segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Deus, deuses e super-heróis: gênese e estrutura





Carta a Ivan Ciuffi Veronezi




Ivan,

Da última vez que vimos The Avengers, você estranhou que eu preferisse o Capitão America ao Homem de Ferro. Vamos esclarecer umas coisas: o Homem de Ferro foi um dos meus super-heróis favoritos quando eu assistia àqueles desenhos “desanimados” da Marvel no começo da década de 70. Nos filmes recentes, os gadgets estão melhores do que nunca e o trailer do Homem de Ferro 3 sugere que a imaginação tecnológica dos roteiristas e produtores visuais não tem limites; no entanto, no que diz respeito à imaginação “moral”, é melhor não comentar nada. 

O atual Tony Stark é uma mistura de playboy mundano e gênio incompreendido malcriado: a síntese de Hugh Hefner e Hugh Laurie (encarnado no Dr. Gregory House). Nada contra Robert Downey Jr. Definitivamente, ele é o alter-ego mais carismático que um super-herói poderia ter, bem longe daqueles tipos lamentáveis que encarnaram o Super Homem, os quais, a propósito, confirmam minha impressão de que Joe Shuster e Jerry Siegel não criaram realmente um super-herói, apenas deram forma mítica a uma doença: a angústia da falta de raízes, de ter de ocultar, sob uma aparente normalidade, a condição de alteridade absoluta. Exilado de um planeta extinto, órfão, obrigado a viver com uma espécie tecnologicamente inferior, o Super Homem é um alienígena que se fecha na sua Fortaleza da Solidão para vigiar o seu mundo de adoção. O próprio fato de que, ao voar, seja confundido com um pássaro ou um avião é uma marca dessa estranheza radical, que nenhum relacionamento com Lois Lane poderá superar.

Voltando ao Homem de Ferro: o ponto é que eu não aguento mais a ideia de que a riqueza ou a inteligência (ou ambas, no caso de Tony Stark) concedam alguma licença para que alguém se comporte como um jerk. Tá bom, reconheço que estou defendendo uma visão moral mais rígida, talvez mais conservadora, mas não vejo problema em ser conservador (só não admito ser reacionário). Por isso mesmo, gosto do senso de dever e do bom-mocismo antiquado do Capitão América. Sinal de que estou ficando velho? Com certeza. 

Talvez você argumente que os super-heróis não precisam ser moralmente perfeitos, pois, afinal, nem os santos são assim; você poderia acrescentar que as falhas morais expõem os limites dos super-heróis, tornando-os realmente interessantes. Um super-herói precisa ser finito, limitado e imperfeito de muitas maneiras. Ele precisa ter fraquezas e pontos vulneráveis. É preciso que ele encontre um rival capaz de dar-lhe uma boa surra. Talvez esta seja a razão pela qual, com exceção de Thor, os deuses não rendem bons super-heróis. O Deus único dos monoteístas, perfeito e onipotente, não daria assunto para três páginas de roteiro. Mesmo na Bíblia, toda a vez que ele resolve aparecer, a chatice se instala. Em termos de enredo, a história de Jesus contada no Novo Testamento só é interessante porque ele é apresentado como o filho do Todo-Poderoso e, portanto, um continuador da saga, mas o Paizão mesmo jamais aparece e deixa o filho se ferrando nas mãos dos inimigos. Quando ele pensa que encontrou aliados, descobre que entre eles há traidores. Jesus tem consciência de que sua situação é precária, que os deveres que ele assumiu (por exemplo, purificar os pecados do mundo) estão acima dos seus poderes reais (ele sabe apenas fazer mágicas em festas de casamento, como transformar água em vinho, ou fazer truques com comida, multiplicando pães e peixes... Dizem que ele ressuscitou Lázaro, mas poderia ser apenas um caso médico de catalepsia).  No fundo, Jesus está sozinho na sua luta. Seus inimigos sabem quem ele é e como ele pode ser ferido. Eles conhecem seus pontos vulneráveis. Enfim, eis o modelo de muitos roteiros de super-heróis, inclusive de Kick Ass, que terminei de ler anteontem e do qual gostei muito, principalmente por mostrar bem os motivos que levam alguém a querer essa coisa pouco razoável que é ser super-herói: o sentimento de tédio e de falta de sentido da vida, o desejo de se destacar da massa anônima, a vontade de fazer alguma coisa boa para os outros só para sair do individualismo egoísta, a necessidade narcísica de reconhecimento e de elogios, e por aí vai. 

Kick Ass deixa claro que não é o mundo que precisa de super-heróis: é a insignificância da vida urbana numa megacidade que gera em algumas pessoas o desejo de botar uma máscara para sair do anonimato. Botar uma máscara para mostrar quem você realmente é: taí o paradoxo que Kick Ass expõe da maneira mais clara. É por isso que os super-heróis são produtos do mundo impessoal dos formigueiros humanos: Metrópolis, Gotham City, New York ou Tóquio. Não há super-heróis rurais.  A urbanização mundial, em especial o surgimento das megacidades, vai continuar alimentando o imaginário niilista que fantasia catástrofes urbanas iminentes, sempre na esperança de que a salvação venha de algum indivíduo corajoso, capaz de colocar a Justiça acima da Lei e o Bem Comum acima da Propriedade, mesmo que, para isso, tenha que vestir-se como um bailarino de Lady Gaga. Se nós mesmos não temos coragem de colocar uma máscara para mostrar quem realmente somos, alguém tem que fazê-lo. Talvez seja inevitável que isso aconteça um dia – essa é a premissa mesma de Kick Ass: “Sempre me perguntei por que ninguém nunca tentou. Tipo, com tanto filme e seriado baseado em gibi, é de se pensar que pelo menos um carinha mais excêntrico teria feito uma fantasia. Todo mundo já quis ser super-herói.” (Kick Ass: Quebrando Tudo, issue 1, roteiro de Mark Millar, editora Panini).

A necessidade de deixar de ser um bosta é o que faz surgir um super-herói. O meu admirado Capitão América era apenas um fracote que queria lutar na 2ª Guerra Mundial e aceitou ser cobaia de um experimento que poderia matá-lo. Essa descida ao inferno do sofrimento é a condição para a ascensão de um verdadeiro super-herói. Os supervilões tem origem bem diferente. Eles são movidos pela necessidade de produzir um mundo perfeito, de ordem e de hierarquia, no qual eles – os supervilões – sejam reconhecidos e adorados pelo que gostariam de ser: artistas divinos, demiurgos. Um supervilão tem a ambição de introduzir a perfeição no mundo, o que somente seria possível por um ato de violência contra a imperfeição humana existente. Como os artistas wagnerianos, os supervilões sonham com a obra de arte total; como os grandes empreendedores capitalistas da nossa época, eles propõem projetos de destruição criativa; como os fascistas, eles almejam uma nova ordem. 

À luz dessas considerações, é importante evitar o maniqueísmo barato que reduz tudo à defesa do Bem contra o Mal. O fato é que o universo que gera super-heróis também gera supervilões porque eles querem a mesma coisa: eliminar o mal. O que os coloca em posições antagônicas é a diferença de interpretação que eles dão ao problema do mal. 

Para um supervilão, o mal é resultado da fraqueza de indivíduos que se agitam numa vida sem propósito nem grandeza. O mal é uma imperfeição que pode ser corrigida pela grandiosa implantação de um modelo de beleza e ordem superiores. O que é feio e fraco deve perecer. O nada é melhor do que a imperfeição e a banalidade. Para um super-herói, o mal está na tentativa de perturbar a ordem precária da vida social. Todo super-herói sabe que os seres humanos são fracos e imperfeitos e que tudo o que podem conseguir é uma pequena crosta de civilidade que os coloca a salvo da guerra de todos contra todos. É essa pequena crosta de civilidade, de justiça e de bem comum que precisa ser preservada contra as intervenções da megalomania artística dos supervilões, com seus projetos totalitários. Não é possível corrigir a natureza humana nem solucionar os problemas do mundo. Cada super-herói cuida somente de seu quintal (Gotham City, por exemplo) e zela para que as coisas não ultrapassem certos limites. Num texto famoso a propósito do Super-Homem, Umberto Eco comentou que ele poderia promover “as mais estonteantes revoluções da ordem política, econômica, tecnológica do mundo – da solução dos problemas da fome ao beneficiamento de áreas inabitáveis, à destruição de sistemas inumanos”, apesar disso, ele nunca vai muito além da comunidade em que vive prendendo criminosos comuns.  (Apocalipticos e Integrados, “O Mito do Superman”).  Umberto Eco parece não ter compreendido que os super-heróis são pessimistas resignados com a insuperável imperfeição humana, que pode ser apenas consertada por intervenções pontuais (prender um assaltante, salvar um gato, impedir que um ônibus cheio de crianças seja explodido por um terrorista). São os supervilões que fazem planos, sonhando com revoluções estonteantes e soluções finais aos problemas do mundo (E eu digo com meus botões: Umberto Eco era muito sensível à ideologia capitalista que permeia a indústria cultural, mas não parecia se melindrar com os horrores totalitários reais da União Soviética e da China de Mao Tsé-Tung).

Infelizmente, tanto os supervilões quanto os super-heróis tem opiniões fortemente dogmáticas sobre a natureza das coisas e dos homens. Nenhum deles poderia se dar ao luxo de questionar de maneira cética conceitos como perfeição ou maldade. Nenhum super-herói ou supervilão poderia pensar de maneira filosófica sem perceber o vácuo sobre o qual oscilam  suas frágeis opiniões de pessoas mal amadurecidas (o único que parece ter pensado com alguma seriedade sobre a sua condição foi o Surfista Prateado, mas esse é um caso a ser analisado à parte). Daí nunca ter existido um super-herói ou super-vilão cujo alter-ego fosse um filósofo ou um pensador. Não porque os filósofos sejam pouco inclinados a vestir roupas colantes excêntricas e sair à noite pulando sobre telhados. Tudo isso seria bem mais divertido do que participar de congressos de filosofia.  A questão é que a mera disposição de pensar entra em conflito com a impaciência irrefletida dos super-heróis e dos supervilões. 

Tanto quanto eu sei, nem você nem eu somos super-heróis ou supervilões. Por isso, temos mais tempo para pensar um pouco sobre o conceito de perfeição, que fascina tanto os artistas megalomaníacos que sonham com a obra de arte total (como Richard Wagner, mas também Lex Luthor e o Coringa). 

No ensaio que escreveu sobre o conceito de perfeição na arte, você imaginou um artista dotado de talento sobre-humano, um gênio absoluto ao qual você, significativamente, deu o nome de Leonardo. Há um trecho que coloca de maneira muito aguda o aspecto utópico do conceito de “perfeição” quando é assumido por um artista:

O perfeito é um conceito teórico/filosófico, tudo tende para o perfeito, mas nada pode alcançá-lo. Se dizemos que a humanidade fez progresso em qualquer área (social, artística ou científica), é porque assumimos que deve existir um modelo perfeito para a humanidade. No caso de Leonardo, precisamos imaginar não uma obra de arte perfeita de acordo com um período histórico ou uma cultura, mas uma obra perfeita hipotética a qual toda a produção artística tem buscado durante toda a história (...) Uma obra que possa abranger a perfeição em todos os aspectos possíveis, existentes e inexistentes, precisa ser uma obra infinita. E para que Leonardo possa confeccionar tal obra, ele precisa ser Deus.” (Ivan Ciuffi Veronezi, “O Artista que se tornou Deus”).

Esse Leonardo hipotético é um forte candidato a tornar-se um supervilão de escala cósmica, capaz de rivalizar com Galactus, o devorador de mundos. Diante do fantasma de uma perfeição meramente ideal e inatingível (como você mostrou no seu ensaio), seria o caso de tomar aquele velho remédio chamado Spinoza, que sempre ajuda a curar as tolices geradas pelos vícios do antropocentrismo:  

Portanto, a perfeição e a imperfeição são, na realidade, apenas modos do pensar, isto é, noções que temos o hábito de inventar, por compararmos entre si indivíduos da mesma espécie ou do mesmo gênero (...) Assim, à medida que reduzimos todos os indivíduos da natureza a esse gênero, comparando-os entre si, e verificamos que uns tem mais entidade ou realidade que outros, dizemos que, sob esse aspecto, uns são mais perfeitos que outros. E à medida que lhes atribuímos algo que envolve negação, tal como limite, fim, impotência etc.. dizemos que, sob esse aspecto, são imperfeitos, porque não afetam nossa mente da mesma maneira que aqueles que dizemos ser perfeitos, e não porque lhes falte algo que lhes seja próprio ou porque a natureza tenha errado. Com efeito, não pertence à natureza de alguma coisa senão aquilo que se segue da necessidade de sua causa eficiente. E tudo o que se segue da necessidade da causa eficiente acontece necessariamente”. (Spinoza, Ética, Parte 4, Prefácio, tradução Tomas Tadeu)

Para Spinoza, cada ser e cada obra são completos por si mesmos e, nessa medida, são perfeitos e reais. Uma coisa somente pode ser imperfeita quando nossa mente cria gêneros para agrupar as coisas, organiza-as numa suposta hierarquia de qualidades e considera imperfeita uma coisa que não tem qualidades que jamais lhe fizeram falta. Quem age assim, considera os cavalos inferiores aos pássaros porque não voam e considera o Capitão América inferior ao Homem de Ferro porque não tem uma armadura high tech. Portanto, se formos razoáveis (isto é, spinozistas consequentes), devemos declarar um empate entre o Capitão América e o Homem de Ferro (e aproveito para retirar o que disse sobre a jerkness do Tony Stark).

Um grande abraço para você, para sua mãe maravilhosa, para sua irmã sem juízo e para o seu pai, que é um dos caras mais legais que conheço.




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