sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Como reconhecer um tolo






Há muitas antologias de bobagens escolares na internet. Desse material, uma parte é certamente apócrifa: algumas frases conhecidas em velhas piadas são apresentadas como “pérolas” recentes. O que importa aqui não é a autenticidade das antologias, mas a sua verossimilhança. Seus disparates parecem aqueles que os professores leem nas redações e nas provas mensais do ensino médio.

Apesar da sua variedade, mesmo uma triagem rápida permite distinguir quatro ou cinco modalidades de besteira nessas antologias.

Especialmente lamentáveis são os momentos em que os estudantes produzem invenções gráficas, sintáticas e vocabulares que desejam emular a norma culta, mas apenas demonstram letramento insuficiente:

“O bem star  dos abtantes endependente  de roça, religião, sexo e vegetarianos, está preocudan-do-nos.”

“Também preoculpa o avanço regesssivo da violência.” 

“Precisamos tirar as fendas dos olhos para enxergar com clareza o número de famigerados que almenta.”

São comuns as afirmações errôneas que resultam do desconhecimento de fatos ou conceitos que já deveriam estar consolidados num aluno de ensino médio. É o que acontece quando um estudante escreve que “As principais cidades da América do Norte são Argentina e Estados Unidos.” 

Outras vezes o erro resulta da confusão vocabular, bastante compreensível quando meros nomes dissociados de conteúdo se misturam na mente do estudante. Trata-se do conhecido efeito “samba do crioulo doido”: “Entres os índios de América, destacam-se os aztecas, os incas, os pirineus.

Existem bobagens produzidas por debilidade lógica. São as que resultam da dificuldade de lidar com as relações de causa e efeito, de parte e todo, de significante e significado.

“Em Esparta as crianças que nasciam mortas eram sacrificadas.”


“A Terra é um dos planetas mais conhecidos no mundo.” 


A ilusão teleológico-antropomórfica, isto é, a crença de que as coisas existam para cumprir alguma finalidade humanamente significativa, é responsável por besteiras difíceis de extirpar:

"As constelações servem para esclarecer a noite."

Há ainda as afirmações que são bobagens apenas do ponto de vista das expectativas ideológicas e linguísticas corriqueiras, mas que contém verdades dignas de consideração.

“O Brasil é um País abastardo com um futuro promissório.”

“Tiradentes, depois de morto, foi decapitulado.”

“É preciso melhorar as indiferenças sociais e promover o saneamento de muitas pessoas.”

“No começo os índios eram muito atrazados mas com o tempo foram se sifilizando.”

Nesse caso, eu sinto que há uma genialidade linguística em estado bruto à espera de polimento e instrução. Seria extremamente desejável desenvolver o talento de fazer trocadilhos que exponham o ridículo dos clichês. "País abastardo com futuro promissório" é uma locução pela qual Oswald de Andrade daria um braço. Dizer que "Tiradentes foi decapitulado" (decapitação mais capitulação) é contestar, à maneira do Barão de Itararé, a história oficial do Brasil. 

Acreditar que os alunos cometeram gafes vergonhosas ao escreverem essas frases mostra bem o metro conservador e purista dos autores de listas de besteiras. Esses alunos estão apenas inconscientes de seu potencial verbal e continuarão assim enquanto estiverem sob as ferraduras de professores que relincham de prazer quando julgam achar um "erro" onde houve apenas a ruptura de um chavão.

Somente o conservadorismo dos antologistas e o seu respeito às convenções explicariam a inclusão da declaração seguinte numa lista de bobagens escolares:

"O clima de São Paulo é assim: quando faz frio é inverno; quando faz calor é verão; quando tem flores é primavera; quando tem frutas é outono e quando chove é inundação." 

A meu ver, trata-se de uma maneira divertida - e bastante lógica - de evidenciar que, em São Paulo, as estações do ano são convenções arbitrárias. Todavia, o antologista parece acreditar no oposto disso. Pior para ele.


II

As bobagens escolares merecem alguma caridade segundo o princípio evangélico de aborrecer o pecado e perdoar o pecador (especialmente quando o pecado é inócuo). Mais difíceis de perdoar são as bobagens ditas e escritas por pessoas que dispõem de uma tribuna: professores, publicitários, padres, pastores, jornalistas e políticos. Gente que fala por dever profissional muitas vezes diz qualquer coisa, pouco importa se verdadeira ou falsa, desde que cause o efeito desejado nos ouvintes. É essa indiferença oportunista quanto à distinção entre verdadeiro e falso que o filósofo Harry Frankfurt definiu como a essência do “falar merda”. 

Enquanto o homem veraz e o mentiroso estão fundamentalmente interessados no conhecimento dos fatos (para afirmar a verdade ou para ocultá-la), no caso do falador de merda “seu enfoque não é sobre os fatos (...) a não ser que sirvam a seu interesse de se safar com o que diz” (Sobre Falar Merda, Intrínseca, 2005, p. 58). 

Para Harry Frankfurt, duas situações justificam a proliferação do ato de falar merda no mundo contemporâneo. 

Primeiro, nas sociedades democráticas complexas, as pessoas são estimuladas a dar sua opinião sobre assuntos que excedem amplamente sua capacidade intelectual e seus conhecimentos: “É inevitável falar merda toda vez que as circunstâncias exijam de alguém falar sem saber o que está dizendo.” (idem, p. 64)

Segundo, a disseminação de vários tipos de ceticismo que negam a possibilidade de acesso a uma realidade objetiva acaba por minar qualquer esforço de determinar o que é verdadeiro. “Uma das reações a essa perda de confiança tem sido o afastamento da disciplina requerida pelo ideal da correção em direção a um tipo de disciplina totalmente diferente, que é imposto pela perseguição do ideal alternativo de sinceridade.” (idem, p. 64) 

Será que se fala tanta merda por vivermos em sociedades democráticas dominadas por teorias céticas que negam o acesso à realidade objetiva? Será que se falava menos merda nas sociedades aristocráticas doutrinadas por teólogos que alegavam ter algum acesso à realidade transcendente? Fundamentalistas cristãos, muçulmanos e judeus não falam merda?  Com certeza eles não são céticos.

Não é apenas a indigência do diagnóstico conservador que me incomoda no ensaio de Frankfurt. Também é assombroso que o autor não dê sequer um exemplo do objeto de sua análise.

Para suprir essa insuficiência, voltarei às bobagens escolares. Talvez a luz dos exemplos concretos ajude a esclarecer em que consiste o falar merda.


III

Para apreciar de maneira desimpedida o panorama da bobagem é melhor afastar os erros grosseiros de linguagem e as afirmações factualmente equivocadas. Merecedores de análise são aqueles casos em que a bobagem assume uma forma sentenciosa e quase lapidar. Uma dessas “pérolas” circula desde a década de 1980 e ganhou certa notoriedade:

Antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto.”

A ausência de referências espaciais e temporais e o imperfeito “era” remetem a um tempo de fábula. Trata-se da formulação mítica de uma origem, que não pode ser corroborada ou falseada por informações históricas precisas. A indeterminação histórico-geográfica parece colocar a frase a salvo de qualquer refutação. Ela é tão genérica que chega a ser banal e dispensável: aparentemente  viria daí o seu status de bobagem. No entanto, quando se analisa sua estrutura lógica, a frase perde a sua aparência de tautologia.

Do ponto de vista formal, a frase é a conclusão de um argumento simples:

(1) Se existe a Justiça, todo mundo é justo.  (se A, então B)
(2) Houve uma época em que a Justiça não existia (não A)
(3) Portanto, nessa época, ninguém era justo. (então não B)

Para o autor da frase, a negação do antecedente acarreta a negação do consequente. Essa é uma falácia lógica extremamente comum, que invalida a própria forma do raciocínio.

Tão grave quanto a forma falaciosa é a imprecisão semântica dos termos “ser criada”, “Justiça”, “todo mundo” e “injusto”.  

(1) O verbo “criar” tem múltiplos empregos:

- fazer surgir algo completo a partir do nada (Deus criou o mundo);
- inventar algo a partir de elementos preexistentes (O artista criou sua obra-prima);
- cuidar de algo que se desenvolve aos poucos (Os pais criam os filhos).

(2) A palavra “Justiça” pode significar:

- o conceito ou definição teórica da Justiça (A Justiça segundo Kant);
- o conjunto de regras e leis que regulam as relações humanas (A Justiça ou o Direito Romano);
- o aparato de Estado que julga e pune (O suspeito vai ser levado à Justiça);
- as relações humanas reguladas por normas equitativas (ele é um homem que ama a Justiça).

(3) “Todo mundo” é uma expressão que pode indicar:

- a totalidade das pessoas (todo mundo morre um dia)
- as pessoas em sua maioria numérica (todo mundo votou no Presidente Obama)
- as pessoas na regularidade de seus comportamentos cotidianos (todo mundo estuda e trabalha, nem todo mundo sonha escalar o Everest).

(4) O adjetivo “injusto” é usado quando uma das partes envolvidas numa situação se considera prejudicada e acusa a outra parte de ter obtido vantagem agindo sem conformidade às normas. Ocorre que a falta de conformidade às normas pode ser entendida de várias maneiras:

- agir de maneira meramente oportunista (É injusto que uma pessoa sadia estacione o carro na vaga de deficientes, mesmo que seja por uns poucos minutos);
- agir de maneira desonesta e maliciosa (É injusto que o empregador não pague o salário que foi combinado);
- agir de maneira arbitrária, ora respeitando ora desprezando certas normas (O resultado do jogo foi injusto: o juiz não seguiu direito as regras).

O sentido da frase depende da maneira como se combinam as várias acepções de cada um dos termos, de modo que a afirmação “Antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto” pode querer dizer que:

Antes que o conceito de Justiça fosse criado do nada, a totalidade das pessoas agia de maneira desonesta e maliciosa

ou

Antes que o aparato judicial fosse desenvolvido aos poucos, a maioria das pessoas era oportunista

ou

“Antes que se inventassem as relações humanas pautadas pela equidade, as pessoas agiam de maneira arbitrária na sua vida cotidiana”

etc.


IV

É verdade que todas as linguagens naturais são imprecisas e que é fácil produzir enunciados ambíguos. Também é verdade que a fraqueza de nossos sentidos e de nosso intelecto nos torna propensos à ilusão e ao erro. Justamente por isso precisamos de uma profilaxia intelectual. É preciso examinar, sem precipitação, as afirmações. A pressa, a impaciência com as exigências do exame e o desprezo leviano pela recomendação profilática são marcas que identificam os indivíduos que dizem bobagem. 

A negligência com a profilaxia intelectual é preocupante nas profissões que lidam com o conhecimento. Pesquisadores e professores, todos competentes em suas áreas de atuação, vez ou outra exibem uma incrível capacidade de produzir  besteiras quando resolvem dar suas opiniões sobre assuntos que não dominam. 

Em data recente, um professor de Física postou este comentário numa rede social da Internet:

A minha percepção é que o pessoal da área de ciências humanas ficou preso no passado, estudando filosofias, modelos propostos por pensadores e ficou nisso. Não vejo cientistas políticos propondo modelos para um sistema político mais eficiente do que temos agora. Será que não existe, será que neste aspecto chegamos ao rendimento de 100%? Não vejo cientistas sociais propondo modelos para se acabar com tensões religiosas, políticas. Não vejo cientistas sociais propondo modelos para tornar a sociedade mais saudável do ponto de vista moral e ético. Ficam olhando para o passado, ensinando suas respectivas ciências em sala de aula com viés totalmente político e não contribuindo como deveriam para a melhoria da sociedade.”

O texto é marcado pela imprecisão semântica.

Quem é o “pessoal da área de ciências humanas? Os professores universitários de Filosofia, Letras, História, Comunicações, Artes, Geografia, Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Psicologia e Economia? Também estão incluídos os professores de História, Geografia e Sociologia dos colégios e cursinhos? Serão apenas os cientistas sociais e os cientistas políticos? Serão apenas os que lecionam nas universidades?

O que são os “modelos” nas ciências humanas? Descrições observacionais dos vários aspectos do comportamento humano no plano individual e social? Formulações matemáticas das regularidades do comportamento humano no plano individual e social?  Propostas normativas de reestruturação global das sociedades? 

O que é “sociedade”?  O conjunto das relações humanas ou os grupos geograficamente localizados? Qual o âmbito da sociedade? As cidades? As nações? A totalidade dos seres humanos?

O que significa ser “mais saudável do ponto de vista moral e ético”? Uma abertura tolerante para a variedade de comportamentos humanos ou uma exigência de uniformidade? Neste caso, a uniformidade estaria em agir de acordo com os princípios morais de alguma tradição cultural-religiosa específica ou de acordo com princípios universais?  

O que é o “viés totalmente político” dos cientistas sociais? O fato de que muitos cientistas sociais manifestam suas posições políticas? O fato de que os cientistas sociais acreditam que os problemas sociais devem ser resolvidos por meios políticos e não por reformas morais? Ou trata-se de acusar os cientistas sociais de escreverem panfletos ao invés de pesquisas objetivas?

Essas imprecisões semânticas e a generalidade das declarações (nenhum nome é citado, nenhuma instituição, nenhuma revista científica, nenhum site, nenhum texto de apoio) são evidências de que o autor está dando palpite em casa estranha. Ainda assim, mui confiante na veracidade de sua "percepção", atreveu-se a convocar o “pessoal das ciências humanas” à tarefa de criar a saúde moral da sociedade pois, caso contrário, ela continuará moralmente doente.  Trata-se de transformar a frase "antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto" no princípio norteador da pesquisa social...

E assim voltamos à “pérola” cujo valor já conhecemos. 

Resta a suspeita de que, se os estudantes são capazes de escrever besteiras com tanta desenvoltura, é porque tem diante de si o modelo de muita gente, inclusive dos seus professores. A tolice é algo que se aprende e, em alguns lugares, também se ensina.




Harry Frankfurt comenta que um dos traços mais notáveis da nossa época é que se fale tanta merda. 

No seu ensaio, ele argumenta que o ato de falar merda é definido pela indiferença oportunista quanto à distinção entre o verdadeiro e o falso por parte do enunciador. Todavia, Harry Frankfurt não dá ênfase suficiente ao fato de que essa indiferença é um efeito da ignorância. Todo falante de merda é ignorante sobre o assunto da sua locução. 

Não se trata daquela ignorância que é a condição básica de todos os seres humanos e que, ao custo de muitos esforços, tentamos diminuir a cada dia. Estar ciente da própria ignorância é justamente a razão pela qual se adota a profilaxia intelectual.

O falante de merda ignora a extensão e a profundidade da sua ignorância. Muitas vezes, ele acredita que sabe algo, mas devido à pressa, à preguiça ou à presunção, dispensa o exame das afirmações. O acaso, o entusiasmo e a imperícia linguística fazem o resto.

Portanto, nem sempre o falante de merda é indiferente ao verdadeiro e ao falso e nem sempre ele é oportunista, razão pela qual acredito ser necessário ampliar o conceito de falar merda para abranger quatro práticas discursivas:


- o discurso leviano (falar sem pensar, movido pelo ímpeto ou pelo prazer de causar algum efeito nos ouvintes);


- a impostura intelectual (falar de maneira aparentemente segura, quando não se sabe ou não se tem o que dizer, com a intenção de ganhar a confiança do ouvinte. Trata-se da própria essência da "enrolação");

- a tolice pretensiosa (dar recomendações e conselhos sobre assuntos que não conhece);


- a burrice ingênua (dizer disparates a sério, como acontece nas "pérolas" escolares).


Em todas essas práticas, está em ação um ignorante que se satisfaz com informações fragmentadas e incertas (que ele toma por conhecimento!) nas quais ele julga ver as credenciais válidas e suficientes para falar merda ad libitum.


Ao contrário do que sugere o ensaio de Harry Frankfurt, a bobagem, qualquer que seja o seu nível de elaboração, tem marcas discursivas reconhecíveis: erros factuais graves, imprecisões semânticas, generalizações e falácias formais. São os sinais de que, no alto de uma montanha fecal, está sempre a ignorância militante e desinibida. 






domingo, 16 de dezembro de 2012

No Père Lachaise: dois amigos conversam







A carta da semana passada foi ocasião do diálogo intercontinental que reproduzimos a seguir




Léo

Acabei de ler a carta! Fiquei muito feliz e, principalmente, vai ser um caminho que percorrerei traçando a "minha" Paris. 


Valdir
A “sua” Paris já está se fazendo aos poucos pela repetição dos caminhos cotidianos. As cidades são redes de circuitos práticos. Nunca iremos percorrê-los todos, mas alguns deles é preciso trilhar de olhos fechados. Uma cidade se torna “nossa” por insistência e aborrecimento. Mas é preciso ter força para não deixar que o tédio e o déjà vu sufoquem a nossa surpresa de recém-chegados, caso contrário vamos perder a capacidade de enxergar os recantos à margem dos circuitos práticos. Eu falo daqueles lugares em que sentimos a urgência de declarar que nada é urgente. Essa aderência é imediata e saudavelmente irracional. Simplesmente não sei explicar porque gosto tanto da rue de Barres, atrás da Igreja de Saint-Gervais. Não é simplesmente por ser uma viela antiga e pouco frequentada. Se fosse assim, eu não me sentiria tão bem na frente da Shakespeare & Co., onde a muvuca não dá trégua.
Então você concorda com o que escrevi na carta? 


Léo
De cara posso falar de duas impressões que se identificaram 100% com as suas: a minha aversão, crescente eu diria, pelos otários do mundo (na sua maioria turistas) e pelos que andam pelo Père Lachaise como se estivessem em um supermercado com sua lista de compras na mão. 


Valdir
Nem adianta ficar bravo com os turistas. Eles fazem parte da paisagem e é bom que eles estejam lá. São o verdadeiro termômetro da normalidade social de um lugar. Quando os turistas desaparecem subitamente é sinal de que logo chegarão os jornalistas fazendo cobertura extraordinária ou os correspondentes de guerra... Um turista é alguém que queria muito estar ali, mas por falta de instrução e de tempo, não tem condições de ler o grande livro da cidade. Ele adquire, então, resumos fáceis na forma de trajetos prontos e camisetas. O turista fica feliz quando suas opiniões preconcebidas foram confirmadas; de volta para casa, ele pode repetir os clichês que sempre ouviu de outros turistas. Dentre as várias espécies de otários do mundo, os turistas são verdadeiros virtuoses da unanimidade. Não se deve negar que há algum mérito nisso. Mas você estava falando dos turistas e dos que passeiam pelo Père Lachaise como se estivessem num supermercado...


Léo
Vou me concentrar nos últimos, porque acho que minha ida ao Père Lachaise foi o estopim para a aversão aos primeiros. 


Valdir:  
Histórias de cemitério são as minhas favoritas. 


Léo: 
No primeiro mês que estava aqui, eu morei com uma família de accueil, como parte do programa intensivo de francês, e dei a sorte de ser uma casa no 11eme, entre as estações Voltaire e Philippe Auguste, a umas três quadras do Père Lachaise. Morei com uma senhora de uns 60 anos que, como dizia ela, tinha uma vida bem particular (e um budget très limité, o que não me permitia tomar mais de 4 minutos contados de banho, mesmo com os 40º do verão) e um gato chamado Général. 


Valdir
Uma senhora de 60 anos com um gato! Très bizarre! Com certeza, ela deve ser a única na França! Pelo nome do gato, ela deve ser gaullista. E você queria tomar banhos de mais de quatro minutos? Muita gente perdeu a cabeça na Revolução por banhos mais curtos que esse. Não viu o que aconteceu com Marat, no famoso quadro de David? Aquilo foi um banho de três minutos e meio! 
Bom, já que estava pertinho do cemitério, deve ter ido várias vezes.


Léo
Pela proximidade achei que a primeira coisa que faria era visitar o cemitério, mas o curso de francês não cumpriu com minhas expectativas e foi muito mais puxado do que imaginei. Resultado, era a última semana que eu ia morar ali, eu tinha que fazer um exposé sobre motores elétricos em carros para o dia seguinte e eu tinha que ir ao Père Lachaise. Como era 15 de agosto, feriado, dividi meu dia em três: faria toda a apresentação até às 3, enviaria para a professora corrigir (ponto que era obrigatório), iria para o cemitério, voltaria às  4 e terminava o trabalho. 


Valdir
Eu recomendo que, assim que puder, você tire uns dias de férias em Paris. A cidade é ótima quando não se está trabalhando tanto. 


Léo
Preciso confessar que minha primeira motivação para ir era ver Jim Morrison e depois dele, todos os outros famosos. Pela pouca quantidade de pessoas que queria ver, julguei que seria tranquilo vê-los em uma hora. Bom, fiz o que tinha que fazer e fui. 
Entrando, a primeira coisa que fiz foi pegar um mapa. Tinha uma pequena fila para pegá-los no balcão de informações, onde uma moça tirava (im)pacientemente as dúvidas de todos os turistas americanos. 


Valdir
Parece que muito da fama de mau humor dos parisienses vem da atitude dos funcionários públicos. Tente imaginar a situação da moça: eternamente aborrecida por causa do salário ruim, do trabalho sem perspectiva e da necessidade de atender os milhares de turistas que fazem sempre as mesmas perguntas. E passar o dia todo num cemitério! Eu fico até com dó da funcionária.  


Léo
O mais interessante ocorreu quando a pessoa na minha frente, que era francesa, estava tirando suas dúvidas e uma adolescente, novamente americana, para não pegar a fila dos mapas entrou na cabine e pegou ela mesma um. O que se seguiu foi um olhar fulminante e um silêncio de uns 5 segundos, quebrados pelos risos da senhora na minha frente, seguidos dos meus. 


Valdir
You lucky bastard! Você presenciou um daqueles momentos em que duas culturas se chocam frontalmente: a eficiência norte-americana baseada no self-service e a burocracia francesa sustentada sobre a tirania que o pequeno burocrata exerce no limite do seu guichê. A adolescente norte-americana usurpou uma prerrogativa que a República Francesa concedeu à funcionária pública em nome dos imortais princípios de 1789. Eu queria ver uma cena dessas e dar risada também!


Léo
Peguei meu mapa e o que pude observar é que, após esse episódio, todos os que se dirigiam a ela em inglês eram tratados impacientemente. Naquele momento percebi que os visitantes, turistas e funcionários não operavam segundo as mesmas diretrizes. Por 30 segundos pensei em qual categoria eu me encaixava e me convenci de que eu não era (e não poderia ser) um turista. 


Valdir
Você foi capaz de refletir sobre a situação e compreendê-la rapidamente: definitivamente você não é um turista.


Léo: 
Marquei no mapa o caminho que faria para ver os túmulos famosos. 


Valdir
Você não nega o engenheiro que é...


Léo
Me convenci que era uma ação emergencial por causa da falta de tempo. Nisso já era 3:15. Decidi ir direto a Jim, que era o principal e o que eu conseguisse fazer com o resto do tempo seria lucro. 


Valdir
Desculpe, Léo, mas ainda é o seu alter-ego engenheiro que está falando...


Léo
Olhei o caminho e comecei, mas mal dei cinco passos, desviei o caminho para o monumento aos mortos. 


Valdir
Agora sim o poeta está cobrando seus direitos!


Léo: 
Depois foram as árvores ao redor que chamaram minha atenção e 10 minutos depois eu ainda estava lá. Ou seja, o relógio me colocou de novo no rumo dos Doors. Consegui chegar, apesar do mapa mal feito (acredito que propositalmente), mas depois foi outra batalha até conseguir um espaço para ver o túmulo dele. É realmente uma sensação interessante estar tão perto de um quase-ídolo. 


Valdir
Nós não encontramos o túmulo de Jim Morrison. Com certeza, o mapa foi feito de maneira displicente por algum funcionário público entediado e mal remunerado que queria se divertir um pouco desorientando os visitantes, que seriam obrigados a voltar para pedir mais informações. Então, o funcionário se levantaria da sua cadeira, daria dois passos para fora da portaria e explicaria  com gestos vagos onde se esconde a sepultura tão procurada. É sempre um jeito de justificar a importância do seu emprego e fingir que se é útil para alguém...
Em todo caso, você foi persistente e encontrou o túmulo do Jim Morrison. E então?


Léo: 
Missão cumprida. Eu tinha agora 25 minutos para aproveitar. Bom, vi La Fontaine, Molière e faltava só Oscar Wilde para completar a hora. Foi no que eu cheguei a uma das praças e vi o túmulo de um deputado, algo bem suntuoso, bem pretensioso: ele matou a justiça! Tirei umas fotos para comprovar!


Foto: Léo Mesquita


Foto: Leo Mesquita

Depois de rir sozinho dessa figura e olhar novamente o caminho que devia fazer, percebi que tinha muito naquele lugar e que eu tinha que procurar minha visão daquilo, então comecei a andar por entre os túmulos menores ao invés de ir pelos caminhos principais.


Foto: Léo Mesquita

Achei mensagens, imagens, esculturas muito interessantes e, como você falou, mais próximos e mais convidativos a ficar admirando e imaginando. 


Valdir
Muitos desses  anônimos quiseram conquistar a mais baixa forma de fama póstuma: o ridículo tumular. É como se dissessem aos passantes: Orai por nós, os deserdados do bom gosto!


Léo
Alguns me chamaram a atenção. O primeiro eu achei enquanto estava perdido procurando Chopin (que pra mim foi um dos mais tocantes - com o perdão do trocadilho).


Foto: Léo Mesquita



O segundo também. Isso é para você perceber o tempo que levei para achar Chopin. 

Foto: Léo Mesquita

Mas valeu a pena. 


Foto: Léo Mesquita

Nesse momento já era quase 5 horas e eu já tinha desistido de fazer o trabalho de francês e comecei a aproveitar o lugar e tudo que ele tinha para mostrar. 


Valdir
Exatamente um daqueles lugares em que sentimos a urgência de declarar que nada é urgente, como eu dizia no começo. Um dos túmulos que mais gosto é o de Victor Noir, que fotografei em 2010:




Léo
Rodei várias vezes, vi Oscar Wilde e os milhões de beijos, dei a volta e vi Balzac. Achei alguém que morreu com orgulho de ser engenheiro e resolvi também registrar.

Foto: Léo Mesquita

Nos últimos minutos antes de fechar, sentei um pouco naquela praça no alto que tinha uma bela vista de Paris. E entrei em um momento de reflexão.


Valdir: 
Está tudo em Balzac. No final de Père Goriot,  Rastignac – que acompanhara o pobre enterro de Goriot -, olha para a cidade desse mesmo lugar e faz o desafio: “À nous deux maintenant”.


Léo: 
E entrei em um momento de reflexão... Que foi quebrado por turistas, acredito que espanhóis, que me perguntavam se eu sabia onde estava Jim Morisson.  


Valdir: 
Dá para entender bem a impaciência dos funcionários da portaria!


Léo: 
Às vezes me pergunto se eu tenho cara de alguém que sabe das coisas, porque sempre me pedem informação na rua. Primeira semana que eu estava em São Paulo já tinha gente me perguntando onde era isso, onde era aquilo. O pior de tudo é que não é raro eu me enganar e mandar a pessoa pro lugar errado. 


Valdir: 
Eu tenho pena de todo mundo que me pede informações de rua. Eu sempre mando as pessoas para o caminho errado. Se houver inferno, deve existir um círculo só para os que desencaminham as pessoas. Com um GPS quebrado pendurado ao pescoço, cada condenado deve tentar sair de um labirinto pedindo informação para mim.


Léo
Enfim, disse que sabia, tentei explicar, não nos entendemos e eu resolvi levá-los até lá. 


Valdir: 
Como ousa usurpar a prerrogativa da funcionária da portaria? A moça vai perder o emprego se os visitantes começarem a pegar os mapas por conta própria e se orientarem mutuamente. Será a anarquia! Você correu o risco de ser fuzilado no fundo do cemitério, junto com os communards.


Léo: 
E acabei o dia exatamente por onde comecei, faltavam 10 minutos para fechar e eu estava de novo frente a frente com Jim. Mas dessa vez tive um momento de epifania e tirei uma foto de um angulo curioso e por um momento estive quase convencido de que ele ainda estava vivo e de jeito nenhum estava ali 

Foto: Léo Mesquita


Valdir
A inscrição em grego - kata ton dáimona eautou - significa que Jim viveu de acordo com as instruções de seu próprio daímon, isto é, seu gênio interior. Como Sócrates, nos diálogos de Platão.
Dizem que Jim Morrison e Allan Kardec são os mortos mais visitados. Muita gente acha que Jim não está morto (ou pelo menos não está enterrado no Père Lachaise); quanto a Kardec, se a doutrina dele estiver certa, não há nada merecedor de visita no seu túmulo. 
Mas estou seguro de que os dois estão bem mortos. Há testemunhas de que Jim Morrison aparece como um fogo fátuo cantando “Light my fire”. Os franceses juram que o Jim é apenas uma emanação de gás inflamável.


Léo: 
Talvez seja somente a maneira de os parisienses se vingarem por ele ser o mais visitado dali. 
Após ser educadamente expulso, ainda encontrei a família Adams!

Foto: Léo Mesquita

Retornei para casa, afinal ainda tinha que terminar o trabalho, mas me prometi que voltaria ainda várias vezes ali (promessa ainda não cumprida); das próximas, com música e um livro. 


Valdir
Quando você finalmente cumprir essa promessa, me diga que músicas e que livro você levou. Vou dar umas sugestões: escute “Je ne regrette rien” em frente ao túmulo de Edith Piaf; para o túmulo de Chopin, é preciso que seja a Sonata nº 2 (opus 35); para o túmulo de Jim Morrison, talvez “Break on Through”. Se o cemitério estiver cheio, escute também “People are strange”.
Afinal, você conseguiu terminar as suas obrigações e tarefas do curso?


Léo
Quando cheguei, lá estavam os comentários da professora e muito o que corrigir. Fiquei até 2h da manhã terminando tudo. 


Valdir: 
É justamente a partir desse horário que o Jim Morrison canta duetos com Edith Piaf...


Léo: 
E voltando à senhorinha, no primeiro dia ela disse que eu não precisava me preocupar com horário de chegar em casa e dormir, porque ela dormia muito tarde. Várias foram as vezes que ela, com espanto genuíno, me perguntou se eu não dormia. Acho que ela ainda não tinha se deparado com um estudante universitário dos dias de hoje, ou pelo menos um estudante universitário brasileiro de engenharia, que é o meu caso.


Valdir: 
Você sabe que é muito fácil ficar deslumbrado com a cidade e esquecer dos estudos. A maior parte dos meus conhecidos amoleceu logo. Espero que você continue com essa firmeza de propósitos. E juro que não estou sendo irônico!


Léo: 
Espero não ter enrolado muito com a história! E que você tenha gostado das fotos! Isso foi uma tentativa de agradecer e mostrar o quanto eu gostei da sua carta! Ah, uma parte que está sendo muito importante na minha Paris é meu quarto aqui em Palaiseau. O sol se põe todo dia na minha janela e às vezes consigo boas imagens. 


Foto: Léo Mesquita

Foto: Léo Mesquita

Foto: Léo Mesquita



domingo, 9 de dezembro de 2012

Uma carta parisiense em sete quadros





Carta a Léo Mesquita



Léo,

Muitas vezes quis fazer o mapa da “minha” Paris.

A Paris dos trabalhadores que mergulham bem cedo no ventre da terra, apressados, aborrecidos, de olhos inchados de sono, apinhados nas plataformas das estações de metrô do 12e. arrondissement.  

A Paris em que a vietnamita que trabalha no mercado Casino (45 rue de Reuilly) já me viu tantas vezes que me pergunta se eu não quero fazer uma carte fidelité

A Paris das frutas e legumes fresquinhos dispostos em pirâmides nas barracas da rua d’Aligre, naquela hora da manhã em que os restaurateurs e as concierges vem se abastecer com as cenouras de Colmar ou as cebolas doces das Cévennes. 

A Paris do português da feira livre do boulevard Edgar Quinet que, ao nos ouvir conversando na língua de Eça e de Machado, sorri e oferece azeitonas a Ludmila, transida de frio na manhã de seis graus negativos.
A Paris em que meu filho Ivan, para encher o saco do seu professor de sociologia, se faz fotografar junto do túmulo de Émile Durkheim.

A Paris em que, num banco de pranchão, minha filha Beatriz toma sol no pátio do Museu da Idade Média, protegida do barulho do mundo pelos altos muros que o Abade de Cluny mandou erguer no século XV. 

A Paris da praça da Sorbonne, onde vou espiar a vitrine da Librairie Philosophique J. Vrin, a mesma em que meus professores e mestres adquiriram munição para a agrégation ou para o doutorado. 

A Paris dos doces tunisianos da esquina da rua de la Harpe com a Saint-Séverin, não muito longe de Saint-Julien-le-Pauvre, que você já conhece.

Essa Paris é difícil de descrever e de compartilhar. Ela é quase toda íntima, modesta, feita de gestos simples, como o do operário que me explicou como dar um tranco na catraca do metrô da Gare de Lyon para economizar o bilhete. Nem você nem eu queremos aquela outra Paris – famosíssima -  que vive de vender cartões postais, chaveiros e bolsas da Louis Vuitton para os otários do mundo todo. Sobre essa Paris das sacolas eu prefiro calar. 

Há, porém, uma terceira Paris: a que nos chega pela poesia e pela história, toda feita de discursos, de cenas de romance, de filmes e de versos truncados. A cidade de Père Goriot, Éducation Sentimentale, Les Amants du Pont Neuf, Les Enfants du Paradis e dos Tableaux Parisiens. Essa cidade - construída na linguagem e na memória - atravessa o prisma de cada passante culto e refrata, mais do que gostaríamos, o espectro de nossas felicidades e angústias secretas. É dessa cidade que eu quero falar. 

Não é tanto a Paris dos lugares, mas a das sensações que acompanham, como a reminiscência de um perfume, certas passagens de Baudelaire. São os meus quadros parisienses, que espero que você aceite como prova de amizade e promessa de conversa em algum café do boul Mich. (A estação de metrô Saint-Michel está integrada ao RER. De Palaiseau, é muito fácil chegar lá, portanto, você não tem desculpas para não aparecer!) 


Estação Hôtel de Ville



Fourmillant cité, cité plein de rêves,
Où le spectre,  en plein jour, raccroche le passant!
Les mystères partout coulent comme des sèves
Dans les canaux étroits du colosse puissant
(Les Fleurs du Mal: Les Sept Vieillards)

O metro é incontornável como os canais em Veneza.  Os corredores vazios são enganosos. Nunca estamos sozinhos. Por perto, há sempre um músico, um ladrãozinho, um policial, um estudante, uma idosa que teima em enfrentar as escadas apesar dos joelhos doloridos. 

Nenhum lugar de Paris é tão bom para praticar a flânerie quanto os labirintos de azulejos brancos. Sem nada que distraia nossa vista, além dos cartazes de shows e dos anúncios de cosméticos da L’Óreal, podemos nos perder à vontade em nossas próprias evocações. 

Na linha 1, a estação Reuilly-Diderot é a boca pela qual eu entro nas entranhas da hidra, que vai me cuspir no Hôtel de Ville. Juro que se não fosse casado, pediria a mão da moça cuja voz escande duas vezes o título de cada parada, mas já percebi que ela é muito ocupada. Neste reino, o chavão “métro, boulot, dodo” vale como lema de vida para para os locais e para o meio milhão de franciliens que o sistema RER despeja na cidade a cada dia. 

Muito aliviado de não estar no frenesi de São Paulo, eu remo no sentido contrário, quase como um dândi de outros tempos. É por isso que tenho lazer suficiente para ver que, de Vincennes, o metrô traz uns senhores com as jaquetas muito puídas, cercados de chineses, vietnamitas e gente das ilhas Reunião. Vez por outra, até algum malgaxe extraviado. Na estação Bastilha, começam a entrar as secretárias e os jovens executivos bem alinhados que trabalham na Défense e votam na UMP. Na Rivoli descem os comerciários; na Palais Royal, as japonesas infatigáveis que vão fotografar todo o acervo do Louvre. Eu desço antes, no Hôtel de Ville, e vou me encontrar com o Sena que, desde a primeira vez, me abraçou como um velho amigo, apesar do rigor gelado de suas águas invernais. 



Ilha São Luís vista da Ponte d'Arcole


L’aurore grelottante en robe rose et verte
S’avançait lentement sur la Seine déserte,
Et le sombre Paris, en se frottant les yeux
Empoignant ses outils, vieillard laborieux.
(Les Fleurs du Mal: Le Crépuscule du matin)

Sobre a ponte d’Arcole, olhando o canal entre a Ilha da Cité e a Ilha São Luís, murmuro o mantra que aprendi com Giuseppe Ungareretti:

Questa è la Senna
E in quel suo torbido
Mi sono rimescolato
E mi sono conosciuto.

Sem pressa, atravesso a ponte e cruzo o parvis de Notre-Dame. Por precaução, sempre me afasto da possível trajetória dos suicidas-assassinos que pulam do frontão da catedral. Não quero morrer como a coitada da mãe de Amélie Poulain.  Avanço até o meio do parvis e me lembro de que, junto daquelas torres, o bom gigante Gargantua puniu a estupidez dos parisienses, urinando sobre a multidão que não sai dali.

Gargantua visitou a cidade e foi visto por todo mundo com grande admiração, pois o povo de Paris é tão tolo, tão basbaque e tão inepto por natureza, que um saltimbanco, um bufarinheiro, uma mula com campainhas, um velho no meio de uma praça, reúnem mais gente do que faria um bom pregador evangélico. E tanto o perseguiram, que ele foi obrigado a se refugiar entre as torres de Notre Dame. (...) Então, sorrindo, abriu a sua bela braguilha, e tirando para o ar livre o soberbo mastro, os regou tão fartamente, que afogou duzentos e sessenta mil, quatro centos e dezoito pessoas, fora mulheres e crianças.
Alguns deles fugiram daquela mijada com toda a força dos pés. E, quando chegaram além da Universidade, suando, tossindo, escarrando e perdendo o fôlego, começaram a renegar e a praguejar, rogando todas as pragas de Deus, uns furiosos, outros rindo.”
(Rabelais, Gargântua e Pantagruel, Livro I, capítulo XVII)

Eu me levanto. Na ponte Au Double, observo um bateau-mouche e tenho vontade de cuspir na cabeça dos suecos felizes que fotografam o cais Montebello e os arcobotantes da velha catedral.  Acabo não cuspindo em ninguém porque,  ao lado da Ludmila, um garotinho no colo da mãe dá bonjour a todos os que passam. Eu também fui inocente assim, mas não me lembro quando.



Fonte do Boulevard Saint-Michel


Quand, ainsi qu'un poète, il descend dans les villes,
II ennoblit le sort des choses les plus viles,
Et s'introduit en roi, sans bruit et sans valets,
Dans tous les hôpitaux et dans tous les palais.
(Le Fleurs du Mal: Le Soleil)

Paris é uma festa nos domingos de sol. No boulevard Saint-Michel, verifico como anda a luta entre o santo guerreiro e o dragão da maldade. Ao invés de labaredas, tudo se desfaz na água abundante da fonte. O RER nos deixa na estação dos Inválidos. A ponte Alexandre III solta faíscas de ouro. A cúpula da igreja dos Inválidos é a última coroa que Napoleão usurpou. E a mais bela. 

Vou à janela do Museu Rodin festejar o dia de luz.  


Igreja dos Inválidos vista do Museu Rodin


Jardim das Tulherias 


Quelle admirable journée! Le vaste parc se pâme sous l'œil brûlant du soleil, comme la jeunesse sous la domination de l'Amour.
L'extase universelle des choses ne s'exprime par aucun bruit; les eaux elles-mêmes sont comme endormies. Bien différente des fêtes humaines, c'est ici une orgie silencieuse.
(Petits poèmes en prose: Le Fou et la Vénus)

É janeiro e faz sol. Às treze horas, a temperatura sobe a dez graus. Os jatos da Dassault rabiscam as alturas e garantem que seja feita a vontade do Presidente da República Francesa tanto na terra como no céu. Multidões lotam o Jardim de Luxemburgo, as Tulherias, as margens do Sena e do Canal Saint-Martin, o Bois de Boulogne e o Buttes Chaumont. Massas enlouquecidas pela luz disputam ferozmente cada cadeirinha. 

Nos países tropicais, a luz quente do verão neutraliza tudo. Quase cancela nossa existência. Nos países temperados, um dia de sol no inverno é um chamado para a vida. Não dá tempo para metáforas nem para conceitos. Proíbe qualquer  nostalgia. Por um momento nos é dado não pensar.


Torre Eiffel vista do Palácio de Chaillot


Nul astre d’ailleurs, nuls vestiges
De soleil, même au bas du ciel,
Pour illuminer ces prodiges,
Qui brillaient d’un feu personnel!
(Le Fleurs du Mal: Rêve Parisien)

Nunca subi a Torre Eiffel. À medida que me aproximo, ela me aborrece cada vez mais. O elegante formato de candelabro se desfaz e surge um amontoado de ferro com rebites, como uma ponte antiga colocada no lugar errado. O grafismo vertical é derrotado pelo peso do metal. De perto, a torre parece que vai afundar. Ela é apenas a representação de uma ilusão, ela é a promessa de que a bigorna é capaz de alçar voo. 

Para apreciá-la, é preciso recuar até a esplanada do Chaillot e ignorar os vendedores e as adolescentes que se amontoam para as fotos. É melhor se estiver anoitecendo. Não tenha pressa. Leve consigo as músicas de que mais gosta. Logo a torre irá jogar seu jato de luz, velando pelo rebanho que vive junto aos seus pés.


Cemitério Père Lachaise

Pluviôse, irrité contre la ville entière,
De son urne à grands flots verse un frois ténébreux
Aux pales habitants du voisin cimetière
Et la mortalité sur les faubourgs brumeux.
(Les Fleurs du Mal: Spleen)

Paris é uma cidade da História. Isso quer dizer que os mortos são mais numerosos que os vivos. É preciso andar pelas alamedas do Père Lachaise, de preferência aquelas que não tem mortos de fama. As marquesas empobrecidas com a Revolução, os veteranos das campanhas napoleônicas, os burgueses da Terceira República merecem todos o nosso desprezo. É preciso visitá-los e rir das sepulturas ridículas com que eles tentaram ganhar um pobre ersatz de imortalidade. É preciso rir de cada um deles e imaginar que seremos os próximos. 


Pont Neuf: estátua equestre de Henri IV


Solitude, silence, incomparable chasteté de l’azur !
(Petits poèmes en prose: Confiteor de l’artiste)

Anoitece. Nesta hora é preciso estar perto do Sena. É fácil entender o Impressionismo quando as luzes da cidade se acendem e as águas turvas do rio se enchem de manchas de cor. Nos dias claros de inverno, o céu adquire um azul muito fundo, o ar respira um cheiro de santidade. É bom passar pela ponte Neuf, descer ao extremo da Ilha da Cité e contemplar as águas que seguem na direção de Rouen. 

Já não há gaivotas. No Louvre, as japonesas estão terminando de fotografar o acervo. A voz do metrô repete pela milésima vez “Hôtel de Ville... Hôtel de Ville...” A loja de doces tunisianos já fechou. Os executivos da Défense fazem a happy hour.  Os parisienses compram o pão e o vinho do jantar. Os bateau-mouches se esmeram nas luzes. A Samaritaine, fechada há tantos anos, insiste em se anunciar. Os mortos de Paris são assim. Tarde da noite, quando o último transeunte se recolhe, a estátua equestre de Henri IV ganha vida e galopa pela Place Dauphine.

Às cinco da manhã, Paris acorda. Então será outra vez a hora de ouvir Jacques Dutronc.


Mande um grande abraço para a Juh!