exige renúncia ou modificação de algum item do programa vitorioso e reforça o poder dos negociadores mais inescrupulosos.

O conceito de “presidencialismo de coalizão”, que Sérgio Abranches cunhou em 1988, foi adquirindo um caráter prescritivo: parece que hoje se pensa que o Brasil tem que ser governado assim, custe o que custar. É preciso manter a governabilidade, caso contrário, as instituições serão ameaçadas. Para garantir a governabilidade, é preciso negociar; para negociar bem, os agentes precisam ter agendas flexíveis. Os parceiros de mesa devem ser realistas... O muro de Berlim acabou e não há mais direita ou esquerda, há apenas oportunidades de maximizar vantagens ou lucros.

Há opções a curto prazo para esse rebaixamento do horizonte político?

Descontada a possibilidade de uma “primavera brasileira”, parece que não. Li o livrinho do Vladimir Safatle (A esquerda que não teme dizer seu nome) e não fiquei feliz. Parece a carta de intenções de um movimento derrotado prometendo que terá forças para se reerguer se a História assim o permitir:

em certos momentos, estamos dispostos a confiar nesse ‘algo outro’ cujo conteúdo ainda permanece subterrâneo, ainda não realizado na ‘existência presente’ e que, por isso, bate violentamente contra o mundo exterior como o que bate contra uma casca.

Tal confiança descobre a força de transformar o que se lhe aparece como opaco, como páthos cujo objeto desconhece o regime de presença da consciência e da intenção, em acontecimento portador de uma nova ordem possível. É nesses momentos raros em que essa confiança sobe à cena do mundo que a história se faz.” (p.85)

Uma esquerda que vive da esperança e da fé em dias melhores e acontecimentos redentores merece continuar não dizendo o seu nome.

E aí?  Vamos esperar Jesus voltar, ou vamos marcar logo um almoço?

Temos que dar umas boas risadas do Zé Dirceu e da esquerda hegeliana que colocou Lacan no lugar de Marx.



Um grande abraço do amigo e irmão em Baco.




domingo, 5 de agosto de 2012

No quintal





Carta a Marta Mieko Meguro Uemura


Marta,


Até minha família se mudar para uma casinha geminada numa antiga vila operária em Vila Alpina, tivemos horta de couves e alfaces, um pé de ameixas azedas, uma mexeriqueira que nunca floriu, tranças de cebola penduradas na cozinha, saco bordado de pão, canecas de folha de flandres, saparia açulando os uivos da cachorrada, cobrinhas verdes no quintal, vacas, cavalos, corujas e  morcegos que se aninhavam nas roupas esquecidas à noite no varal. Batuques nos terreiros de umbanda, vizinhas "crentes" de coque e saias compridas, que iam clandestinamente assistir as novelas nas casas que tinham televisão.

Para os garotos que, como eu, não gostavam das correrias no mato ou do bate-bola nos descampados, restavam os desenhos e as séries de TV e os livros que apareciam  quase como intrusos em casas tão desguarnecidas de conforto. Tínhamos muita diversão na  escola que ficava na praça do bairro: as aulas eram em galpões de madeira pintados de um verde militar, coisa de caserna. Ratazanas mansas comiam os nacos de lanche que atirávamos das portas arrombadas das salas de aula. Às terças havia feira livre em torno da escola, o que ajudava nas guerras de cascas de mexerica. Mas a velha escola decrépita estava com os dias contados. O prédio novo, que achávamos enorme e muito bonito, nos recebeu em setembro. Com a aproximação da final do Campeonato Paulista, havia boatos de que o nosso diretor Miguel Brabo — corintiano empedernido — suspenderia as aulas da sexta-feira se o Corínthians derrotasse a Ponte-Preta na partida de 13 de outubro. Na data aziaga, o popular "Timão" quebrou o jejum de mais de duas décadas, mas isso não impediu que nós,  corintianos, santistas, são-paulinos ou palmeirenses, tivéssemos as  aula de sempre.

Naquele ano da minha terceira série, a professora mais adorável era a Elenice, que fazia Comunicações na PUC e que nos falava de mitologia e da vida universitária. Ela sumiu da escola em setembro. Eu sempre me perguntei se isso teve algo a ver com a invasão da PUC pelas tropas do famigerado coronel Erasmo Dias.

Em 1978 fiz muitas coisas boas. Estava na quarta série, quando ganhei a Olivetti portátil que me acompanhou até o início da pós-graduação. O diretor colocou uma televisão no pátio para que víssemos os jogos da Copa da Argentina, na qual fomos campeões morais. A escola, em funcionamento há um ano, foi inaugurada pelo governador Paulo Egydio Martins, num discurso rápido em que ele me apresentou à palavra "utopia". Acho que minha antipatia contra essa palavra nasceu ali, por causa do som ruim que ela tinha na boca daquele apagado e hoje merecidamente esquecido governardor tão subserviente à Ditadura Militar.

Talvez você não saiba, apesar de ter estudado na sala ao lado da minha, mas certa vez eu trouxe uma cabeça de cachorro morto para a escola e joguei no latão de lixo do pátio. Eu era apaixonado pela Luciene, que só tinha olhos para tipos como John Travolta; eu era rival do Tarcísio, muito arrogante e vaidoso; era amigo do Vladimir Babi, que não tinha a falangeta do indicador; alimentava picuinhas com a Márcia, que um dia eu viria a amar. Meus êxitos na vida escolar causavam admiração no Luís e no Carlos, meus amigos e vizinhos, ambos assumidamente caipiras de Novo Horizonte.

O professor mais famoso da escola era o João, de Geografia, enérgico e reaça, que fez uma espantosa prédica sobre como o golpe de 31 de março nos livrara de uma sociedade policiada à la polonaise. Porém, eu não me importei naquela época. Meu coração estava nas ciências, não na história. Acompanhava toda noite Jornada nas Estrelas na TV Bandeirantes. Minha mãe ficava irritada por perder a novela das sete e dizia impropérios contra  Mr. Spock, meu herói até me dar conta do espinosismo prático do Capitão Kirk. 

Star Trek fornecia assunto, junto com velhas revistas Planeta, para um colóquio inconclusivo e interminável com o Edson Dê e com o Davi, o primeiro punk que conheci, leitor da Arte de Furtar e autor do lema "O Brasil precisa um porco a mais que você". Eles estavam na oitava série e sabiam das coisas, inclusive do sexo e das doenças venéreas que aparecem como feridas que não cicatrizam. À noite eu olhava as estrelas com meus binóculos. Minha mãe assistia a Dancin' Days, novela tão popular que os ritmos da discothèque invadiram as festas de casamento de minhas tias e primas. Eu gostava mais de João e Maria, de Chico Buarque, e Whuthering Heights  cantada por uma adolescente fantasmagórica chamada Kate Bush.

O ano seguinte, o da mudança para Vila Alpina, foi confuso e triste. Minha mãe tinha cicatrizes no rosto devido ao acidente que destruiu nosso Corcel 76 na colisão com um ônibus na avenida Sapopemba. Adriana, minha irmã caçula, nasceu num outubro cinzento. Minha mãe já devia saber que estava muito doente. As relações na escola do bairro eram difíceis. O fato de que as turmas eram divididas por sexo (e as meninas de minha idade estudassem à tarde) não facilitou meu entrosamento naquela idade em que mais desejava companhia feminina. Meus colegas eram filhos e netos de imigrantes europeus, como o Miguelito Ortiz ou o García. Eram suburbanos, grosseirões, engraçados. Os pais davam duro como metalúrgicos no ABC na aurora no novo sindicalismo. As greves nos preocupavam. Fez muito frio o ano todo. O Skylab estava para cair sobre nossas cabeças e a baderna de meus irmãos não me tornava mais animado. Guardo como consolação a lembrança da Professora Berenice, meiga e maternal, por quem eu era apaixonado. Havia premonições de solidão até nos livros que me ofereceram: Oliver Twist no começo do ano, Robinson Crusoe em dezembro.

Mas não estava realmente só. Eu e um pequeno grupo de recém-comungados mantivemos por cerca de um ano e meio o compromisso de nos encontrarmos na Comunidade Eclesial de Base todo sábado à tarde. A coordenadora do nosso “Grupo de Perseverança” era a Sueli. A magra, carinhosa e dedicada Sueli: verdadeira intermediária entre o mundo leigo e aquelas freiras divertidas que dirigiam uma kombi com o pé em Deus e a fé na tábua, subindo e descendo a avenida Vicente Giacaglini sem respeitar os semáforos. Sueli me emprestava livros devotos, da devotio moderna que apregoávamos, abastecida de teologia da Libertação, de franciscanismo, de opção da Igreja Latino-Americana pelos Pobres ratificada em Medelín.  Minhas leituras sobre a JOC francesa do pós-guerra datam desta época. A Igreja nos queria socialistas? Não com certeza Guevaras. A idéia era a de que a fé vivida se transformaria em obras de comunhão, que necessariamente teriam uma direção social e crítica.  No meu sarcasmo materialista de hoje eu diria que a doutrina da justificação pelas obras servia como atalho dos católicos radicais para o esquerdismo. João Paulo II e o então cardeal Ratzinger também viam as coisas assim...

O Diário de Dany, de Michel Quoist, era o vade-mecum com argumenta et exempla daquela teologia do amor autêntico, feito de comunhão, doação e sacrifício. Mesmo hoje, meu ateísmo é incapaz de rir de qualquer uma dessas palavras, tampouco consigo ver nelas somente beatices  carolas. Levo muito a sério aquela polenta quente que Francesco di Bernardone ofereceu ao lobo de Gubbio. Levo a sério a sugestão de Seu Urbano, “obreiro”da comunidade, de que eu fizesse a homilia do dia das Mães. Levo a sério os conselhos que Padre Patrício, alto e ruivo, conterrâneo de James Joyce, me fez no dia da minha primeira confissão. 

Não recordo quais eram os meus grandes pecados aos doze anos. Sei que odiava a história de Santa Bernardette Soubirous. Será que isso contava como pecado? Ou era sinal de um saudável bom-senso? Ainda preciso fazer uma anamnese das minhas relações com o catolicismo, mas isso é assunto que eu reservo para outra ocasião.

Um grande abraço do seu amigo mais antigo.