domingo, 9 de dezembro de 2012

Uma carta parisiense em sete quadros





Carta a Léo Mesquita



Léo,

Muitas vezes quis fazer o mapa da “minha” Paris.

A Paris dos trabalhadores que mergulham bem cedo no ventre da terra, apressados, aborrecidos, de olhos inchados de sono, apinhados nas plataformas das estações de metrô do 12e. arrondissement.  

A Paris em que a vietnamita que trabalha no mercado Casino (45 rue de Reuilly) já me viu tantas vezes que me pergunta se eu não quero fazer uma carte fidelité

A Paris das frutas e legumes fresquinhos dispostos em pirâmides nas barracas da rua d’Aligre, naquela hora da manhã em que os restaurateurs e as concierges vem se abastecer com as cenouras de Colmar ou as cebolas doces das Cévennes. 

A Paris do português da feira livre do boulevard Edgar Quinet que, ao nos ouvir conversando na língua de Eça e de Machado, sorri e oferece azeitonas a Ludmila, transida de frio na manhã de seis graus negativos.
A Paris em que meu filho Ivan, para encher o saco do seu professor de sociologia, se faz fotografar junto do túmulo de Émile Durkheim.

A Paris em que, num banco de pranchão, minha filha Beatriz toma sol no pátio do Museu da Idade Média, protegida do barulho do mundo pelos altos muros que o Abade de Cluny mandou erguer no século XV. 

A Paris da praça da Sorbonne, onde vou espiar a vitrine da Librairie Philosophique J. Vrin, a mesma em que meus professores e mestres adquiriram munição para a agrégation ou para o doutorado. 

A Paris dos doces tunisianos da esquina da rua de la Harpe com a Saint-Séverin, não muito longe de Saint-Julien-le-Pauvre, que você já conhece.

Essa Paris é difícil de descrever e de compartilhar. Ela é quase toda íntima, modesta, feita de gestos simples, como o do operário que me explicou como dar um tranco na catraca do metrô da Gare de Lyon para economizar o bilhete. Nem você nem eu queremos aquela outra Paris – famosíssima -  que vive de vender cartões postais, chaveiros e bolsas da Louis Vuitton para os otários do mundo todo. Sobre essa Paris das sacolas eu prefiro calar. 

Há, porém, uma terceira Paris: a que nos chega pela poesia e pela história, toda feita de discursos, de cenas de romance, de filmes e de versos truncados. A cidade de Père Goriot, Éducation Sentimentale, Les Amants du Pont Neuf, Les Enfants du Paradis e dos Tableaux Parisiens. Essa cidade - construída na linguagem e na memória - atravessa o prisma de cada passante culto e refrata, mais do que gostaríamos, o espectro de nossas felicidades e angústias secretas. É dessa cidade que eu quero falar. 

Não é tanto a Paris dos lugares, mas a das sensações que acompanham, como a reminiscência de um perfume, certas passagens de Baudelaire. São os meus quadros parisienses, que espero que você aceite como prova de amizade e promessa de conversa em algum café do boul Mich. (A estação de metrô Saint-Michel está integrada ao RER. De Palaiseau, é muito fácil chegar lá, portanto, você não tem desculpas para não aparecer!) 


Estação Hôtel de Ville



Fourmillant cité, cité plein de rêves,
Où le spectre,  en plein jour, raccroche le passant!
Les mystères partout coulent comme des sèves
Dans les canaux étroits du colosse puissant
(Les Fleurs du Mal: Les Sept Vieillards)

O metro é incontornável como os canais em Veneza.  Os corredores vazios são enganosos. Nunca estamos sozinhos. Por perto, há sempre um músico, um ladrãozinho, um policial, um estudante, uma idosa que teima em enfrentar as escadas apesar dos joelhos doloridos. 

Nenhum lugar de Paris é tão bom para praticar a flânerie quanto os labirintos de azulejos brancos. Sem nada que distraia nossa vista, além dos cartazes de shows e dos anúncios de cosméticos da L’Óreal, podemos nos perder à vontade em nossas próprias evocações. 

Na linha 1, a estação Reuilly-Diderot é a boca pela qual eu entro nas entranhas da hidra, que vai me cuspir no Hôtel de Ville. Juro que se não fosse casado, pediria a mão da moça cuja voz escande duas vezes o título de cada parada, mas já percebi que ela é muito ocupada. Neste reino, o chavão “métro, boulot, dodo” vale como lema de vida para para os locais e para o meio milhão de franciliens que o sistema RER despeja na cidade a cada dia. 

Muito aliviado de não estar no frenesi de São Paulo, eu remo no sentido contrário, quase como um dândi de outros tempos. É por isso que tenho lazer suficiente para ver que, de Vincennes, o metrô traz uns senhores com as jaquetas muito puídas, cercados de chineses, vietnamitas e gente das ilhas Reunião. Vez por outra, até algum malgaxe extraviado. Na estação Bastilha, começam a entrar as secretárias e os jovens executivos bem alinhados que trabalham na Défense e votam na UMP. Na Rivoli descem os comerciários; na Palais Royal, as japonesas infatigáveis que vão fotografar todo o acervo do Louvre. Eu desço antes, no Hôtel de Ville, e vou me encontrar com o Sena que, desde a primeira vez, me abraçou como um velho amigo, apesar do rigor gelado de suas águas invernais. 



Ilha São Luís vista da Ponte d'Arcole


L’aurore grelottante en robe rose et verte
S’avançait lentement sur la Seine déserte,
Et le sombre Paris, en se frottant les yeux
Empoignant ses outils, vieillard laborieux.
(Les Fleurs du Mal: Le Crépuscule du matin)

Sobre a ponte d’Arcole, olhando o canal entre a Ilha da Cité e a Ilha São Luís, murmuro o mantra que aprendi com Giuseppe Ungareretti:

Questa è la Senna
E in quel suo torbido
Mi sono rimescolato
E mi sono conosciuto.

Sem pressa, atravesso a ponte e cruzo o parvis de Notre-Dame. Por precaução, sempre me afasto da possível trajetória dos suicidas-assassinos que pulam do frontão da catedral. Não quero morrer como a coitada da mãe de Amélie Poulain.  Avanço até o meio do parvis e me lembro de que, junto daquelas torres, o bom gigante Gargantua puniu a estupidez dos parisienses, urinando sobre a multidão que não sai dali.

Gargantua visitou a cidade e foi visto por todo mundo com grande admiração, pois o povo de Paris é tão tolo, tão basbaque e tão inepto por natureza, que um saltimbanco, um bufarinheiro, uma mula com campainhas, um velho no meio de uma praça, reúnem mais gente do que faria um bom pregador evangélico. E tanto o perseguiram, que ele foi obrigado a se refugiar entre as torres de Notre Dame. (...) Então, sorrindo, abriu a sua bela braguilha, e tirando para o ar livre o soberbo mastro, os regou tão fartamente, que afogou duzentos e sessenta mil, quatro centos e dezoito pessoas, fora mulheres e crianças.
Alguns deles fugiram daquela mijada com toda a força dos pés. E, quando chegaram além da Universidade, suando, tossindo, escarrando e perdendo o fôlego, começaram a renegar e a praguejar, rogando todas as pragas de Deus, uns furiosos, outros rindo.”
(Rabelais, Gargântua e Pantagruel, Livro I, capítulo XVII)

Eu me levanto. Na ponte Au Double, observo um bateau-mouche e tenho vontade de cuspir na cabeça dos suecos felizes que fotografam o cais Montebello e os arcobotantes da velha catedral.  Acabo não cuspindo em ninguém porque,  ao lado da Ludmila, um garotinho no colo da mãe dá bonjour a todos os que passam. Eu também fui inocente assim, mas não me lembro quando.



Fonte do Boulevard Saint-Michel


Quand, ainsi qu'un poète, il descend dans les villes,
II ennoblit le sort des choses les plus viles,
Et s'introduit en roi, sans bruit et sans valets,
Dans tous les hôpitaux et dans tous les palais.
(Le Fleurs du Mal: Le Soleil)

Paris é uma festa nos domingos de sol. No boulevard Saint-Michel, verifico como anda a luta entre o santo guerreiro e o dragão da maldade. Ao invés de labaredas, tudo se desfaz na água abundante da fonte. O RER nos deixa na estação dos Inválidos. A ponte Alexandre III solta faíscas de ouro. A cúpula da igreja dos Inválidos é a última coroa que Napoleão usurpou. E a mais bela. 

Vou à janela do Museu Rodin festejar o dia de luz.  


Igreja dos Inválidos vista do Museu Rodin


Jardim das Tulherias 


Quelle admirable journée! Le vaste parc se pâme sous l'œil brûlant du soleil, comme la jeunesse sous la domination de l'Amour.
L'extase universelle des choses ne s'exprime par aucun bruit; les eaux elles-mêmes sont comme endormies. Bien différente des fêtes humaines, c'est ici une orgie silencieuse.
(Petits poèmes en prose: Le Fou et la Vénus)

É janeiro e faz sol. Às treze horas, a temperatura sobe a dez graus. Os jatos da Dassault rabiscam as alturas e garantem que seja feita a vontade do Presidente da República Francesa tanto na terra como no céu. Multidões lotam o Jardim de Luxemburgo, as Tulherias, as margens do Sena e do Canal Saint-Martin, o Bois de Boulogne e o Buttes Chaumont. Massas enlouquecidas pela luz disputam ferozmente cada cadeirinha. 

Nos países tropicais, a luz quente do verão neutraliza tudo. Quase cancela nossa existência. Nos países temperados, um dia de sol no inverno é um chamado para a vida. Não dá tempo para metáforas nem para conceitos. Proíbe qualquer  nostalgia. Por um momento nos é dado não pensar.


Torre Eiffel vista do Palácio de Chaillot


Nul astre d’ailleurs, nuls vestiges
De soleil, même au bas du ciel,
Pour illuminer ces prodiges,
Qui brillaient d’un feu personnel!
(Le Fleurs du Mal: Rêve Parisien)

Nunca subi a Torre Eiffel. À medida que me aproximo, ela me aborrece cada vez mais. O elegante formato de candelabro se desfaz e surge um amontoado de ferro com rebites, como uma ponte antiga colocada no lugar errado. O grafismo vertical é derrotado pelo peso do metal. De perto, a torre parece que vai afundar. Ela é apenas a representação de uma ilusão, ela é a promessa de que a bigorna é capaz de alçar voo. 

Para apreciá-la, é preciso recuar até a esplanada do Chaillot e ignorar os vendedores e as adolescentes que se amontoam para as fotos. É melhor se estiver anoitecendo. Não tenha pressa. Leve consigo as músicas de que mais gosta. Logo a torre irá jogar seu jato de luz, velando pelo rebanho que vive junto aos seus pés.


Cemitério Père Lachaise

Pluviôse, irrité contre la ville entière,
De son urne à grands flots verse un frois ténébreux
Aux pales habitants du voisin cimetière
Et la mortalité sur les faubourgs brumeux.
(Les Fleurs du Mal: Spleen)

Paris é uma cidade da História. Isso quer dizer que os mortos são mais numerosos que os vivos. É preciso andar pelas alamedas do Père Lachaise, de preferência aquelas que não tem mortos de fama. As marquesas empobrecidas com a Revolução, os veteranos das campanhas napoleônicas, os burgueses da Terceira República merecem todos o nosso desprezo. É preciso visitá-los e rir das sepulturas ridículas com que eles tentaram ganhar um pobre ersatz de imortalidade. É preciso rir de cada um deles e imaginar que seremos os próximos. 


Pont Neuf: estátua equestre de Henri IV


Solitude, silence, incomparable chasteté de l’azur !
(Petits poèmes en prose: Confiteor de l’artiste)

Anoitece. Nesta hora é preciso estar perto do Sena. É fácil entender o Impressionismo quando as luzes da cidade se acendem e as águas turvas do rio se enchem de manchas de cor. Nos dias claros de inverno, o céu adquire um azul muito fundo, o ar respira um cheiro de santidade. É bom passar pela ponte Neuf, descer ao extremo da Ilha da Cité e contemplar as águas que seguem na direção de Rouen. 

Já não há gaivotas. No Louvre, as japonesas estão terminando de fotografar o acervo. A voz do metrô repete pela milésima vez “Hôtel de Ville... Hôtel de Ville...” A loja de doces tunisianos já fechou. Os executivos da Défense fazem a happy hour.  Os parisienses compram o pão e o vinho do jantar. Os bateau-mouches se esmeram nas luzes. A Samaritaine, fechada há tantos anos, insiste em se anunciar. Os mortos de Paris são assim. Tarde da noite, quando o último transeunte se recolhe, a estátua equestre de Henri IV ganha vida e galopa pela Place Dauphine.

Às cinco da manhã, Paris acorda. Então será outra vez a hora de ouvir Jacques Dutronc.


Mande um grande abraço para a Juh!




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