sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Como reconhecer um tolo






Há muitas antologias de bobagens escolares na internet. Desse material, uma parte é certamente apócrifa: algumas frases conhecidas em velhas piadas são apresentadas como “pérolas” recentes. O que importa aqui não é a autenticidade das antologias, mas a sua verossimilhança. Seus disparates parecem aqueles que os professores leem nas redações e nas provas mensais do ensino médio.

Apesar da sua variedade, mesmo uma triagem rápida permite distinguir quatro ou cinco modalidades de besteira nessas antologias.

Especialmente lamentáveis são os momentos em que os estudantes produzem invenções gráficas, sintáticas e vocabulares que desejam emular a norma culta, mas apenas demonstram letramento insuficiente:

“O bem star  dos abtantes endependente  de roça, religião, sexo e vegetarianos, está preocudan-do-nos.”

“Também preoculpa o avanço regesssivo da violência.” 

“Precisamos tirar as fendas dos olhos para enxergar com clareza o número de famigerados que almenta.”

São comuns as afirmações errôneas que resultam do desconhecimento de fatos ou conceitos que já deveriam estar consolidados num aluno de ensino médio. É o que acontece quando um estudante escreve que “As principais cidades da América do Norte são Argentina e Estados Unidos.” 

Outras vezes o erro resulta da confusão vocabular, bastante compreensível quando meros nomes dissociados de conteúdo se misturam na mente do estudante. Trata-se do conhecido efeito “samba do crioulo doido”: “Entres os índios de América, destacam-se os aztecas, os incas, os pirineus.

Existem bobagens produzidas por debilidade lógica. São as que resultam da dificuldade de lidar com as relações de causa e efeito, de parte e todo, de significante e significado.

“Em Esparta as crianças que nasciam mortas eram sacrificadas.”


“A Terra é um dos planetas mais conhecidos no mundo.” 


A ilusão teleológico-antropomórfica, isto é, a crença de que as coisas existam para cumprir alguma finalidade humanamente significativa, é responsável por besteiras difíceis de extirpar:

"As constelações servem para esclarecer a noite."

Há ainda as afirmações que são bobagens apenas do ponto de vista das expectativas ideológicas e linguísticas corriqueiras, mas que contém verdades dignas de consideração.

“O Brasil é um País abastardo com um futuro promissório.”

“Tiradentes, depois de morto, foi decapitulado.”

“É preciso melhorar as indiferenças sociais e promover o saneamento de muitas pessoas.”

“No começo os índios eram muito atrazados mas com o tempo foram se sifilizando.”

Nesse caso, eu sinto que há uma genialidade linguística em estado bruto à espera de polimento e instrução. Seria extremamente desejável desenvolver o talento de fazer trocadilhos que exponham o ridículo dos clichês. "País abastardo com futuro promissório" é uma locução pela qual Oswald de Andrade daria um braço. Dizer que "Tiradentes foi decapitulado" (decapitação mais capitulação) é contestar, à maneira do Barão de Itararé, a história oficial do Brasil. 

Acreditar que os alunos cometeram gafes vergonhosas ao escreverem essas frases mostra bem o metro conservador e purista dos autores de listas de besteiras. Esses alunos estão apenas inconscientes de seu potencial verbal e continuarão assim enquanto estiverem sob as ferraduras de professores que relincham de prazer quando julgam achar um "erro" onde houve apenas a ruptura de um chavão.

Somente o conservadorismo dos antologistas e o seu respeito às convenções explicariam a inclusão da declaração seguinte numa lista de bobagens escolares:

"O clima de São Paulo é assim: quando faz frio é inverno; quando faz calor é verão; quando tem flores é primavera; quando tem frutas é outono e quando chove é inundação." 

A meu ver, trata-se de uma maneira divertida - e bastante lógica - de evidenciar que, em São Paulo, as estações do ano são convenções arbitrárias. Todavia, o antologista parece acreditar no oposto disso. Pior para ele.


II

As bobagens escolares merecem alguma caridade segundo o princípio evangélico de aborrecer o pecado e perdoar o pecador (especialmente quando o pecado é inócuo). Mais difíceis de perdoar são as bobagens ditas e escritas por pessoas que dispõem de uma tribuna: professores, publicitários, padres, pastores, jornalistas e políticos. Gente que fala por dever profissional muitas vezes diz qualquer coisa, pouco importa se verdadeira ou falsa, desde que cause o efeito desejado nos ouvintes. É essa indiferença oportunista quanto à distinção entre verdadeiro e falso que o filósofo Harry Frankfurt definiu como a essência do “falar merda”. 

Enquanto o homem veraz e o mentiroso estão fundamentalmente interessados no conhecimento dos fatos (para afirmar a verdade ou para ocultá-la), no caso do falador de merda “seu enfoque não é sobre os fatos (...) a não ser que sirvam a seu interesse de se safar com o que diz” (Sobre Falar Merda, Intrínseca, 2005, p. 58). 

Para Harry Frankfurt, duas situações justificam a proliferação do ato de falar merda no mundo contemporâneo. 

Primeiro, nas sociedades democráticas complexas, as pessoas são estimuladas a dar sua opinião sobre assuntos que excedem amplamente sua capacidade intelectual e seus conhecimentos: “É inevitável falar merda toda vez que as circunstâncias exijam de alguém falar sem saber o que está dizendo.” (idem, p. 64)

Segundo, a disseminação de vários tipos de ceticismo que negam a possibilidade de acesso a uma realidade objetiva acaba por minar qualquer esforço de determinar o que é verdadeiro. “Uma das reações a essa perda de confiança tem sido o afastamento da disciplina requerida pelo ideal da correção em direção a um tipo de disciplina totalmente diferente, que é imposto pela perseguição do ideal alternativo de sinceridade.” (idem, p. 64) 

Será que se fala tanta merda por vivermos em sociedades democráticas dominadas por teorias céticas que negam o acesso à realidade objetiva? Será que se falava menos merda nas sociedades aristocráticas doutrinadas por teólogos que alegavam ter algum acesso à realidade transcendente? Fundamentalistas cristãos, muçulmanos e judeus não falam merda?  Com certeza eles não são céticos.

Não é apenas a indigência do diagnóstico conservador que me incomoda no ensaio de Frankfurt. Também é assombroso que o autor não dê sequer um exemplo do objeto de sua análise.

Para suprir essa insuficiência, voltarei às bobagens escolares. Talvez a luz dos exemplos concretos ajude a esclarecer em que consiste o falar merda.


III

Para apreciar de maneira desimpedida o panorama da bobagem é melhor afastar os erros grosseiros de linguagem e as afirmações factualmente equivocadas. Merecedores de análise são aqueles casos em que a bobagem assume uma forma sentenciosa e quase lapidar. Uma dessas “pérolas” circula desde a década de 1980 e ganhou certa notoriedade:

Antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto.”

A ausência de referências espaciais e temporais e o imperfeito “era” remetem a um tempo de fábula. Trata-se da formulação mítica de uma origem, que não pode ser corroborada ou falseada por informações históricas precisas. A indeterminação histórico-geográfica parece colocar a frase a salvo de qualquer refutação. Ela é tão genérica que chega a ser banal e dispensável: aparentemente  viria daí o seu status de bobagem. No entanto, quando se analisa sua estrutura lógica, a frase perde a sua aparência de tautologia.

Do ponto de vista formal, a frase é a conclusão de um argumento simples:

(1) Se existe a Justiça, todo mundo é justo.  (se A, então B)
(2) Houve uma época em que a Justiça não existia (não A)
(3) Portanto, nessa época, ninguém era justo. (então não B)

Para o autor da frase, a negação do antecedente acarreta a negação do consequente. Essa é uma falácia lógica extremamente comum, que invalida a própria forma do raciocínio.

Tão grave quanto a forma falaciosa é a imprecisão semântica dos termos “ser criada”, “Justiça”, “todo mundo” e “injusto”.  

(1) O verbo “criar” tem múltiplos empregos:

- fazer surgir algo completo a partir do nada (Deus criou o mundo);
- inventar algo a partir de elementos preexistentes (O artista criou sua obra-prima);
- cuidar de algo que se desenvolve aos poucos (Os pais criam os filhos).

(2) A palavra “Justiça” pode significar:

- o conceito ou definição teórica da Justiça (A Justiça segundo Kant);
- o conjunto de regras e leis que regulam as relações humanas (A Justiça ou o Direito Romano);
- o aparato de Estado que julga e pune (O suspeito vai ser levado à Justiça);
- as relações humanas reguladas por normas equitativas (ele é um homem que ama a Justiça).

(3) “Todo mundo” é uma expressão que pode indicar:

- a totalidade das pessoas (todo mundo morre um dia)
- as pessoas em sua maioria numérica (todo mundo votou no Presidente Obama)
- as pessoas na regularidade de seus comportamentos cotidianos (todo mundo estuda e trabalha, nem todo mundo sonha escalar o Everest).

(4) O adjetivo “injusto” é usado quando uma das partes envolvidas numa situação se considera prejudicada e acusa a outra parte de ter obtido vantagem agindo sem conformidade às normas. Ocorre que a falta de conformidade às normas pode ser entendida de várias maneiras:

- agir de maneira meramente oportunista (É injusto que uma pessoa sadia estacione o carro na vaga de deficientes, mesmo que seja por uns poucos minutos);
- agir de maneira desonesta e maliciosa (É injusto que o empregador não pague o salário que foi combinado);
- agir de maneira arbitrária, ora respeitando ora desprezando certas normas (O resultado do jogo foi injusto: o juiz não seguiu direito as regras).

O sentido da frase depende da maneira como se combinam as várias acepções de cada um dos termos, de modo que a afirmação “Antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto” pode querer dizer que:

Antes que o conceito de Justiça fosse criado do nada, a totalidade das pessoas agia de maneira desonesta e maliciosa

ou

Antes que o aparato judicial fosse desenvolvido aos poucos, a maioria das pessoas era oportunista

ou

“Antes que se inventassem as relações humanas pautadas pela equidade, as pessoas agiam de maneira arbitrária na sua vida cotidiana”

etc.


IV

É verdade que todas as linguagens naturais são imprecisas e que é fácil produzir enunciados ambíguos. Também é verdade que a fraqueza de nossos sentidos e de nosso intelecto nos torna propensos à ilusão e ao erro. Justamente por isso precisamos de uma profilaxia intelectual. É preciso examinar, sem precipitação, as afirmações. A pressa, a impaciência com as exigências do exame e o desprezo leviano pela recomendação profilática são marcas que identificam os indivíduos que dizem bobagem. 

A negligência com a profilaxia intelectual é preocupante nas profissões que lidam com o conhecimento. Pesquisadores e professores, todos competentes em suas áreas de atuação, vez ou outra exibem uma incrível capacidade de produzir  besteiras quando resolvem dar suas opiniões sobre assuntos que não dominam. 

Em data recente, um professor de Física postou este comentário numa rede social da Internet:

A minha percepção é que o pessoal da área de ciências humanas ficou preso no passado, estudando filosofias, modelos propostos por pensadores e ficou nisso. Não vejo cientistas políticos propondo modelos para um sistema político mais eficiente do que temos agora. Será que não existe, será que neste aspecto chegamos ao rendimento de 100%? Não vejo cientistas sociais propondo modelos para se acabar com tensões religiosas, políticas. Não vejo cientistas sociais propondo modelos para tornar a sociedade mais saudável do ponto de vista moral e ético. Ficam olhando para o passado, ensinando suas respectivas ciências em sala de aula com viés totalmente político e não contribuindo como deveriam para a melhoria da sociedade.”

O texto é marcado pela imprecisão semântica.

Quem é o “pessoal da área de ciências humanas? Os professores universitários de Filosofia, Letras, História, Comunicações, Artes, Geografia, Sociologia, Antropologia, Ciência Política, Psicologia e Economia? Também estão incluídos os professores de História, Geografia e Sociologia dos colégios e cursinhos? Serão apenas os cientistas sociais e os cientistas políticos? Serão apenas os que lecionam nas universidades?

O que são os “modelos” nas ciências humanas? Descrições observacionais dos vários aspectos do comportamento humano no plano individual e social? Formulações matemáticas das regularidades do comportamento humano no plano individual e social?  Propostas normativas de reestruturação global das sociedades? 

O que é “sociedade”?  O conjunto das relações humanas ou os grupos geograficamente localizados? Qual o âmbito da sociedade? As cidades? As nações? A totalidade dos seres humanos?

O que significa ser “mais saudável do ponto de vista moral e ético”? Uma abertura tolerante para a variedade de comportamentos humanos ou uma exigência de uniformidade? Neste caso, a uniformidade estaria em agir de acordo com os princípios morais de alguma tradição cultural-religiosa específica ou de acordo com princípios universais?  

O que é o “viés totalmente político” dos cientistas sociais? O fato de que muitos cientistas sociais manifestam suas posições políticas? O fato de que os cientistas sociais acreditam que os problemas sociais devem ser resolvidos por meios políticos e não por reformas morais? Ou trata-se de acusar os cientistas sociais de escreverem panfletos ao invés de pesquisas objetivas?

Essas imprecisões semânticas e a generalidade das declarações (nenhum nome é citado, nenhuma instituição, nenhuma revista científica, nenhum site, nenhum texto de apoio) são evidências de que o autor está dando palpite em casa estranha. Ainda assim, mui confiante na veracidade de sua "percepção", atreveu-se a convocar o “pessoal das ciências humanas” à tarefa de criar a saúde moral da sociedade pois, caso contrário, ela continuará moralmente doente.  Trata-se de transformar a frase "antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto" no princípio norteador da pesquisa social...

E assim voltamos à “pérola” cujo valor já conhecemos. 

Resta a suspeita de que, se os estudantes são capazes de escrever besteiras com tanta desenvoltura, é porque tem diante de si o modelo de muita gente, inclusive dos seus professores. A tolice é algo que se aprende e, em alguns lugares, também se ensina.




Harry Frankfurt comenta que um dos traços mais notáveis da nossa época é que se fale tanta merda. 

No seu ensaio, ele argumenta que o ato de falar merda é definido pela indiferença oportunista quanto à distinção entre o verdadeiro e o falso por parte do enunciador. Todavia, Harry Frankfurt não dá ênfase suficiente ao fato de que essa indiferença é um efeito da ignorância. Todo falante de merda é ignorante sobre o assunto da sua locução. 

Não se trata daquela ignorância que é a condição básica de todos os seres humanos e que, ao custo de muitos esforços, tentamos diminuir a cada dia. Estar ciente da própria ignorância é justamente a razão pela qual se adota a profilaxia intelectual.

O falante de merda ignora a extensão e a profundidade da sua ignorância. Muitas vezes, ele acredita que sabe algo, mas devido à pressa, à preguiça ou à presunção, dispensa o exame das afirmações. O acaso, o entusiasmo e a imperícia linguística fazem o resto.

Portanto, nem sempre o falante de merda é indiferente ao verdadeiro e ao falso e nem sempre ele é oportunista, razão pela qual acredito ser necessário ampliar o conceito de falar merda para abranger quatro práticas discursivas:


- o discurso leviano (falar sem pensar, movido pelo ímpeto ou pelo prazer de causar algum efeito nos ouvintes);


- a impostura intelectual (falar de maneira aparentemente segura, quando não se sabe ou não se tem o que dizer, com a intenção de ganhar a confiança do ouvinte. Trata-se da própria essência da "enrolação");

- a tolice pretensiosa (dar recomendações e conselhos sobre assuntos que não conhece);


- a burrice ingênua (dizer disparates a sério, como acontece nas "pérolas" escolares).


Em todas essas práticas, está em ação um ignorante que se satisfaz com informações fragmentadas e incertas (que ele toma por conhecimento!) nas quais ele julga ver as credenciais válidas e suficientes para falar merda ad libitum.


Ao contrário do que sugere o ensaio de Harry Frankfurt, a bobagem, qualquer que seja o seu nível de elaboração, tem marcas discursivas reconhecíveis: erros factuais graves, imprecisões semânticas, generalizações e falácias formais. São os sinais de que, no alto de uma montanha fecal, está sempre a ignorância militante e desinibida. 






2 comentários:

  1. Oi, Valdir.

    Sua ideologia profilática, ou como já nomeei de "desentupidor" com o cabo já pretejado, requisita um mundo mudo, porque silencioso seria outro caso, a mudez universal. Se me devo calar diante do que não posso falar, quando eu sequer poderia gemer? Quem daria um braço por isso?

    Tem cara de THX a sua profilaxia. Uma vida entre paredes bem branquinhas! Sugiro até que mude a cor de fundo do seu blog silenciador!

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  2. Robinson,

    Você está dizendo que, se fosse levada a sério, a exigência de profilaxia intelectual reduziria a totalidade das pessoas à mudez ?

    É isso o que você pensa das pessoas que o cercam? Você acha que elas falam merda o tempo todo?

    É claro que não é isso o que você e eu pensamos. No meu caso, a própria existência deste blog é sinal de minha confiança na possibilidade de falar com pessoas que faço questão de citar nominalmente pelo respeito que tenho por elas.

    Um abraço e Feliz Ano Novo!

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