domingo, 18 de novembro de 2012

On the edge of some crazy cliff




Carta a Beatriz Ciuffi Veronezi


Bia,


Você se lembra da conversa do Holden com a Phoebe? 

“Daddy’s going to kill you. He’s going to kill you”, she said.
I wasn’t listening, though. I was thinking about something else - something crazy. “You know what I’d like to be?” I said. “You know what I’d like to be? I mean if I had my goddam choice?”
“What? Stop swearing,”
“You know that song ‘If a body catch a body comin’ through the rye’? I’d like –“
“It’s ‘If a body meet a body coming through the rye’!” old Phoebe said. “It’s a poem. By Robert Burns.”
“I know it’s a poem by Robert Burns.”
She was right, though. It is “If a body meet a body coming through the rye.” I didn’t know it then, though.
“I thought it was “If a body catch a body’,” I said. “Anyway, I keep picturing all these little kids playing some game in this big field of rye and all. Thousands of little kids, and nobody’s around – nobody big, I mean- except me. And I’m standing on the edge of some crazy cliff. What I have to do, I have to catch everybody if they start to go over the cliff – I mean if they’re running and they don’t look where they’re going I have to come out from somewhere and catch them. That’s all I’d do all day. I’d just be the catcher in the rye and all. I know it’s crazy, but that’s the only thing I’d really like to be. I know it’s crazy.” (J.D. Salinger, The Catcher in the Rye, capítulo 22)

É até engraçado nunca termos falado sobre o significado desse sonho do Holden. Ele não apenas dá título ao livro, mas é o próprio miolo da angústia do personagem. Se eu o conheço um pouco, Holden iria achar phony ser chamado de character, mas dane-se. Eu tenho uma interpretação sobre o sonho e nenhum personagem fictício em crise vai me impedir de contá-la. Talvez seja uma interpretação equivocada, mas o próprio sonho de Holden começa com um lapso (catch ao invés de meet no verso de Robert Burns, que ele supunha ser uma canção); um lapso que a ajuizada Phoebe tenta inutilmente corrigir. 

(Pobre Phoebe, eu sempre a imagino como uma Lisa Simpson, pedante e chata como costumam ser as pessoas inteligentes equilibradas quando se deparam com os turbilhões de sentimentos conflitantes de todos os Holden do mundo. Sei do que estou falando: sempre fui mais Phoebe do que Holden, exceto em dois ou três momentos críticos da minha adolescência.)

Holden imagina um grande campo de centeio à borda de um penhasco. Milhares de criancinhas brincam e cabe a ele, somente a ele, impedi-las de cair, agarrando as que correm distraídas em direção ao abismo. Essa é a única tarefa dele e é tudo o que ele gostaria de fazer. 

Você vai concordar comigo que Holden é quem precisa de alguém que o impeça de mergulhar num precipício. Ele é a criança que corre distraída para a borda do perigo. É ele quem precisa de um apanhador no campo de centeio. 

Quando eu era criança, havia na minha casa um quadro religioso muito kitsch em que duas crianças de cachinhos dourados, olhos claros e bochechas rosadas, vestidas com roupas burguesas de tempos mais distantes se aproximavam perigosamente da beira de um rio para buscar a bola. Elas avançavam para a morte certa com um sorriso no rosto, mas um anjo andrógino, usando uma camisola esvoaçante – dessas que os anjos usam em ocasiões solenes (o resto do tempo, eles ficam só de cuecas, suponho eu) – detinha as duas crianças, fazendo uma espécie de passe de mágica com as palmas das mãos estendidas sobre elas. Ele não precisava agarrá-las, parecia que iria imobilizá-las ou fazê-las mudar de ideia quanto a pegar uma bola estúpida caída num rio largo e fundo. 

O sonho de Holden é ser uma versão moderna e esportiva do anjo da guarda. A criança corre na direção errada, Holden aparece - sabe-se lá de onde, vestindo um uniforme de baseball - e agarra o coitadinho antes que cometa a besteira fatal. Ser anjo da guarda das criancinhas daria sentido para sua vida embrulhada. Ele seria o único grande o suficiente para fazer isso, o que o pouparia do doloroso confronto com os adultos. Bastaria proteger os pequeninos,   apanhar os que vão cair do penhasco. A pura condição de herói, sem as ambiguidades morais e as prestações de contas que tornam a vida tão complicada.

Sempre me perguntei o que era o precipício junto ao campo de centeio até que, há várias semanas, na carta que escrevi para a Losana (que era minha colega de escola quando eu passava por um momento-Holden), finalmente atinei que os jovens veem o futuro de uma maneira bem diversa das pessoas que alcançaram a maturidade (por acaso é a situação em que seu velho pai se encontra).  Para os jovens, o futuro é uma “aresta” (como diz um poema de Camilo Pessanha): é obstáculo, fratura, abismo. Tudo parece estar prometido para o futuro: viagens, dinheiro, sucesso, reconhecimento, independência, talvez a felicidade. Mas também a rotina, o anonimato, o servilismo, as responsabilidades cansativas e não remuneradas, enfim o fracasso definitivo.

Para o jovem, o presente é tédio e tempo de  moratória até que a “aresta do futuro” seja ultrapassada: entrar na faculdade, ou arranjar emprego, ou começar a namorar, ou passar a ter vida sexual e não apenas vagos e solitários episódios eróticos etc. Então virá a autorização para a vida plena e para a autonomia. Por isso, na direção dessa “aresta do futuro” vão todos os jovens, ansiosos e assustadíssimos, morrendo de medo de se tornarem  adultos iguais aos que eles conhecem – conformistas opacos que vivem um dia após o outro, no tempo contínuo da linha de produção, no tempo sem grandes rupturas, no tempo do pouco-a-pouco e do apartamento pago em dez anos e da contagem regressiva da aposentadoria. 

Dada a imagem triste que se faz da maturidade, não me admira que haja tantos adultos que invejem o tempo de incerteza e de espera em que os jovens marcam passo. São adultos que não suportam o tempo lento da maturidade e sonham com arestas, rupturas, promessas e decisões. Eles sonham com uma vida cheia de acontecimentos fugazes, justamente porque não aceitam viver plenamente o acontecimento único e complexo da vida madura. Querem tomar um porre de bebidas baratas numa noitada barulhenta, ao invés de aprender a arte de saborear o vinho que dormiu pacientemente nas caves.

Às vezes meus ex-alunos aparecem para me visitar. Eles contam as suas aventuras na universidade, os namoros, as festas, os “contatos profissionais” que fizeram, as viagens que planejam para o ano que vem.  No final, querem saber o que eu ando fazendo. Respondo que estou fazendo as mesmíssimas coisas que fazia quando eles eram meus alunos. Percebo, então, uma certa comiseração nos olhos deles, que tentam me consolar, garantindo que eu ainda sou jovem ou que pareço jovial (eles não sabem o alívio que sinto por não ser jovem como eles). É comum que os jovens tenham a ilusão de que é possível ser adulto de outra maneira, com uma vida acelerada, feita de acontecimentos e novidades. É a razão pela qual alguns dizem que não vão se casar (casamento = prisão), não pretendem ter filhos (filhos = prisão), irão fazer cursos para não caírem na esclerose do emprego fixo (rotina de trabalho = prisão). Em geral, os jovens não tem medo da velhice, costumam até achar simpáticos os velhinhos. É que os velhos também vivem um tempo de espera e tem diante de si outra “aresta do futuro”, que é a morte, além da qual pode haver um paraíso de delícias ou o nada. O que apavora os jovens é a vida adulta, que promete dar independência financeira, sexual, existencial, e cobra o preço de inúmeros compromissos que não permitem “aproveitar a vida”.

Por isso, eu acredito que o abismo junto ao campo de centeio é a vida adulta, com seus compromissos e suas conciliações, com sua suposta phoniness. Holden quer impedir as crianças de crescerem e perderem sua inocência. Ele quer protegê-las de se tornarem adultos, agarrando-as antes que elas atravessem a “aresta do futuro”, a borda do precipício. O que  Holden não sabe é que a vida madura não é o paraíso nem o inferno. Também não é o limbo morno. Para quem amadureceu, a vida não é mais avaliada por esses parâmetros. O problema é que, enquanto não alcançar a maturidade – um processo que, na verdade, também avança aos poucos e nunca termina –, o jovem ficará frustrado com o muito que lhe prometem e o pouco que lhe oferecem.  Acho que você vai se lembrar dessa frase do Henry Chinaski em Misto Quente:

Que tempos penosos foram aqueles anos – ter o desejo e a necessidade de viver, mas não a habilidade.” (Charles Bukowski, Misto Quente, capítulo 47)

Misto Quente é um belo livro, mas é uma pena que a tradução do título Ham on Rye perca a ligação com The Catcher in the Rye. Henry Chinaski é um Holden Caulfield pobretão e escatológico. Ambos se irritam com as mentiras convencionais dos adultos. Quando Henry faz uma redação sobre a recepção do presidente dos Estados Unidos na sua cidade, a professora o elogia e lhe pergunta se ele tinha ido ver o presidente. Henry responde sinceramente que não e a professora diz que o fato de não ter visto o acontecimento in loco tornava sua redação ainda mais notável. Ele chega à conclusão de que as pessoas querem ouvir mentiras (capítulo 19).

Como muitos jovens, Henry tem raiva do sucesso - o grande alvo mítico - que ele mesmo deseja alcançar:

“Senti que eu precisava ganhar. Senti que aquilo era muito importante. Não sabia por que era importante e fiquei pensando, por que acho que isso é tão importante? Enquanto outra parte de mim respondia, é porque é.” (capítulo 58 final)

Ele gostaria de ser amado e admirado sem ter que trocar a camisa curta manchada de pus e sangue das suas acnes imensas. Porém, ao dar-se conta de que apenas um enxame de fracassados o cerca na hora do lanche, um mais patético do que o outro, todos eles indefesos, Henry Chinaski constrói para si mesmo sua imagem de big loser, negligente, bêbado, solitário, cheio de desprezo por todo mundo. Para ele, o fracasso consciente é uma opção válida. Ele decide ser uma crítica viva a tudo o que há de falso, artificial e irritante no sucesso dos rapazes de cabelos loiros e pulôveres brancos impecáveis, que dirigem carros de cores berrantes e vão estudar na Universidade de South California, antes de tornarem-se os médicos e advogados ricos e famosos do país. 

Fazer papel de big loser, ou de happy loser, sempre é algo que um jovem pode fazer para se defender do fracasso real, aquele que pode acontecer durante a vida adulta. É como se tornar-se um fracassado por antecipação diminuísse as expectativas e amenizasse todas as derrotas futuras. Na minha adolescência, muitos rapazes – inclusive eu – pensávamos assim. Nossa inspiração não era Henry Chinaski, mas John Lydon (a.k.a. Johnny Rotten) dos Sex Pistols. Ele nos ensinava que anger is an energy  e, se você não for verdadeiramente desprezível, não terá o direito de desprezar profundamente os outros. Não demorou muito, eu descobri que esse pensamento estava num daqueles livros que realmente me ensinaram alguma coisa: Notas do Subterrâneo, de Dostoiévski (Nietzsche, que parece ter sido um sujeito inteligente, também aprendeu uma ou duas coisinhas nesse livro). 

No fundo, trata-se de um fenômeno da sociedade moderna, mais agudo nos jovens, mas que também é vivido pelos adultos e pelos velhos: só receberemos reconhecimento se nos comportarmos bem... e renunciarmos àquilo que nos torna diferentes uns dos outros (esta aí a causa da conhecida sensação de perdermos a alma). Diante dos olhos dos outros, que esperam de nós comportamentos previsíveis e sensatos, nossas angústias mais íntimas e nossas diferenças mais irredutíveis nos fazem parecer monstrengos (vide o desabafo da Raleigh em Lost at Sea: “I’m an anti-social monster. I’m such a fuckup. I’m – I’m – I’m medíocre fuckup, even. I’m not even good at fucking up. He might not love me? That’s cause for a fucking breakdown? What is this? I’m stupid! I feel stupid! I’m horrible!!” – Bryan Lee O’Malley, Lost at Sea). Não admira que ela, menina exemplar, reconhecida como superdotada desde a terceira série, bonita, alta e de boa postura, sinta ter perdido a alma. Ela tinha que vomitar toda a sua raiva e sua esquisitice para recuperá-la. 

A melhor literatura moderna é a da crise do sujeito, esmagado entre o conformismo e a vontade de chutar uns traseiros e dizer uns impropérios em voz alta. Por isso quem fala agora  não é seu pai, mas o professor de literatura: acho que você está pronta para mais um livro sobre as arestas do futuro, sobre fracasso e perda da alma, sobre confusão e decisão. Leia o quanto antes Perto do Coração Selvagem. Escrito por Clarice Lispector ainda na adolescência,  o romance conta a infância e a juventude de Joana, que é um pouco Holden, um pouco Henry, um pouco Raleigh, um pouco Nancy e um pouco Sid, um pouco Kathe – megera, mas indomável -, um pouco você. 

Um beijo muito grande e mande seu irmão criar juízo e fazer sucesso na vida.



Um comentário:

  1. Engraçada a sensação de ter desacelerado vida cedo e, até agora, ter a impressão de não ter começado a vida adulta. Será a falta de trabalho? A vida sexual, em si, esporádica?
    Seria isso crise do sujeito ou choradeira?
    Abraço!

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