domingo, 25 de novembro de 2012

Nada de carta: mon coeur mis à nu






Hoje, nada de carta. 

O autor, notório homem sem qualidades (espero que apenas no sentido de Musil), expõe algumas páginas arrancadas de seu velho caderno de réprobo. 






1985

setembro

Nasci mnemônico como uma erva antiga, capaz de reconduzir um homem a seu berço. Lembrar das felicidades passadas desenerva. Quanta miséria o passado pode suportar?

A lua da noite anterior punha reflexos numa vasta selva-oliva silenciosa. Fleumática desde sempre.

Passa das treze horas, o dia põe em desordem as roupas inundadas de suor.

(Queda livre:  haverá alguma liberdade na queda?)

Bebi em imaginação tonéis de vinho. Estou com Baco e Sileno, todos ébrios. Saímos os três pelo Largo do Café, deslizando por aquelas paredes de granito. Sileno caiu de seu burrico, lamentou-se pelo odre de vinho rasgado sobre o pavimento sujo: "Não se coloca vinho novo em odres velhos". Eu protestei: "ó Sileno! Isto não é mitologia, é o evangelho!", mas ele não deu importância à queixa de plágio.

Na rua São Bento, diante da avenida São João, tombamos aos pés do Martinelli. Um policial atentou para esse comportamento estranho por parte de três figuras mitológicas (pois também eu sou um mito).

— Documentos, camaradas!

Sileno arrotou. Baco brandiu o tirso ao agente da lei.

- Perdão, senhor Baco. Se eu o tivesse reconhecido de chofre, não o incomodaria. Mas não conheço esse aí (olhou para mim).

- Mortal, mortal, este é meu mais novo discípulo.

O burrico de Sileno zurrou uns pensamentos engraçados. Uma folha de parreira caiu da coroa que lhe cingia a cabeça.

Apolo nos localizou ao romper do Sol, marchando alegremente pelo Anhangabaú, e repreendeu os companheiros:

- Ó Baco, se seguires o Anhangabaú nesta direção não vais chegar ao Olimpo para a apoteose de Héracles.

O deus da embriaguez e seu companheiro ascenderam até serem cobertos por uma nuvem de poluentes. 

Não serei beatificado por querer a verdade perambulando perto de mim, ou um pouco mais adiante. Sento-me sobre cinzas — boa é a música que ouço agora— roendo uma cenoura crua.

Dou tapas nos fundilhos para tirar o pó escuro que sujou meu uniforme de punk. Meu cabelo não cresceu desde o início da história e o corte de gilete no peito continua insignificante. 

Lucienne-Marie, por favor, chame um médico, que eu necessito de urgentes cuidados. 

Camarada Ulianov, sofro como um cão velho e sarnento.

Tristeza, essa mancha de cinzas não quer sair da calça!





1992


Agosto

Li Almeida Garrett.  Ludmila, Marina e eu assistimos às apresentações do Bolshói e do Kirov. Passeei pela rua 13 de maio. Comprei um Dom Quixote. Consegui aulas de Sociologia numa outra escola. Gostei do livro da Scarlett Marton sobre Nietzsche. Comprei muitos livros em sebo. Adriana veio passar uma temporada conosco. Estudei grego. Li Borges, Machado de Assis e Shakespeare. Fui convocado a trabalhar nas eleições. Passei os olhos nos Pequenos Poemas em Prosa, de Baudelaire. Matriculei-me no curso de estética sobre Diderot, Voltaire e Sade. Tomei gosto pela Semiótica. Refleti sobre os protestos estudantis contra o Presidente Collor. Estudei o estoicismo. Conheci o Professor Bento Prado Jr. Com o Renato, assisti Wild at Heart no Sesc Carmo. Coloquei para correr um patife que assediava a Adriana. Nasceu meu sobrinho Lucas. Tentei entender a natureza das coisas.


Setembro

Assisti às conferências de Jean Pierre Vernant. Conheci Antonio Cândido. Conversei em mau inglês com um professor da Tanzânia. Li Mensagem e pensei em Bataille. Fiz muitos exercícios de grego. Ouvi inúmeras vezes K626 de Mozart. Achei-me amargo e plebeu. Estudei o problema do critério em Sexto Empírico. Fui niilista, esquizóide, curei-me pela música. Quis saber onde estava o centro de gravidade das minhas preocupações. Ludmila e eu vaiamos e xingamos o Presidente da República, o presidente do PMDB e o governador de São Paulo, numa grande manifestação pelo impeachment de Collor. Recebi cartas sentimentais de minhas ex-alunas. Terminamos a greve dos professores. Redigi meu projeto. Renunciei a ser um simples amante da música. Tive uma sexta-feira, 25, das mais azaradas e engraçadas. Amarguei o suspense pela votação do impeachment. Comemorei com a Ode à Alegria aquele grande dia 29. No dia seguinte, de ressaca, me achei incorrigível.




2001


abril

Não dormi bem de sábado para domingo. A crescente excitação de ver a Lapa madrugando me arrancou da cama antes das seis. Beijei as crianças e acordei Ludmila para avisá-la de que iria sair. Desci a Gomes Freire na direção da Riachuelo. Havia prostitutas e tresnoitados na esquina com a Mem de Sá.  Subi com firmeza a antiga Matacavalos, muito agitada por botequins e rapazes que voltavam de bailes. Os prédios de apartamentos pequenos e desgastados quase anularam o antigo casario do século XIX. A composição era convencional, pobre e sem surpresa (o diabo ia dizendo: “paulista”...). Quando passei a rua do Senado, procurei o lugar onde morou o jovem Bento de Albuquerque Santiago. Topei com um posto de gasolina enegrecido pela graxa. Um anticlímax de lei. Era preciso não desistir. Prossegui até a Presidente Vargas, esperando o sol surgir daquela aura rubra que emanava da Candelária. O locutor da Central do Brasil anunciou com voz redonda a partida dos trens para Belford Roxo. Enveredei através da massa que trafegava nas ruas sujas, ensombradas pela falésia do morro da Previdência (se a coragem e as pernas me permitissem iria até a Favela da Pedra Lisa). Fui atraído pelo esplendor fanado dos velhos hotéis convertidos em cabeças de porco, em lupanares fétidos para as putas de mamas despencadas da rua Barão de São Félix. Esgotos abertos, água parada nas sarjetas até a Camerino. Do Valongo, galguei a ladeira do Livramento, cruzando com os populares que, endomingados, iam à missa ou levavam os filhos a passeio. Casinhas de pobreza nostálgica, à parte da cidade, dispostas de portas abertas sobre vielas encalacradas. E sobretudo o sol forte iluminando toda a cidade ao pé do morro. Do alto se enxergava tudo, bem longe. Perdi-me a caminho da Gamboa. Desci ladeiras que eram volutas com o relevo da Lua, velhas como o dilúvio, desmanteladas como as que outrora subiam o morro do Castelo. Voltei a salvo de tombos para a Central e para as cutias do Campo de Santana. Vi um batizado, pouco antes de saudar as esfinges da Loja Grande Oriente na rua do Lavradio.  Armavam uma feira de antiquário, mas resolvi continuar, embora já fosse quase oito da manhã, até o Passeio Público.  No entanto, não havia vivalma naquele banco de pedra em que José Dias caluniou os olhos de Capitu a um Bentinho pasmo. Retornei pela rua das Marrecas, dobrei a esquina da rua dos Barbonos, digo, Evaristo da Veiga, passei pela ruína da rua dos Arcos. Logo estava de volta ao hotel para o café da manhã. 
Somos bem Brasil, os vivos e os mortos que se transformaram no húmus da terra, como aquele marinheiro de Álbion cujo epitáfio li no Cemitério dos Ingleses: He loved the country and wanted to stay... Humor britânico in extremis.





2011


Janeiro

Quando o trem passou sobre o Schelde, o país estava sem governo há exatos seis meses. Olhei na direção em que o rio desce para Antuérpia e – para esquecer o vaivém inútil na Gare du Midi, imensa e mal sinalizada - sonhei com caravelas, galeões e urcas abarrotadas de pimenta, tapetes, pau-brasil, peças de prata e peles de pantera. Na planura encharcada e cinzenta, eu vi camponeses de Brueghel arrastando as botas pesadas de lama.  Se viessem falar comigo, já tinha uma desculpa pronta: en français, s'il vous plaît ! ik heb geen Nederlands spreken. À medida que o comboio desacelerava ao entrar na estação Sint Pieters, os camponeses se transformavam nos garotos que iam para as escolas de Gent. Ludmila, Beatriz e eu tivemos que trocar de trem. Em Bruges, saímos do lado errado da estação, debaixo de uma chuvinha irritante. Cada cidade nova que visitamos se torna particular pelo acúmulo de muitas insignificâncias em que buscamos a cidade sonhada. Bruges era a folha de plátano molhada na sarjeta, uns discretos adesivos de venda de sexo, a fumaça que subia de um telhado íngreme. Queria partir logo que cumpríssemos os rituais de turista. Errávamos pelas ruas:  eu tinha medo e vergonha de pedir informações em francês. Já imaginava a fúria dos partidários do Vlaam Belang ou o gorducho Bart de Wever correndo para me chutar a bunda. 

Atrás das cortinas de renda, os habitantes invisíveis haviam sido postos para dormir desde a época do rei Leopoldo. Bruge, la morte. O sino de Sint Salvator anunciou que eram nove horas. A Grote Markt não me encantou e Ludmila não chegou a me convencer da necessidade de galgar os degraus do Belfort. Com aquele mau tempo iríamos enxergar o quê? Muito melhor seria caminhar ao longo dos canais, medindo a cidade. De todos os lados, os ciclistas começaram a aparecer no Spinolarei e no Groenerei. Paramos para as fotos obrigatórias no Rozenhoedkaai. Eu não estava encantado nem feliz. Torcia para que o Ivan tivesse mais sorte em Vancouver.  Bruges me fazia de bobo. Não gosto de ser turista nem gosto de estar perdido. Na livraria na rua Dijver as edições holandesas de Spinoza e de Cees Nooteboom proclamavam minha ignorância do idioma. Milhares de livros que eu não podia ler. 

Desanimado, senti que era melhor não perder mais tempo e irmos logo para o Groeninge visitar a exposição dos “primitivos” flamengos, única razão da nossa presença naquele tédio em forma de cidade.  Não sei se foi a beleza minuciosa de Van Eyck ou o murmúrio babélico que emanava dos connoisseurs; não sei se foi a acolhida gentil na entrada do museu ou uma frase bem brasileira dita por alguém que passou por nós em direção ao banheiro, sei apenas que, quando saímos, um sol úmido coloria os telhados vermelhos e uma ave – nem cisne nem corvo - cantou. 


Veio a vontade de atravessar a ponte de São Bonifácio, de contornar a catedral de Onze Lieve Vrouwe, de contar cada tijolo do Gruuthuse. Já não tinha medo do Vlaam Belang. Olhei com carinho para o alto do Belfort e fiz questão de chamá-lo de ‘beffroi” em voz alta; dei as costas para as lojas de chocolate, ignorei a Basílica do Heilige Bloed: fomos comer stoemp com cerveja Duvel e nos embevecer no Rozenhoedkaai, o lugar mais lindo do mundo. E seguimos pelos becos até o Minnewater, o lugar mais lindo do mundo. E entramos no pátio das beguinas, o lugar mais lindo do mundo. Sint Salvator avisou que eram cinco horas. Que pena! As torres da cidade se dissolviam na névoa luminosa daquele céu imenso que amo em Ruysdael (eu pensei: meu Deus! Essa luz existe! Eu vi essa luz!) Voltamos com os estudantes para a estação. Pedi os bilhetes para Bruxelas num francês sonoro ao qual o bilheteiro da SNCB respondeu num holandês teimoso. Não liguei. Flandres era também o meu país. 






domingo, 18 de novembro de 2012

On the edge of some crazy cliff




Carta a Beatriz Ciuffi Veronezi


Bia,


Você se lembra da conversa do Holden com a Phoebe? 

“Daddy’s going to kill you. He’s going to kill you”, she said.
I wasn’t listening, though. I was thinking about something else - something crazy. “You know what I’d like to be?” I said. “You know what I’d like to be? I mean if I had my goddam choice?”
“What? Stop swearing,”
“You know that song ‘If a body catch a body comin’ through the rye’? I’d like –“
“It’s ‘If a body meet a body coming through the rye’!” old Phoebe said. “It’s a poem. By Robert Burns.”
“I know it’s a poem by Robert Burns.”
She was right, though. It is “If a body meet a body coming through the rye.” I didn’t know it then, though.
“I thought it was “If a body catch a body’,” I said. “Anyway, I keep picturing all these little kids playing some game in this big field of rye and all. Thousands of little kids, and nobody’s around – nobody big, I mean- except me. And I’m standing on the edge of some crazy cliff. What I have to do, I have to catch everybody if they start to go over the cliff – I mean if they’re running and they don’t look where they’re going I have to come out from somewhere and catch them. That’s all I’d do all day. I’d just be the catcher in the rye and all. I know it’s crazy, but that’s the only thing I’d really like to be. I know it’s crazy.” (J.D. Salinger, The Catcher in the Rye, capítulo 22)

É até engraçado nunca termos falado sobre o significado desse sonho do Holden. Ele não apenas dá título ao livro, mas é o próprio miolo da angústia do personagem. Se eu o conheço um pouco, Holden iria achar phony ser chamado de character, mas dane-se. Eu tenho uma interpretação sobre o sonho e nenhum personagem fictício em crise vai me impedir de contá-la. Talvez seja uma interpretação equivocada, mas o próprio sonho de Holden começa com um lapso (catch ao invés de meet no verso de Robert Burns, que ele supunha ser uma canção); um lapso que a ajuizada Phoebe tenta inutilmente corrigir. 

(Pobre Phoebe, eu sempre a imagino como uma Lisa Simpson, pedante e chata como costumam ser as pessoas inteligentes equilibradas quando se deparam com os turbilhões de sentimentos conflitantes de todos os Holden do mundo. Sei do que estou falando: sempre fui mais Phoebe do que Holden, exceto em dois ou três momentos críticos da minha adolescência.)

Holden imagina um grande campo de centeio à borda de um penhasco. Milhares de criancinhas brincam e cabe a ele, somente a ele, impedi-las de cair, agarrando as que correm distraídas em direção ao abismo. Essa é a única tarefa dele e é tudo o que ele gostaria de fazer. 

Você vai concordar comigo que Holden é quem precisa de alguém que o impeça de mergulhar num precipício. Ele é a criança que corre distraída para a borda do perigo. É ele quem precisa de um apanhador no campo de centeio. 

Quando eu era criança, havia na minha casa um quadro religioso muito kitsch em que duas crianças de cachinhos dourados, olhos claros e bochechas rosadas, vestidas com roupas burguesas de tempos mais distantes se aproximavam perigosamente da beira de um rio para buscar a bola. Elas avançavam para a morte certa com um sorriso no rosto, mas um anjo andrógino, usando uma camisola esvoaçante – dessas que os anjos usam em ocasiões solenes (o resto do tempo, eles ficam só de cuecas, suponho eu) – detinha as duas crianças, fazendo uma espécie de passe de mágica com as palmas das mãos estendidas sobre elas. Ele não precisava agarrá-las, parecia que iria imobilizá-las ou fazê-las mudar de ideia quanto a pegar uma bola estúpida caída num rio largo e fundo. 

O sonho de Holden é ser uma versão moderna e esportiva do anjo da guarda. A criança corre na direção errada, Holden aparece - sabe-se lá de onde, vestindo um uniforme de baseball - e agarra o coitadinho antes que cometa a besteira fatal. Ser anjo da guarda das criancinhas daria sentido para sua vida embrulhada. Ele seria o único grande o suficiente para fazer isso, o que o pouparia do doloroso confronto com os adultos. Bastaria proteger os pequeninos,   apanhar os que vão cair do penhasco. A pura condição de herói, sem as ambiguidades morais e as prestações de contas que tornam a vida tão complicada.

Sempre me perguntei o que era o precipício junto ao campo de centeio até que, há várias semanas, na carta que escrevi para a Losana (que era minha colega de escola quando eu passava por um momento-Holden), finalmente atinei que os jovens veem o futuro de uma maneira bem diversa das pessoas que alcançaram a maturidade (por acaso é a situação em que seu velho pai se encontra).  Para os jovens, o futuro é uma “aresta” (como diz um poema de Camilo Pessanha): é obstáculo, fratura, abismo. Tudo parece estar prometido para o futuro: viagens, dinheiro, sucesso, reconhecimento, independência, talvez a felicidade. Mas também a rotina, o anonimato, o servilismo, as responsabilidades cansativas e não remuneradas, enfim o fracasso definitivo.

Para o jovem, o presente é tédio e tempo de  moratória até que a “aresta do futuro” seja ultrapassada: entrar na faculdade, ou arranjar emprego, ou começar a namorar, ou passar a ter vida sexual e não apenas vagos e solitários episódios eróticos etc. Então virá a autorização para a vida plena e para a autonomia. Por isso, na direção dessa “aresta do futuro” vão todos os jovens, ansiosos e assustadíssimos, morrendo de medo de se tornarem  adultos iguais aos que eles conhecem – conformistas opacos que vivem um dia após o outro, no tempo contínuo da linha de produção, no tempo sem grandes rupturas, no tempo do pouco-a-pouco e do apartamento pago em dez anos e da contagem regressiva da aposentadoria. 

Dada a imagem triste que se faz da maturidade, não me admira que haja tantos adultos que invejem o tempo de incerteza e de espera em que os jovens marcam passo. São adultos que não suportam o tempo lento da maturidade e sonham com arestas, rupturas, promessas e decisões. Eles sonham com uma vida cheia de acontecimentos fugazes, justamente porque não aceitam viver plenamente o acontecimento único e complexo da vida madura. Querem tomar um porre de bebidas baratas numa noitada barulhenta, ao invés de aprender a arte de saborear o vinho que dormiu pacientemente nas caves.

Às vezes meus ex-alunos aparecem para me visitar. Eles contam as suas aventuras na universidade, os namoros, as festas, os “contatos profissionais” que fizeram, as viagens que planejam para o ano que vem.  No final, querem saber o que eu ando fazendo. Respondo que estou fazendo as mesmíssimas coisas que fazia quando eles eram meus alunos. Percebo, então, uma certa comiseração nos olhos deles, que tentam me consolar, garantindo que eu ainda sou jovem ou que pareço jovial (eles não sabem o alívio que sinto por não ser jovem como eles). É comum que os jovens tenham a ilusão de que é possível ser adulto de outra maneira, com uma vida acelerada, feita de acontecimentos e novidades. É a razão pela qual alguns dizem que não vão se casar (casamento = prisão), não pretendem ter filhos (filhos = prisão), irão fazer cursos para não caírem na esclerose do emprego fixo (rotina de trabalho = prisão). Em geral, os jovens não tem medo da velhice, costumam até achar simpáticos os velhinhos. É que os velhos também vivem um tempo de espera e tem diante de si outra “aresta do futuro”, que é a morte, além da qual pode haver um paraíso de delícias ou o nada. O que apavora os jovens é a vida adulta, que promete dar independência financeira, sexual, existencial, e cobra o preço de inúmeros compromissos que não permitem “aproveitar a vida”.

Por isso, eu acredito que o abismo junto ao campo de centeio é a vida adulta, com seus compromissos e suas conciliações, com sua suposta phoniness. Holden quer impedir as crianças de crescerem e perderem sua inocência. Ele quer protegê-las de se tornarem adultos, agarrando-as antes que elas atravessem a “aresta do futuro”, a borda do precipício. O que  Holden não sabe é que a vida madura não é o paraíso nem o inferno. Também não é o limbo morno. Para quem amadureceu, a vida não é mais avaliada por esses parâmetros. O problema é que, enquanto não alcançar a maturidade – um processo que, na verdade, também avança aos poucos e nunca termina –, o jovem ficará frustrado com o muito que lhe prometem e o pouco que lhe oferecem.  Acho que você vai se lembrar dessa frase do Henry Chinaski em Misto Quente:

Que tempos penosos foram aqueles anos – ter o desejo e a necessidade de viver, mas não a habilidade.” (Charles Bukowski, Misto Quente, capítulo 47)

Misto Quente é um belo livro, mas é uma pena que a tradução do título Ham on Rye perca a ligação com The Catcher in the Rye. Henry Chinaski é um Holden Caulfield pobretão e escatológico. Ambos se irritam com as mentiras convencionais dos adultos. Quando Henry faz uma redação sobre a recepção do presidente dos Estados Unidos na sua cidade, a professora o elogia e lhe pergunta se ele tinha ido ver o presidente. Henry responde sinceramente que não e a professora diz que o fato de não ter visto o acontecimento in loco tornava sua redação ainda mais notável. Ele chega à conclusão de que as pessoas querem ouvir mentiras (capítulo 19).

Como muitos jovens, Henry tem raiva do sucesso - o grande alvo mítico - que ele mesmo deseja alcançar:

“Senti que eu precisava ganhar. Senti que aquilo era muito importante. Não sabia por que era importante e fiquei pensando, por que acho que isso é tão importante? Enquanto outra parte de mim respondia, é porque é.” (capítulo 58 final)

Ele gostaria de ser amado e admirado sem ter que trocar a camisa curta manchada de pus e sangue das suas acnes imensas. Porém, ao dar-se conta de que apenas um enxame de fracassados o cerca na hora do lanche, um mais patético do que o outro, todos eles indefesos, Henry Chinaski constrói para si mesmo sua imagem de big loser, negligente, bêbado, solitário, cheio de desprezo por todo mundo. Para ele, o fracasso consciente é uma opção válida. Ele decide ser uma crítica viva a tudo o que há de falso, artificial e irritante no sucesso dos rapazes de cabelos loiros e pulôveres brancos impecáveis, que dirigem carros de cores berrantes e vão estudar na Universidade de South California, antes de tornarem-se os médicos e advogados ricos e famosos do país. 

Fazer papel de big loser, ou de happy loser, sempre é algo que um jovem pode fazer para se defender do fracasso real, aquele que pode acontecer durante a vida adulta. É como se tornar-se um fracassado por antecipação diminuísse as expectativas e amenizasse todas as derrotas futuras. Na minha adolescência, muitos rapazes – inclusive eu – pensávamos assim. Nossa inspiração não era Henry Chinaski, mas John Lydon (a.k.a. Johnny Rotten) dos Sex Pistols. Ele nos ensinava que anger is an energy  e, se você não for verdadeiramente desprezível, não terá o direito de desprezar profundamente os outros. Não demorou muito, eu descobri que esse pensamento estava num daqueles livros que realmente me ensinaram alguma coisa: Notas do Subterrâneo, de Dostoiévski (Nietzsche, que parece ter sido um sujeito inteligente, também aprendeu uma ou duas coisinhas nesse livro). 

No fundo, trata-se de um fenômeno da sociedade moderna, mais agudo nos jovens, mas que também é vivido pelos adultos e pelos velhos: só receberemos reconhecimento se nos comportarmos bem... e renunciarmos àquilo que nos torna diferentes uns dos outros (esta aí a causa da conhecida sensação de perdermos a alma). Diante dos olhos dos outros, que esperam de nós comportamentos previsíveis e sensatos, nossas angústias mais íntimas e nossas diferenças mais irredutíveis nos fazem parecer monstrengos (vide o desabafo da Raleigh em Lost at Sea: “I’m an anti-social monster. I’m such a fuckup. I’m – I’m – I’m medíocre fuckup, even. I’m not even good at fucking up. He might not love me? That’s cause for a fucking breakdown? What is this? I’m stupid! I feel stupid! I’m horrible!!” – Bryan Lee O’Malley, Lost at Sea). Não admira que ela, menina exemplar, reconhecida como superdotada desde a terceira série, bonita, alta e de boa postura, sinta ter perdido a alma. Ela tinha que vomitar toda a sua raiva e sua esquisitice para recuperá-la. 

A melhor literatura moderna é a da crise do sujeito, esmagado entre o conformismo e a vontade de chutar uns traseiros e dizer uns impropérios em voz alta. Por isso quem fala agora  não é seu pai, mas o professor de literatura: acho que você está pronta para mais um livro sobre as arestas do futuro, sobre fracasso e perda da alma, sobre confusão e decisão. Leia o quanto antes Perto do Coração Selvagem. Escrito por Clarice Lispector ainda na adolescência,  o romance conta a infância e a juventude de Joana, que é um pouco Holden, um pouco Henry, um pouco Raleigh, um pouco Nancy e um pouco Sid, um pouco Kathe – megera, mas indomável -, um pouco você. 

Um beijo muito grande e mande seu irmão criar juízo e fazer sucesso na vida.



domingo, 11 de novembro de 2012

As falhas da Folha e o vigor de Vygotsky




Carta a Alciel Alves Socorro



Alciel,


Assim começava o editorial da Folha de São Paulo na última sexta-feira, 9 de novembro:

"Ensino Medíocre

Em mais um atestado de que o ensino médio brasileiro está em petição de miséria, o cientista social Simon Schwartzman, após analisar dados do Enem, revela que apenas 27,9% dos que fizeram a prova em 2010 obtiveram mais de 450 pontos em todos os testes (as notas máximas variam em torno dos 900).

Os 450 pontos, vale assinalar, são o novo limiar definido pelo Ministério da Educação para conferir diploma de nível médio a quem não concluiu essa etapa da educação básica numa escola. Ou seja, quase três quartos dos alunos ficam aquém do mínimo aceitável.

As variáveis socioeconômicas, como a escolaridade na família, pesam muito no desempenho. Entre os estudantes cujos pais não têm nenhuma instrução formal, apenas 12,1% alcançaram os 450 pontos. Já entre aqueles cujos genitores cursaram o ensino superior, a taxa vai a 49,6%, e chega à maioria (66,4%) só no caso dos filhos de pais com doutorado.

Como observa Schwartzman, para a maioria dos estudantes que fazem o Enem, a prova é "uma ilusão cruel" - seu resultado já se encontra em grande parte predeterminado por suas condições socioeconômicas e pela má qualidade da educação que tiveram até aí.

A única maneira de quebrar esse círculo vicioso é oferecer um sistema público de ensino com qualidade suficiente para permitir que o nível de instrução dos ancestrais não signifique uma condenação irrecorrível ao péssimo desempenho.

Nessa matéria, os avanços dos últimos anos ficam entre o mínimo e o inexistente. Se é verdade que as avaliações mostram algum ganho nas séries iniciais do ensino fundamental, elas também indicam que a melhora desaparece quando o aluno chega ao nível médio.

Infelizmente, no lugar de encarar o problema e procurar resolvê-lo com mais ousadia, autoridades educacionais têm preferido a saída fácil de apelar para cotas raciais e outras pirotecnias populistas, que apenas contribuem para mascarar a questão principal.

Pior, os esquemas adotados não vêm sem efeitos colaterais. Um deles é obrigar universidades públicas a criar sistemas de apoio para compensar lacunas na formação dos alunos, uma tarefa para a qual elas não estão preparadas."


I


Há muita coisa curiosa neste editorial, a começar do título. Para a gravidade da situação descrita, não caberia dizer que o ensino médio brasileiro é medíocre.  Medíocre é a análise feita pelo editor, toda esburacada nos argumentos. O correto é afirmar que os resultados do ensino médio são simplesmente ruins, como é ruim o português em que foi vazado o texto, que emula o pobre vernáculo dos “focas”.

Como sói acontecer nos editoriais da Folha, o texto aponta uma questão pertinente –formulada em termos quantitativos precisos - para, em seguida, dar uma resposta-padrão, cuja generalidade vazia permite evitar a intensidade do conflito social que se anunciava na questão e refugiar-se num consenso verbal formulado em termos qualitativos e clichês moralizantes:

"A única maneira de quebrar esse círculo vicioso é oferecer um sistema público de ensino com qualidade suficiente para permitir que o nível de instrução dos ancestrais não signifique uma condenação irrecorrível ao péssimo desempenho."

O círculo é “vicioso”, a condenação é “irrecorrível”, o desempenho é “péssimo”... e o texto é patético no tom e, sobretudo, ridículo ao fazer trovoada com os adjetivos disfóricos que se acumulam subitamente. O resultado não é adensar o problema, mas deslocá-lo da linguagem social para a linguagem moral, aquela em que os problemas devem causar apenas indignação cívica, sem mobilização de recursos do governo em favor dos destituídos.

Como se exige desta modalidade textual, o editorial é peremptório: há uma “única maneira” para resolver o problema, que é apresentado como um “círculo vicioso”: uma imagem desgastada que remete o leitor a uma perversidade que, aparentemente, caiu como um raio do céu azul e desde então permanece em moto contínuo, destituída de qualquer nexo histórico. As imagens dos circuitos infernais e dos labirintos de injustiça, sempre requerem a figura do herói mítico decidido a dar um fim à repetição. Alguém vindo de fora, Hércules ou Teseu, precisa romper o círculo. 

A firmeza assertiva na necessidade de soluções (as famosas e sempre discutíveis “únicas saídas”) se combina com a indeterminação e generalidade míticas na formulação das tarefas, o que constitui uma das marcas do discurso ideologicamente motivado. Quem fala assim, quer obter do leitor um cheque em branco assinado em apoio às melhores intenções na consecução de objetivos supremos sem que jamais se explicite em que consistem a excelência dessas intenções e a supremacia desses objetivos. 

Curiosamente a Folha – sempre tão ágil no apoio às privatizações – defende a oferta de “um sistema público de ensino”. Pelos dados estatísticos do início do texto, podemos supor que “sistema público” é sinônimo de “serviço dirigido aos pobres” (como na expressão “sistema público de saúde”).  O fato é que quem tem dinheiro dispensa a educação pública básica, de ingresso livre e má reputação, e busca apenas as universidades públicas, gratuitas e de alta qualidade, cujo ingresso é alegadamente meritocrático: entram os que obtém as melhores notas no concurso vestibular ou no Enem. No entanto, os dados estatísticos mostrados pelo editorial da Folha evidenciam que se trata de uma competição em que o mérito individual conta pouco diante das chamadas “variáveis socioeconômicas” (que fique registrado para a posteridade: segundo a Folha de São Paulo, as desigualdades sociais são apenas variações, como as variações climáticas ou as variantes linguísticas; seria o caso de fazer coro com o Zé Simão: tucanaram a pobreza!). 

Seria o caso de aproveitar o momento para lembrar que a própria forma de ingresso na universidade pública contribui para a manutenção dos desempenhos desiguais e do efeito de “círculo vicioso”: os que têm menos chances de ingressar na universidade vão gerar filhos com menos oportunidades de ingressar na universidade, o que transforma a universidade pública num nicho de classe ou de frações de classe social. Trata-se de um verdadeiro oligopólio do conhecimento e da informação: é dessa classe que são recrutados os pesquisadores acadêmicos, os jornalistas, os leitores dos grandes jornais, os formadores de opinião, os frequentadores do circuito artístico (os artistas que expõem, os curadores das mostras, o público de curiosos e colecionadores). Quem faz parte desse nicho de concentração de conhecimento e de informação vive se trombando por aí, com a sensação de que o mundo é realmente muito pequeno. 

É claro que o editorial da Folha não tiraria essas consequências da pesquisa de Simon Schwartzman. Seria ir longe demais na demonstração da perspectiva classista do jornal e de seus leitores. Exatamente para fugir da discussão classista escancarada é que o editorial coloca em ação um exemplo típico de estratégia evasionista: dentre as chamadas “variáveis socioeconômicas”, o editor ressalta apenas o nível de escolaridade dos pais, e não a renda familiar. Para não assustar os leitores com a questão social em estado bruto, propõe-se que o sistema de ensino público deva ter “qualidade”, mas apenas a qualidade “suficiente para permitir que o nível de instrução dos ancestrais não signifique uma condenação irrecorrível ao péssimo desempenho”. Então ficamos assim: para os estudantes pobres, a escola pública deve ser boa o suficiente para que consigam superar o semianalfabetismo de seus pais e avós, chamados pomposamente de “ancestrais”, à maneira dos aristocratas ou possivelmente dos selvagens.  

E quanto aos alunos das escolas da rede privada que não atingiram o limiar de 450 pontos? Pelos números levantados por Simon Schwartzman, eles não são poucos. No caso de filhos de pais com doutorado, quase 35,5% não atingiram a nota mínima estabelecida pelo governo federal para conferir o certificado de conclusão do ensino médio. Qual é o problema com os “ancestrais” desses garotos? Será preciso mandá-los para o sistema público de ensino para que possam superar as limitações de seus genitores? Quais são as dificuldades que a rede privada de ensino tem para garantir o limiar de formação do ensino médio para alunos privilegiados tanto do ponto de vista da instrução dos pais quanto da renda familiar?

Nada disso é sequer mencionado no editorial, porque não se trata ali de discutir problemas de educação, mas sim a velha coisa-em-si da realidade social: o poder de alocar os recursos disponíveis. Por exemplo: quanto dinheiro público deve ser destinado à educação das massas? Pelo editorial da Folha, apenas o necessário para garantir um ensino de “qualidade suficiente” para os descendentes de analfabetos. Quanto à redistribuição maciça de renda para suprimir as desigualdades que minam até os mais ardorosos esforços educacionais, a Folha – previsivelmente - faz boca de siri. 

Na conclusão, o editorial sai do plano das respostas genéricas moralizantes – estilo canja de galinha e chá de camomila - e pula, com a pena em riste, para a arena das disputas políticas, em que se evidencia o rationale do jornal: dar umas bicadas tucanas nas mãos da presidente Dilma Rousseff, embora a intenção fosse "acertar no olho", como diz o meu pai:

"Infelizmente, no lugar de encarar o problema e procurar resolvê-lo com mais ousadia, autoridades educacionais têm preferido a saída fácil de apelar para cotas raciais e outras pirotecnias populistas, que apenas contribuem para mascarar a questão principal."

Trata-se da velha estratégia retórico-diversionista de confundir o cu com as calças. Não há uma relação lógica entre os resultados do Enem e a proposta de cotas raciais; há apenas a acusação de que o sistema de cotas seria uma “saída fácil”, uma “pirotecnia populista”. No vocabulário liberal-conservador dos editoriais, “populismo” é a democracia voltada para a massa dos pobres, feita à base de investimentos públicos e maciças transferências de renda, que não se coadunam com os modelos de austeridade dos gastos governamentais e de Estado (social) mínimo. Do ponto de vista da grande imprensa, “populismo” é quando alguém defende que o filho da empregada, aquele rapaz “moreninho” da periferia, tem o direito de estudar na mesma universidade pública que o filho da patroa “branquinha”, paulista e eleitora de José Serra e de Geraldo Alckmin.

(Pausa para o desabafo do perfeito idiota latino-americano que sou, com muito orgulho: Seria um enorme benefício para o país e uma grande consagração da presidente Dilma Rousseff se as medidas federais fossem realmente “populistas” no sentido que a grande imprensa usa a palavra. Infelizmente elas não são suficientemente “populistas”.)

Para o “foca” escalado para redigir o editorial, o “populismo” das cotas raciais serve apenas para “mascarar a questão principal”.  Mas eu pergunto: qual é a “questão principal”? A Folha de São Paulo certamente quer garantir educação de “qualidade suficiente” para as massas, elevando-as da ruindade à mediocridade, porém você e eu somos professores empenhados em obter muito mais. “Ensino com qualidade” não pode ser apenas clichê de aulas de licenciatura à distância. A palavra “qualidade” não deveria admitir qualificações. 



II



Tenho pouca paciência quando percebo que a discussão sobre a qualidade educacional é desviada para o conflito entre propostas pedagógicas e métodos didáticos, totalmente improdutivo se as condições básicas de trabalho e de reconhecimento profissional dos professores ainda não foram alcançadas. O projeto político-pedagógico de uma escola deveria se resumir aos termos simples de um pacto: enquanto o estudante estiver disposto a estudar, nós, professores, jamais abandonaremos nossa disposição de ensinar, usando giz, tinta, papel, areia, copinhos de iogurte, saliva, música ou mímica. 

Reconheço que, em tese, nenhum meio deveria ser desprezado de antemão, nenhuma teoria cognitiva deveria ser descartada como errônea. Todavia, no dia-a-dia da sala de aula, eu não morro de amores pelas práticas didáticas que resultam de interpretações rasas das teorias construtivistas, especialmente as que desvalorizam os canais tradicionais de transmissão de conhecimento em proveito do espontaneísmo da construção do conhecimento pelo estudante. 

É isso que me aproxima de Vygotsky, para o qual o ser humano, como os outros animais, nasce dotado de processos cognitivos básicos e de certos comportamentos programados instintivamente. No entanto, diferentemente dos outros animais, o ser humano é capaz de transcender a satisfação das necessidades biológicas imediatas. Ele é capaz de projetar o futuro, referir-se ao que já é passado, imaginar o que não existe, agir segundo regras convencionadas pelo grupo, criar instrumentos e transformar conscientemente o mundo que o cerca. Essas características mais complexas da mente humana não estão presentes no indivíduo desde o nascimento. O ser humano é um projeto que se elabora através do processo cultural, social e histórico. Trata-se de um aprendizado, como apontou Leontiev, que foi colaborador de Vygotsky: “Cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana” (O Desenvolvimento do Psiquismo, Horizonte Universitário, Lisboa, 1978, p. 267).

As funções cognitivas mais sofisticadas não são propriedades ou faculdades que existam previamente no sujeito, esperando apenas o momento de amadurecerem e serem usadas; tampouco são o mero resultado das pressões do meio externo. Essas funções são constituídas na interação entre as demandas biológicas e o meio social e cultural, mediada através da linguagem.

A linguagem é um instrumento de socialização (na medida em que serve para a comunicação e a transmissão dos padrões culturais) e também um instrumento de internalização (na medida em que permite ao indivíduo refletir sobre o que aprendeu e formar uma memória). O amplo processo de aprendizagem em que o ser humano está inserido  torna-se, através da linguagem, um processo de criação de conceitos e significados no plano cultural e social. 

A princípio, o processo se dá de modo concreto e empírico e produz  conceitos espontâneos, que partem das vivências imediatas, mas, aos  poucos, vão ganhando generalidade (como o conceito de irmão, que inicialmente se refere a uma pessoa específica e depois ganha o caráter de relação de parentesco). Somente por meio do ensino estruturado oferecido pela escola é que o indivíduo entra em contato com conceitos científicos abstratos (como o conceito de energia ou de trabalho), que ganham concretude à medida em que são incorporados à experiência de vida do estudante pela leitura e pela reflexão. Desta forma, enquanto os conceitos espontâneos seguem uma tendência ascendente de generalização, os conceitos científicos seguem a tendência descendente de concretude e diferenciação em suas aplicações.  

Embora os conceitos científicos e espontâneos se desenvolvam em direções opostas, os dois processos estão intimamente relacionados. É preciso que o desenvolvimento de um conceito espontâneo tenha alcançado um certo nível para que a criança possa observar um conceito científico correlato (...) Ao forçar a sua lenta trajetória para cima, um conceito cotidiano abre caminho para um conceito científico e o seu desenvolvimento descendente. Cria uma série de estruturas necessárias para a evolução dos aspectos mais primitivos e elementares de um conceito, que lhe dão corpo e vitalidade. Os conceitos científicos, por sua vez, fornecem estruturas para o desenvolvimento ascendente dos conceitos espontâneos da criança (...) Os conceitos científicos desenvolvem-se para baixo por meio dos conceitos espontâneos; os conceitos espontâneos desenvolvem-se para cima por meio dos conceitos científicos." (Vygotsky, Pensamento e Linguagem, Martins Fontes, pp. 93-94)

O progresso intelectual do estudante depende desse movimento cruzado dos conceitos espontâneos e científicos, que cria as zonas de desenvolvimento proximal que o professor deve ativamente instigar. Em vista disso, dou razão à perplexidade enunciada por Newton Duarte naquele paper que você me indicou na quarta-feira e que li com grande atenção e interesse:

É muito instigante indagar sobre as razões que levariam tantos educadores e psicológos a desvalorizarem algo que constitui a especificidade da atividade humana perante o comportamento animal: a capacidade de acumular e transmitir experiência, conhecimento. Luria é bastante claro ao afirmar que a grande maioria de nossos conhecimentos provém da transmissão da experiência acumulada historicamente. Se é assim, por que a prática pedagógica deveria rejeitar tal transmissão, ou tê-la como um objetivo menor? Tornou-se tabu no meio pedagógico falar em transmissão de conhecimentos já existentes. Aceita-se até que tal transmissão possa existir, desde que seja apenas um momento para se alcançar o mais desejável, a aprendizagem por si só. Não há dúvidas de que tal concepção revela a força que o ideário escolanovista tem até hoje.” (Newton Duarte, “Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar”)

E já que estamos interessados na crítica às práticas espontaneístas que, com maior ou menor razão, adotam o nome de Construtivismo, vou lhe propor um artigo muito informativo, a começar pelo nome: “Why Minimal Guidance During Instruction Does Not Work: An Analysis of the Failure of Constructivist, Discovery, Problem-Based, Experiential, and Inquiry-Based Teaching”. 

Trata-se de uma bela defesa do papel ativo da memória na educação, à luz do conhecimento atual da estrutura cerebral, bem como de uma crítica à confusão frequente nos meios construtivistas entre o processo de aprendizado e o processo de descoberta dos conceitos (o estudante não é um pesquisador: o aprendizado escolar não é uma construção de conceitos; apenas a investigação científica faz isso, com base em conceitos aprendidos e incorporados à memória de longo prazo). Não sei se você vai ter tempo de ler o artigo todo, por isso, fiz uma rápida coletânea de passagens importantes: 


“Our understanding of the role of long-term memory in human cognition has altered dramatically over the last few decades. It is no longer seen as a passive repository of discrete, isolated fragments of information that permit us to repeat what we have learned. Nor is it seen only as a component of human cognitive architecture that has merely peripheral influence on complex cognitive processes such as thinking and problem solving. Rather, long-term memory is now viewed as the central, dominant structure of human cognition. Everything we see, hear, and think about is critically dependent on and influenced by our long-term memory.

We are skillful in an area because our long-term memory contains huge amounts of information concerning the area. That information permits us to quickly recognize the characteristics of a situation and indicates to us, often unconsciously, what to do and when to do it.”

“What are the instructional consequences of long-term memory? In the first instance and at its most basic, the architecture of long-term memory provides us with the ultimate justification for instruction. The aim of all instruction is to alter long-term memory.”

“We know that problem solving, which is central to one instructional procedure advocating minimal guidance, called inquiry-based instruction, places a huge burden on working memory (Sweller, 1988). The onus should surely be on those who support inquiry-based instruction to explain how such a procedure circumvents the well-known limits of working memory when dealing with novel information.”

“The addition of a more vigorous emphasis on the practical application of inquiry and problem-solving skills seems very positive. Yet it may be a fundamental error to assume that the pedagogic content of the learning experience is identical to the methods and processes (i.e., the epistemology) of the discipline being studied and a mistake to assume that instruction should exclusively focus on methods and processes.”

“Kirschner (1991, 1992) also argued that the way an expert works in his or her domain (epistemology) is not equivalent to the way one learns in that area (pedagogy). A similar line of reasoning was followed by Dehoney (1995), who  posited that the mental models and strategies of experts have been developed through the slow process of accumulating experience in their domain areas.”
  
“Because students learn so little from a constructivist approach, most teachers who attempt to implement classroom-based constructivist instruction end up providing student swith considerable guidance. This is a reasonable interpretation, for example, of qualitative case studies conducted by Aulls (2002), who observed a number of teachers as they implemented constructivist activities in their classrooms. He described the “scaffolding” that the most effective teachers introduced when students failed to make learning progress in a discovery setting.”

“It emphasizes the importance of providing novices in an area with extensive guidance because they do not have sufficient knowledge in long-term memory to prevent unproductive problem-solving search. That guidance can be relaxed only with increased expertise as knowledge in long-term memory can take over from external guidance.”

(Kirschner, Sweller, Clark, “Why Minimal Guidance During Instruction Does Not Work: An Analysis of the Failure of Constructivist, Discovery, Problem-Based, Experiential, and Inquiry-Based Teaching”, Educational Psychologist, 41(2), 75–86, 2006)


III


Discussões metodológicas na área pedagógica são especialmente bem recebidas quando as reivindicações salariais e as demandas de estrutura escolar adequada foram previamente atendidas. Quando isso não acontece, o resultado é aquele que se pratica em muitas escolas públicas: um pouco de transmissão de conhecimentos incertos por canais precários e um pouco de construção espontânea de conceitos nulos. 

Trabalhando em circunstâncias adversas, entre a manutenção da dignidade mínima e a improvisação, os nossos colegas da rede pública fazem o que podem sobre a corda bamba.  Sem o seu esforço, os resultados do Enem não seriam ruins, seriam calamitosos. Eu fui aluno da rede pública na periferia leste de São Paulo, onde depois trabalhei como professor por dois anos. Cheguei a ser colega de meus ex-professores e consegui perceber alguma coisa das dificuldades da tarefa. 

A pergunta que fica sem resposta e sobre a qual eu gostaria muito de ouvir sua opinião (e estendo o convite a todos os meus colegas que eventualmente chegaram até aqui) é: por que, tomadas na média, as desigualdades de renda são maiores do que as discrepâncias de resultados entre escolas públicas e escolas privadas no Enem? Dito de outro modo, por qual razão estudantes sem dificuldades econômicas e filhos de pais instruídos tem resultados tão baixos como aqueles apresentados no editorial da Folha?

Fica aí a minha questão, acompanhada de um grande abraço e do agradecimento pelo bom artigo que você me sugeriu.




domingo, 4 de novembro de 2012

Existe um Partido da Imprensa Golpista?




Carta a Renato Alencar Dotta




Renato,


Uma semana antes do segundo turno das eleições municipais, você me telefonou e, lá pelos trinta minutos de conversa, me perguntou se eu acreditava na existência do PIG (Partido da Imprensa Golpista). Eu respondi que não, mas não dei nenhum argumento substancial para minha descrença. Para me redimir da maneira leviana como descartei essa questão, quero desmembrá-la em outras questões, talvez mais fáceis de responder. Trata-se do tradicionalíssimo procedimento de análise (por oposição à interpretação), que hoje costuma ser apresentado com o nome pomposo e errôneo de "desconstrução" (um empréstimo lexical equivocado, que daria um bom assunto para outra carta).


1. A Imprensa


À pergunta "qual é a função da imprensa", costuma-se dar uma resposta simples: a imprensa existe para trazer informações aos cidadãos. Respostas desse tipo, à maneira daquelas que apareciam nos antigos catecismos, são construções ideológicas muito elaboradas, na medida em que tratam de produzir uma aparência de normalidade, que dissipa as questões inquietantes sobre a coisa-em-si da vida social: os conflitos em torno do poder de alocar os recursos disponiveis. Portanto, ao invés de abordar de cara o problema da função da imprensa, talvez seja melhor começar, de maneira mais modesta, por outra pergunta: o que é uma notícia?


Todo acontecimento do mundo, na medida em que é expresso pela linguagem, se torna uma informação. Por exemplo: "chove agora"; "há um pedaço de papel na calçada", "nuvens passavam no céu ontem à tarde", "em 1492, Cristóvão Colombo acreditou ter chegado às Índias" etc. As informações podem ser verdadeiras ou falsas, precisas ou imprecisas, relevantes ou irrelevantes. Na medida em que uma informação tem relevância prática para uma determinada comunidade, levando-a a tomar decisões e fazer escolhas, essa informação se torna uma notícia. Por exemplo: "há um incêndio numa loja do centro da cidade", "a queda de uma ponte obstruiu uma estrada", "Lady Gaga fará um show em São Paulo". Diante dessas informações, certo grupos serão obrigados a decidir as ações a serem tomadas: chamar os bombeiros, evitar a região interditada ou comprar ingressos para o show. Nas sociedades modernas, toda informação relevante para a tomada de decisão de um grupo pode se tornar uma notícia desde que passe por um processo de normatização controlado pelos órgãos de imprensa, como os jornais. Os jornais conferem às informações relevantes a "forma-notícia", supostamente distinta das formas concorrentes e tradicionais do boato e da fofoca, que se caracterizam por um "diz-se que" suprapessoal e anônimo, fora de possibilidade de verificação de fontes. Tudo se passa como se aquele desejo de verdade que caracterizou a filologia a partir do Renascimento, e levou Lorenzo Valla a demonstrar a fraude da suposta doação de Constantino, fosse o modelo remoto dos ideais declarados - e dificilmente praticados - do jornalismo contemporâneo.

A "forma-noticia" só é conferida a uma informação dentro de certas estruturas que abrigam os jornalistas. Essas estruturas, que são os órgãos noticiosos, definem quais notícias devem ser veiculadas, a maneira como elas serão elaboradas do ponto de vista da linguagem e qual o seu nível de prioridade. Um órgão noticioso tem a capacidade de definir uma pauta de questões que podem levar os membros de uma comunidade a tomar certas decisões e a fazer certas escolhas práticas.

Uma pauta é sempre ditada pela interpretação que um órgão noticioso, na figura de seus proprietários e editores, dá aos interesses e demandas da coletividade que eles atendem. A definição de uma pauta é expressão de certos agenciamentos e de correlações de interesses. Não existe imprensa neutra pelo simples fato de que uma notícia não é um dado do mundo que se gera espontaneamente e que necessariamente chegará ao interessados. Entre os acontecimentos do mundo e o leitor do jornal há um sistema que seleciona e formula linguisticamente aquelas notícias que podem ter interesse para uma certa comunidade (a população de um bairro ou de uma cidade, uma classe social ou profissional).

Na medida em que as notícias apresentadas segundo certa ordem de prioridade conduzem a tomadas de decisões pelos membros de uma comunidade, o noticiário jornalístico tem sempre repercussão social e política. Quando uma emissora de rádio informa que o trânsito na via marginal do rio Tietê apresenta 10 km de congestionamento por causa de um caminhão que caiu da Ponte do Piqueri, não está apenas advertindo aos motoristas que evitem a região ou tomem as providências cabíveis (como fazer ligações telefônicas para avisar sobre um atraso provável), também está levando os ouvintes a tirar certas conclusões de natureza política.

O fato de que um caminhão tenha caído da Ponte do Piqueri pode ter sido resultado da imprudência do motorista, mas também pode ter sido consequência das regras de trânsito definidas pelas autoridades em nível municipal ou estadual, ou das condições inadequadas da ponte. A demora para remoção do caminhão pode ter sido consequencia da dificuldade técnica da operação ou do imobilismo dos órgãos públicos. Tudo isso está implícito no noticiário de trânsito mantido por emissoras de rádio como prestação de serviço à comunidade. É claro que há um serviço prestado, mas as reportagens de trânsito também podem ser direcionadas contra certas autoridades, apontadas como responsáveis pelas dificuldades dos motoristas. Mesmo as notícias sobre o tráfego urbano tem teor político.

A função dos órgãos noticiosos não é eliminar esse teor politico em proveito de uma neutralidade que, aliás, não existe em parte alguma. Uma informação somente é notícia quando é relevante para alguém, na medida em que modifica uma situação e pode levar a uma reorientação de escolhas (tanto no plano prático imediato, por exemplo: é melhor evitar a Marginal Tietê; quanto no plano político, por exemplo: é preciso fazer pressão sobre as autoridades responsáveis pelo trânsito).

Notícias, portanto, não são neutras. A neutralidade não gera necessidade de decidir e de escolher. O problema não está na falta de neutralidade, mas na parcialidade inerente à notícia. O jornalista, atuando como repórter, colhe o processo no momento em que acontece, ou imediatamente depois, quando as informações ainda são conflitantes ou incertas. Um órgão noticioso, no momento de divulgar as informações, deve eliminar o que é inverossímil ou o que parece falso à primeira vista, mas muita coisa pode passar por essa peneira grosseira. Mesmo quando verificadas por padrões exigentes, as notícias são informações incompletas e parciais. Há casos em que a diferença entre a notícia e o boato é sutil. Esse era o problema que os editores do Washington Post tiveram que enfrentar em relação às informações transmitidas pelo Deep Throat.

As notícias também são parciais de outra maneira. Os órgãos noticiosos são empresas – algumas de grande porte – que buscam maximizar seus lucros, aumentando o seu alcance e prestígio junto da comunidade de leitores, ouvintes, espectadores, usuários da internet. Ou seja, como empresas estão submetidas às injunções da concorrência e tentam sobreviver e crescer fazendo o que podem, por meio do rebaixamento de qualidade, da adesão ao sensacionalismo, dos acordos cartelistas com outras empresas de comunicação, da busca de concessões governamentais etc.

Por isso, dentro de um grande jornal, a pauta é decidida num cabo de guerra entre a voz do dono e a necessidade de sustentar a aparência de pluralismo, necessária aos padrões do jornalismo moderno de grande porte. Dificilmente as empresas noticiosas são monólitos ideológicos. Na Folha de São Paulo escrevem Eliana Cantanhêde e Janio de Freitas: dois extremos separados por um abismo na qualidade do texto e na compreensão de qual é o papel do jornalista. Cada edição diária do jornal exibe uma gama que vai do moralismo e austeridade pro forma dos editoriais às palhaçadas verbais do José Simão, com páginas e páginas de anúncios de automóveis no espaço "nobre" do primeiro caderno. A variedade é ainda maior quando consultamos o Universo Online (UOL)  portal da Folha na internet: muitas fotos de moças bonitas com uniformes de times de futebol e fofocas imperdíveis sobre a vida amorosa do casal de vampiros da série Crepúsculo

Serei franco: não me sinto prejudicado pela Folha de São Paulo, que eu leio quase todos os dias (a assinatura é feita pelo cursinho), nem pelo Estadão, que consulto duas vezes por semana no saguão do hotel - e cujas posições são bem mais transparentes do que as da Folha -, nem pela revista Veja, cujos exemplares mais antigos leio no consultório da dentista para me divertir. Colecionei até algumas capas da Veja, como aquela, engraçadíssima, que mostra um Cérbero cujas cabeças eram efígies do marxismo-leninismo-trotskismo. Palhaçada de primeira, digna da revista MAD. Faltou um Alfred E. Newman para segurar a coleira do cachorro esquerdista. Conheço gente que ficava incomodada a com os artigos do falecido Diogo Mainardi na Veja, sem entender que ele apenas cumpria a função que o José Simão e o Luis Felipe Pondé cumprem na Folha atualmente: trazer diversão e besteirol para o último caderno.


2. O Partido


Existiria uma agremiação formada pelos proprietários das empresas noticiosas? Será verdade que há um "partido" formado pela família Frias (Folha de São Paulo), pela família Marinho (Globo), pela família Mesquita (Estadão), pela família Civita (Abril Cultural)? E os Corleone, os Barzini, os Cuneo e os Tattaglia? E será que a Liga da Justiça existe também?

O Conversa Afiada, blog do Paulo Henrique Amorim jura que esse partido da imprensa existe. Mas quem é Paulo Henrique Amorim? Um jornalista que nós ainda conhecemos como comentarista da TV Globo. Será que naquela época a Globo não era golpista? Mino Carta endossa as acusações de Paulo Henrique Amorim. Mas Mino Carta não trabalhou para os Mesquita e para os Civita, na época mesma do regime dos militares golpistas? Por enquanto, deixo de lado a questão do golpismo. O que me preocupa na história toda a respeito da existência do Partido da Imprensa Golpista (PIG) é que se trata de uma polêmica promovida basicamente por jornalistas ressentidos contra certas empresas noticiosas para quem prestaram excelentes serviços, jornalistas que, muito tempo depois, resolveram colocar na boca um belo trombone midiático para fazer suas denúncias contra o serviço que certos colegas como Miriam Leitão, Cristiana Lobo, William Waack e Carlos Alberto Sardenberg ainda cumprem, movidos por oportunismo ou por convicção (trata-se de uma palavra pouco usual no vocabulário jornalístico, mas concedo que possa haver dignidade na profissão que o Super-Homem escolheu para ocultar sua condição de herói).

Reconheço que, como funcionários que fizeram o trabalho sujo por certo tempo, Mino Carta e Paulo Henrique Amorim sabem o que estão dizendo, mas não devemos lhes dar razão em tudo e de maneira precipitada. Eu não sei precisamente que relações de dependência ou de favor o blog Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim, e a Carta Capital, de Mino Carta, mantém com o governo federal petista. O que eu percebo é que setores da imprensa estão em guerra para conquistar os formadores de opinião. É uma guerra política, um acerto de contas ou uma banal disputa de  mercado travestida de drama ideológico?

Os intelectuais acadêmicos não se dispõem a fazer um exame sério desse embate porque dependem das empresas noticiosas (sejam ou não parte do PIG) para manifestar suas próprias posições e fazer autopromoção. Duvido que Vladimir Safatle, tão ocupado em ocupar nichos noticiosos para divulgar o seu esquerdismo lacaniano, faça um exame incisivo e claro do que é a imprensa. Os intelectuais de vários matizes políticos precisam da imprensa como plataforma, mesmo que saibam que estão pisando em merda (aliás, saber colocar certas situações em parênteses é especialidade dos intelectuais, é a condição mesma da sua existência como intelectuais - e não me considero exceção).

Sempre me pergunto qual o tamanho real da plataforma que a grande imprensa oferece. Quem se coloca ao alcance da saliva reacionária do Reinaldo Azevedo quando ele perdigota na Veja? Quem lia o falecido Olavo de Carvalho? Além dos colegas do Instituto Millenium e dos eleitores paulistas do PSDB, quem são as belas almas que os editoriais da Folha  conseguem convencer? E quem lê de verdade a ladainha infindável do Paulo Henrique Amorim, exemplo de pobreza de imaginação e de jornalismo personalista e vingativo, tão bobo quanto os comentários políticos que ele fazia na TV Globo? Quem se convence a não ser um grupelho rançoso de adeptos do PT, acostumados a ver conspiração e golpe por toda parte, ignorantes que são do fato de que a teoria da conspiração é a filosofia da história do lumpesinato intelectual, aquele que acredita que as pirâmides foram feitas por extraterrestres, que os jesuítas eram templários, que o grupo Bilderberg e o Grande Sinédrio controlam o mundo, orientados pelo Papa Negro, por Darth Vader e por Lex Luthor... Às vezes, parece que o único partido hegemônico é o da falta de instrução. 

Pelo tom exasperado, entre raivoso e cínico que muitos jornalistas de direita e de esquerda adotam, fica a impressão de que a plataforma a partir da qual eles se pronunciam é uma camada de gelo que derrete rapidamente, cedendo lugar à massa amorfa de boatos que nutre a multidão de internautas. Paulo Henrique Amorim, ao fazer campanha contra o suposto partido da imprensa golpista, presta uma grande homenagem ao antigo Quarto Poder: ele quer nos fazer acreditar que a grande imprensa  ainda é uma força transformadora. Essa crença me parece anacrônica diante da imensidade caótica da internet. 


Enfim, não podemos esperar dos próprios jornalistas declarações públicas sinceras a respeito do poder que as empresas noticiosas exercem de fato, porém, se há sinais de que as grande famílias mafiosas se uniram numa coalizão é porque elas estão acuadas de algum modo. Isso vale um trabalho investigativo sério e não o mero bate-boca entre blogueiros.



3. O golpismo


- Será que a imprensa quer tomar o lugar da oposição esfacelada contra o petismo ou contra o lulismo?

- É bem possível.

- Isso é uma novidade?

- Parece-me que não. Imprensa golpista existe desde a época de Samuel Wainer e  Carlos Lacerda.

- Então, trata-se mesmo de golpismo?


Minha resposta é sim, desde que lembremos que os militantes do PT pediram o impeachment de Collor e, mais tarde, o de Fernando Henrique Cardoso (como me recordam algumas pichações de valor arqueológico na Zona Leste de São Paulo, especialmente junto da linha leste-oeste do Metrô.) O golpe estava na natureza mesma do governo Lula, que se elegeu traindo o programa do seu partido, com a manutenção da política econômica de incentivo ao capital financeiro promovida por Fernando Henrique Cardoso, ao mesmo tempo que construía uma imensa rede clientelista com o Programa Bolsa Família: um entrave que bloqueia toda a discussão da esquerda sobre a distribuição de renda, como apontou Francisco de Oliveira em várias de suas entrevistas e artigos sobre a "hegemonia às avessas" criada pelo lulismo.

Se há golpismo, ele vem de muitos lados: da ignorância petista, do clientelismo lulista e da corrupção de alto coturno praticados pelo grupo de Zé Dirceu; o golpismo vem do exibicionismo midiático do Supremo Tribunal Federal, especialmente do ministro Joaquim Barbosa, merecidamente homenageado na forma de máscara carnavalesca, que faz par com a toga de justiceiro (já tivemos o Tenório Cavalcanti como homem da capa preta); o golpismo vem do inolvidável aperto de mão entre Maluf e Lula, diante de um Haddad esquecido das lições da USP e mais disposto a fazer negócio no atacado e no varejo à maneira da lojinha na rua 25 de março.

Se há golpismo, ele vem de muitos lados. E o golpeado sou eu, cidadão brasileiro e eleitor de esquerda recluso no absenteísmo, no voto nulo ou no triste voto útil, de nariz torcido, dado ao PT nas últimas eleições municipais, para tentar impedir que a prefeitura da minha cidade caísse nas mãos de uma caricatura do Nosferatu ou do grupo de beatos babosos do governador Alckmin, que sempre terá muito ócio improdutivo para pedir perdão a Deus por cada policial militar assassinado neste ano.  Será que a Opus Dei não se importa com a polícia?


4. Existe possibilidade de atuação construtiva na vida pública institucional ?

Não com essas instituições, não com essa correlação de forças. 

Conheço uns tipos que estão loucos para se candidatarem, pregando uma cruzada moralista e, uma vez eleitos, locupletarem-se: eles sabem  que não conseguirão uma aposentadoria "digna" como empregados do sistema capitalista de educação. Simplesmente não posso culpá-los pelo desespero e cinismo que os faz sonhar em mergulhar na cloaca máxima.

Pense no que escrevi. Quando tivermos tempo, conversaremos a respeito por telefone.

Um abraço