quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Aviso aos navegantes e banhistas




O autor, que passa a maior parte do ano submetido às injunções da docência proletarizada, tem agora as suas merecidas férias de verão. No entanto, como professor inveterado que é, solicita aos leitores pensarem um pouco a respeito do que escreveu em A claraboia e o holofote #15:


"O Manifesto do Partido Comunista sofre de legibilidade ilusória.

O que é atual não é o texto, inevitavelmente marcado pelo lugar e tempo da enunciação; atual é o efeito das forças econômicas, sociais e políticas que se apoderaram dos significantes e remanejaram os significados, num processo semelhante ao das conquistas territoriais.

O que me interessa na seção II não é a verdade do Manifesto nem a sua atualidade, mas as condições de sua legibilidade. O caráter instrumental, polêmico e imediato do Manifesto do Partido Comunista cobra um preço muito alto de seus leitores, mesmo que eles não se deem conta disso. O texto da seção II foi definitivamente rasurado pelos acontecimentos históricos subsequentes, desde a revolução de fevereiro de 1848 aos processos de Moscou – época em que se constituíram as peças da acusação movidas contra o comunismo, não só pelos liberais quanto por muitos marxistas."


O Sobrinho de Enesidemo volta em fevereiro para levar adiante essa proposta de leitura. 

Para os sectários de esquerda ou de direita, para os dogmáticos em geral e para os neófitos cheios de convicções, fica a advertência do Sobrinho de Enesidemo (que nesse particular saiu bem ao tio):

Caiam fora! 

Se quiserem simples opiniões e pontos de vistas, vão catar buritis noutras veredas. 

Este blog é um lugar para quem tem paciência de pensar.




quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A claraboia e o holofote #18





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


As lições de 48 (Parte 3)


1. Londres, março de 1850


A Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas, de março de 1850, é, logo depois do Manifesto, o documento mais notável do partido comunista de 1848. Enquanto o Manifesto oferece uma síntese histórica que justificaria a necessidade e a oportunidade da revolução proletária, a Mensagem à Liga dos Comunistas constitui um guia prático da luta revolucionária. 

A grande lição que Marx aprendera na sua experiência em Colônia e na análise dos acontecimentos em Paris é que as revoluções são processos que, uma vez desencadeados, não tem data para terminar. Todas as conquistas do proletariado podem ser perdidas no momento seguinte, todos os aliados podem se tornar inimigos. Embora Marx acreditasse ser possível identificar etapas do processo e vislumbrar o seu resultado final, ele reconhecia que o caminho era sinuoso e difícil.  O massacre de junho de 48 em Paris e a repressão militar de outubro e novembro na Alemanha e na Áustria provaram – sem margem de dúvida – que a vitória de uma revolução proletária não seria possível sem o uso da força e sem uma estrutura partidária disseminada em células locais, mas centralizada nas suas diretrizes. 

Marx e Engels não podiam mais contar com o poder avassalador de um levante espontâneo do proletariado, que o partido teria apenas que colocar no rumo de uma sociedade comunista. Em 1850, ainda aguardando uma revolução que não aconteceria (como ficou evidente logo depois), os autores da Mensagem à Liga dos Comunistas insistiam na urgência de uma organização coesa e disciplinada, que pudesse mobilizar os trabalhadores e manter o ardor revolucionário. 

Entre o Manifesto de 1848 e Mensagem de 1850, o partido comunista encontrava os termos do dilema que o perseguiria na sua refundação ao final da 1ª Guerra Mundial: deveria o partido assumir o papel de vanguarda de um proletariado militarizado, ou deveria acompanhar e expressar a espontaneidade revolucionária dos trabalhadores? 

Entre o Manifesto e a Mensagem, há uma outra mudança – talvez mais profunda e duradoura - que interessa não só aos marxistas, mas a toda esquerda, razão pela qual quero seguir um pouco mais de perto as linhas desse documento notável que é a Mensagem à Liga do Comunistas. 


2. O documento

No seu balanço das atividades da Liga no biênio revolucionário de 1848-49, Marx e Engels reconhecem a atuação enérgica dos comunistas e os acertos da análise feita no Manifesto. Todavia, admitem que a organização da Liga se enfraqueceu, enquanto o partido democrático da pequena-burguesia tomou força. Seria preciso que a Liga enviasse um emissário para reorganizar os comunistas alemães às vésperas de uma nova temporada revolucionária, de modo que o proletariado tivesse um partido independente, a fim de não ser explorado e traído pela burguesia. 

Em 1848, a grande burguesia alemã se voltou contra os trabalhadores tão logo alcançou o poder. Para Marx e Engels, essa burguesia, que se aliara à aristocracia feudal, seria derrubada em breve pelos democratas pequeno-burgueses, apoiados pela maioria da classe média urbana, pelos pequenos industriais e mestres artesãos, bem como por uma parte dos camponeses e do proletariado rural. 

Do ponto de vista social e político, o partido democrático da pequena burguesia era composto por três grupos:

(1) os elementos mais progressistas da grande burguesia, que queriam a abolição total do feudalismo e do absolutismo; 

(2) os democratas constitucionalistas, que formaram o parlamento dissidente de Stuttgart. Seu objetivo era um estado federativo; 

(3) a pequena burguesia republicana, cujo sonho era acabar com a pressão que a grande burguesia exercia sobre a pequena burguesia.

Depois da derrota política, esses grupos passaram a se denominar os “vermelhos”, o que indicava não tanto uma preocupação com os interesses dos trabalhadores, mas sim a necessidade de formar com o proletariado uma frente contra a grande burguesia, com o intuito de:

- reduzir os gastos do governo, diminuindo o aparato burocrático e transferindo a maior parte do ônus fiscal aos grandes proprietários;

- eliminar a pressão do grande capital sobre o pequeno capital pelo combate aos juros abusivos e pela criação de instituições públicas de crédito;

- introduzir as relações burguesas de propriedade no campo;

- manter sob controle a acumulação de capital, restringindo o direito de herança e atribuído ao Estado um papel mais amplo como empregador;

- conceder aos trabalhadores um sistema de seguridade e bem-estar social, que tornaria suas vidas mais toleráveis, aplacando o ímpeto revolucionário;

- criar um Estado alemão federativo e democrático.

Caso os democratas pequeno-burgueses sejam vitoriosos, o proletariado não deve se iludir com as concessões sociais e a conversa sobre democracia. A pequena burguesia vai procurar abreviar o período revolucionária, mas os trabalhadores devem manter a luta por uma sociedade comunista. Em razão disso, o proletariado, especialmente a Liga dos Comunistas, deve assumir as seguintes atitudes em relação ao partido democrático:

(a) No período pré-revolucionário, em que a pequena burguesia democrática também é oprimida

A pequena burguesia vai procurar aliança com o proletariado, mas este deve manter sua independência. Não será necessária nenhuma aliança formal porque, assim que começar a luta contra o inimigo comum, os interesses das duas classes vão coincidir. Os pequenos burgueses vão se mostrar indecisos como sempre, mas quando a vitória for certa, vão querer que os trabalhadores se conduzam da maneira mais ordeira possível. Nesse momento é importante que o proletariado não se deixe dominar e que imponha condições que irão minar a dominação pequeno-burguesa. Acima de tudo, o proletariado tem que manter viva a chama revolucionária. Os trabalhadores devem formar comitês executivos e conselhos para supervisionar e questionar o tempo todo o governo pequeno-burguês. Esses comitês e conselhos serão núcleos de um futuro governo revolucionários do proletariado.

(b) Durante o período revolucionário, em que pequena burguesia tentará conquistar o poder

Os operários tem que se armar para se opor ao futuro governo democrático da pequena burguesia. Se não for possível impedir a formação das tradicionais milícias de cidadãos, que serão dirigidas contra os operários, os trabalhadores devem formar suas guardas proletárias, colocadas sob o comando dos conselhos locais de trabalhadores. A destruição da influência da pequena burguesia democrática e a subversão das condições do futuro governo devem ser os objetivos principais do proletariado - e da Liga - durante o levante vindouro.

(c) No período pós-revolucionário, em que a pequena burguesia exercerá o seu domínio.

Assim que o novo governo se estabelecer, a sua luta contra o proletariado vai começar. Para fazer oposição aos democratas pequeno-burgueses, é necessário que os trabalhadores se organizem em associações com uma coordenação central. Quando forem convocadas as eleições, os trabalhadores devem tomar cuidado para:

- não permitir que as autoridades usem casuísmos para excluir das eleições alguma seção dos trabalhadores;

- nomear  candidatos dos trabalhadores em oposição aos democratas burgueses. Os trabalhadores devem manter sua independência, a despeito de toda a conversa dos democratas a respeito da necessidade de união contra os candidatos reacionários. 

No momento em que o partido democrático começar a governar, o primeiro ponto de desentendimento com os trabalhadores será a forma de abolir o feudalismo: a pequena burguesia vai defender a concessão de propriedades rurais para os camponeses; ao passo que os trabalhadores precisam exigir a nacionalização e a coletivização das terras, para evitar que as relações burguesas de propriedade se estendam ao campo.

O segundo ponto é que os democratas vão querer uma república federativa, ou vão tentar minar o governo central, garantindo o máximo de autonomia para os municípios e províncias. Os trabalhadores devem apoiar um estado centralizado e indivisível. 

É verdade que, no começo, os trabalhadores não poderão propor nenhuma medida diretamente comunista, mas as seguintes linhas de ação são possíveis:

- levar os democratas a intervir nas mais variadas áreas sociais, perturbando seu funcionamento normal;

- levar os democratas ao compromisso de concentrar cada vez mais forças produtivas nas mãos do Estado;

- levar as propostas dos democratas até as suas consequências lógicas e transformá-las em ataques diretos à propriedade. Por exemplo: se os democratas propuserem imposto proporcional, os trabalhadores deverão propor imposto progressivo; se os democratas pedirem a regulamentação da dívida pública, os trabalhadores deverão exigir o calote puro e simples. As exigências dos trabalhadores devem ser ajustadas de acordo com as medidas e as concessões dos democratas.

“Embora os trabalhadores alemães não possam tomar o poder e realizar seus interesses de classe sem passar por um contínuo desenvolvimento revolucionário, desta vez eles podem ao menos estar certos de que o primeiro ato da revolução vindoura irá coincidir com a vitória direta de sua própria classe na França e será acelerado por isso. Mas eles mesmos tem o dever de contribuir ao máximo para sua vitória final, informando-se a respeito de seus próprios interesses de classe, assumindo posição política independente o mais rápido possível; não se deixando enganar pelo fraseado hipócrita da pequena-burguesia democrática, de modo a duvidar da necessidade de um partido independente e organizado do proletariado. Seu grito de guerra deve ser: A Revolução Permanente.”


3. O programa estratégico e político do partido comunista de 1848, nas palavras de Marx e Engels

(a) A organização do partido

- a necessidade de ação pública e de comitês secretos

“Um grande número de membros que estavam diretamente envolvido no movimento pensaram que o tempo das sociedades secretas tinha passado e que bastava apenas a ação pública. Os distritos e comunas permitiram que suas conexões com o Comitê enfraquecessem e gradualmente estagnassem. De modo que, enquanto o partido democrático, o partido da pequena burguesia se tornava cada vez mais organizado na Alemanha, o partido dos trabalhadores perdia seu único apoio firme; nos casos mais favoráveis, ele permaneceu organizado apenas em alguns lugares para propósito locais. No quadro do movimento geral, ele ficou sob o total domínio dos democratas pequeno-burgueses. Não é admissível que essa situação continue: a independência dos trabalhadores deve ser restaurada.”

- o partido comunista é o próprio partido dos trabalhadores: forma uma unidade com eles e defende seus interesses. Por isso, deve ser coeso e independente.

“(...) agora que uma nova revolução é iminente, isto é, agora que o partido dos trabalhadores deve ir à luta com o máximo de organização, unidade e independência, para não ser explorado e levado a reboque pela burguesia como em 1848.”

“Mesmo onde não haja perspectiva de vencer as eleições, os trabalhadores devem apresentar seus próprios candidatos para preservar sua independência, para aferir sua própria força e para chamar a atenção do público para sua posição partidária e revolucionária. Eles não devem se deixar confundir pelos lemas vazios dos democratas, que alegarão que os candidatos dos trabalhadores vão dividir o partido democrático e dar chance de vitória às forças reacionárias. Toda essa conversa significa, em última análise, uma tentativa de fraudar o proletariado. Os avanços que o proletariado fizer de maneira independente são infinitamente mais importantes do que as desvantagens resultantes da presença de um punhado de reacionários no corpo representativo. Se as forças democráticas tomarem ações decisivas e de terror contra a reação desde o primeiríssimo momento, a influência reacionária nas eleições já terá sido destruída.”

- direção centralizada

“ (...) é intolerável, em qualquer circunstância, que cada vilarejo, cada cidade e cada província possa colocar obstáculos à atividade revolucionária, que só pode desenvolver-se com total eficiência a partir de um ponto central.”

(b) A estratégia do partido 

- Oposição sistemática à democracia burguesa

“O papel traiçoeiro que a burguesia liberal alemã desempenhou contra o povo em 1848 será assumido na próxima revolução pela pequena burguesia democrática, que agora ocupa a mesma posição da oposição burguesa liberal  antes de 48.”

“A destruição da influência dos democratas burgueses sobre os trabalhadores e a perturbação das condições  do domínio momentaneamente inevitável da democracia burguesa, dificultando-a tanto quanto possível: esse são pontos que o proletariado e, portanto, a Liga devem ter em mente durante e depois do levante que se aproxima.”

No que se refere aos trabalhadores, uma coisa é sempre certa: eles vão permanecer assalariados como antes. Contudo, os democratas pequeno-burgueses querem melhores salários e segurança para os trabalhadores, e esperam conseguir isso aumentando o número de empregados do Estado e adotando medidas de bem-estar; em resumo, eles esperam subornar os trabalhadores com esmolas mais ou menos disfarçadas, de maneira a quebrar o seu impulso revolucionário, tornando a situação mais tolerável.”

- Radicalização

“Eles [os trabalhadores] devem levar as propostas dos democratas à sua conclusão lógica extrema (os democratas, em cada situação, agirão de maneira reformista, não de maneira revolucionária) e transformar essas propostas em ataques diretos à propriedade privada. Se, por exemplo, a pequena burguesia propuser a compra das ferrovias e fábricas, os trabalhadores devem exigir que essas ferrovias sejam simplesmente confiscada pelo Estado sem compensação, como propriedade de reacionários.”

- Preparo para a luta armada e rompimento com o monopólio estatal do uso da força

“Para estarem prontos a se opor, em termos de força e de ameaça, a esse partido [o dos democratas pequenos-burgueses], cuja traição aos trabalhadores vai começar no próprio momento da vitória, os trabalhadores devem estar armados e organizados. Todo o proletariado precisa ser imediatamente armado com mosquetes, rifles, canhões e munições, e deve-se impedir o renascimento das tradicionais milícias de cidadãos, dirigidas contra os trabalhadores. Onde a formação dessas milícias não puder ser impedida, os trabalhadores devem tentar se organizar por conta própria como uma guarda proletária, com líderes eleitos e com sua própria estrutura de apoio eleita; eles devem se colocar não sob o comando da autoridade estatal, mas dos conselhos locais revolucionários formados pelos trabalhadores.”

(c) O programa político do partido comunista

- Centralização do poder estatal e concentração das forças produtivas nas mãos do Estado

“Os democratas irão trabalhar por uma república federativa, mas se não puderem evitar uma república una e indivisível, irão tentar paralisar o governo central concedendo aos municípios e províncias a maior autonomia e independência possíveis. Em oposição a esse plano, os trabalhadores devem se esforçar por uma Alemanha una e indivisível, e dentro dessa república, devem se esforçar principalmente pela centralização do poder nas mãos da autoridade estatal. Eles não devem se deixar confundir pelo discurso vazio dos democratas a respeito da liberdade municipal, do autogoverno etc. Em países como a Alemanha, em que tantos vestígios da Idade Média ainda não foram abolidos, em que tanta obstinação local e provinciana deve ser vencida, é intolerável, em qualquer circunstância, que cada vilarejo, cada cidade e cada província possa colocar obstáculos à atividade revolucionária, que só pode desenvolver-se com total eficiência a partir de um ponto central.”

 “Os trabalhadores podem forçar a maior concentração possível de forças produtivas – meios de transporte, fábricas, ferrovias etc. – nas mãos do Estado”.

- Revolução permanente em escala internacional por meio da subversão e do terror até a transformação completa da sociedade

“Enquanto o democrata pequeno burguês quer terminar a revolução o mais rápido possível (...), é nosso interesse e nossa tarefa manter permanentemente a revolução até que todas as classes proprietárias, grandes ou pequenas, tenham sido retiradas das posições governantes, até que o proletariado tenha conquistado o poder estatal e até que a associação dos proletários tenha avançando tanto – não somente em um único país, mas em todas as nações importantes do mundo – que cesse a competição entre os proletários desses países e que ao menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos dos trabalhadores. Nossa preocupação maior não pode ser simplesmente modificar a propriedade privada, mas aboli-la; não é abafar os antagonismos de classe, mas abolir as classes; não é melhorar a sociedade atual, mas fundar uma nova.”

“Acima de tudo, durante e imediatamente após a luta os trabalhadores, tanto quanto possível, devem se opor às tentativas burguesas de pacificação e forçar os democratas a levar adiante seus lemas de terror. Eles devem trabalhar para assegurar que a excitação revolucionária imediata não seja subitamente suprimida depois da vitória. Pelo contrário, ela deve ser sustentada tão longamente quanto possível. Longe de se opor aos chamados “excessos” – ocasiões de vingança popular contra indivíduos odiados ou contra edificações públicas associadas a uma memória odiosa – o partido dos trabalhadores deve não apenas tolerar essas ações, mas deve até mesmo dar-lhes uma direção.”


4.  Um problema da esquerda

A Mensagem de março de 1850, tão admirada por Lênin e Trotski, tornou-se um texto embaraçoso para os marxistas acadêmicos e para os neo-marxistas de maneira geral. Esse constrangimento é resultado, em parte, da obliteração do horizonte revolucionário a partir dos anos 1970 (obliteração que, aliás, nunca foi completa, a julgar pelos eventos de 2011 no mundo muçulmano); também é consequência da desconfiança – cada vez maior nos meios de esquerda - quanto às soluções baseadas na força. Todavia, parece-me que há uma terceira fonte de constrangimento, cujos sinais podem ser lidos no próprio abismo estilístico que existe entre o Manifesto de 1848 e a Mensagem de 1850. 

No espaço de dois anos, a audácia teórica, o atrevimento jovial e a abertura do Manifesto desaparecem totalmente. No seu lugar, surge o tom ressentido, minucioso, conspiratório e calculista. Nada de voos do condor, nada de arroubos à la Blanqui. Marx já não acredita mais em belas revoluções.

Também muda a escala e a amplitude do ponto de vista. No Manifesto, Marx empunhava o globo e fazia-o girar diante dos nossos olhos, na progressão vertiginosa dos séculos. Na Mensagem, tudo se reduz à dissecação anatômica da pequena burguesia democrática alemã e à análise de sua disposição à perfídia. É bem verdade que essa análise constitui uma primorosa peça de sociologia, mas também é verdade que Marx não faz nenhuma avaliação da força efetiva do proletariado, que ele invoca tantas vezes no texto como algo dado e sobejamente conhecido. (Por que esse silêncio? Tratava-se de auto-engano ou de uma estratégia para não desesperar os camaradas da tão debilitada Liga dos Comunistas?)

Há, porém, algo mais grave: na Mensagem de 1850 aflora um viés político que, seguindo uma fratura histórica dolorosa para a esquerda, esclarece o abismo estilístico que se abriu em relação ao Manifesto.

Não se trata do jacobinismo previsível e residual do documento, que aparece de maneira explícita (embora historicamente incorreta) quando se discute a necessidade de centralização do poder (“Como na França em 1793...”). O verdadeiro problema é que, muitas vezes, Marx e Engels se aproximam da ideia de que as oportunidades ditam os meios a serem usados, inclusive os mais extremos:

“Se as forças da democracia tomarem medidas decisivas e de terror contra a reação desde o começo, a influência reacionária nas eleições já terá sido destruída.”

A Realpolitik – termo que se difundiu nessa época - se apresenta cinicamente como uma arte do possível. Talvez não seja por outra razão que a fórmula “tanto quanto possível” ocorre a cada passo na Mensagem de 1850:

“Acima de tudo, durante e imediatamente após a luta os trabalhadores, tanto quanto possível, devem se opor às tentativas burguesas de pacificação e forçar os democratas a levar adiante seus lemas de terror. Eles devem trabalhar para assegurar que a excitação revolucionária imediata não seja subitamente suprimida depois da vitória. Pelo contrário, ela deve ser sustentada tão longamente quanto possível.”

Antes do biênio 48-49, o partido comunista era apenas o partido do contra, o partido da subversão. Foi a derrota diante de um movimento contrarrevolucionário, que não temia recorrer aos meios extremos (como o assassinato de prisioneiros que já tinham se rendido em junho de 48), foi essa derrota que transformou a Liga dos Comunistas num verdadeiro partido revolucionário. É isso que Marx explica num texto fundamental:

Em resumo: não foram suas conquistas tragicômicas que fizeram avançar a revolução; ao contrário, foi somente fazendo surgir uma contrarrevolução compacta e potente, criando um adversário e combatendo-o, que o partido da subversão pode se tornar, finalmente, um partido verdadeiramente revolucionário.  (As Lutas de Classes na França)

Naquele mês de março de 1850, em que escreviam a Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas, Marx e Engels pareciam ter chegado à conclusão de que um partido revolucionário não deve recuar diante de nenhum meio. Em outras palavras, não são os meios que devem distinguir a esquerda revolucionária e a direita reacionária. Lição de Realpolitik que foi retida por alguns tiranos do século XX. 

No entanto, o partido revolucionário assim definido não foi chamado à ação nos vinte anos seguintes. As esperanças que Marx ainda acalentava em março de 1850 logo desapareceram. Ele mergulhou nos estudos de economia política; mais tarde envolveu-se nas infindáveis discussões dentro da Associação Internacional dos Trabalhadores (a Primeira Internacional). 

Marx já era um homem envelhecido quando a revolução eclodiu novamente em Paris no ano de 1871. 





domingo, 8 de dezembro de 2013

A claraboia e o holofote #17





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



As lições de 1848 (Parte 2)


1. Na Alemanha

Após a queda de Napoleão, as potências vencedoras definiram, no Congresso de Viena, a nova ordem da Europa: uma ordem continental monárquica e reacionária, sustentada pela Rússia, pela Áustria e pela Prússia, reunidas na Santa Aliança. No entanto, na parcela da Europa sob a hegemonia austríaca e prussiana, a ordem instaurada em 1815 não demorou a ser confrontada por três tipos de demandas que, apesar de sua natureza diversa, se entrelaçavam nos protestos e proclamações.

Havia, em primeiro lugar, as demandas das nacionalidades suprimidas ou subjugadas pelas potências que derrotaram Napoleão no front oriental. Os poloneses queriam de volta a sua nação, que desaparecera na partilha entre a Rússia e a Prússia; o confuso mosaico formado por mais de trinta estados alemães sonhava com a unificação nacional; no Império dos Habsburgos, húngaros, lombardos, vênetos e vários povos eslavos reclamavam sua autonomia. 

Havia também as demandas políticas liberais, parlamentaristas, constitucionalistas e, às vezes, republicanas. Essas demandas eram feitas pelas burguesias nacionais, desejosas de diminuir o poder dos aristocratas latifundiários (como os Junkers prussianos) que ainda mantinham privilégios feudais.

Por último, havia as demandas sociais da classe trabalhadora, especialmente dos artesãos, cuja organização tradicional em oficinas e corporações de ofício era erodida pelo avanço do sistema industrial, baseado no trabalho não-qualificado de um proletariado miserável, que não cessava de multiplicar-se nas cidades. 

A revolução de março de 48 foi o momento em que todas as insatisfações eclodiram, em que todas as demandas foram proclamadas, em que todas as esperanças pareciam prestes a se realizar. 


Die Märzrevolution

A notícia da queda do rei Luís Felipe e da formação de um governo provisório democrático viajou com rapidez pela Europa. Ainda em fevereiro, no dia 27, a assembleia de Baden – um dos estados mais liberais da confederação alemã – exigiu uma carta de direitos. As assembleias de Württemberg, Hessen-Darmstadt e Nassau seguiram o exemplo. Diante do forte apoio popular a essas demandas, os governantes - intimidados - cediam e nomeavam gabinetes liberais. 

No dia 3 de março, pouco depois de receber as notícias de Paris, o jornalista Lajos Kossuth, líder da bancada nacionalista liberal na Dieta Húngara, discursou contra o absolutismo da corte de Viena e exigiu a liberdade política dos povos do Império Austríaco. 

No dia 5, cinquenta e um representantes liberais e radicais de seis estados alemães redigiram a declaração de Heidelberg, segundo a qual “o mais cedo possível uma assembleia ampla de homens de confiança de todos os povos alemães deverá se reunir para deliberação contínua sobre as matérias mais importante e oferecer sua cooperação à pátria e ao governo”.

No dia 10, com as manifestações dos trabalhadores em Berlim, a agitação revolucionária chegou ao coração da Prússia. Três dias depois, o levante popular em Viena derrubou Metternich, o grande articulador da política reacionária da Santa Aliança.  Em Milão e em Veneza, a queda de Metternich e sua fuga para Londres foram a centelha para a revolta contra as autoridades austríacas (a respeito da revolução de março em Milão, cf.  Il moto non è diverso dalla stasi # 2).

Em Berlim, o rei Frederico Guilherme IV foi obrigado a ceder à pressão popular. Ele nomeou um ministério liberal e aceitou a eleição de uma assembleia em Berlim para redigir uma constituição para a Prússia. 

No último dia março, os representantes dos estados que compunham a confederação alemã se encontraram na catedral de São Paulo, em Frankfurt. Esse parlamento prévio (Vorparlament) convocou eleições - por voto censitário - para escolher os deputados da Assembleia Nacional de toda a Alemanha, que elaboraria a constituição. A primeira reunião dos 550 deputados eleitos, a maioria deles professores universitários e eruditos, ocorreu no dia 18 de maio. Imediatamente começaram as discussões para a criação de um Estado alemão unificado e liberal. Os deputados se dividiam quanto ao desenho institucional dessa Alemanha:  deveria o Reich incluir o Império Austríaco, que assumiria o papel de líder de uma “Grande Alemanha”, ou deveria excluir a Áustria, cabendo a liderança à Prússia?  A nação alemã deveria ter um governo central ou seria uma federação de estados relativamente independentes, como ocorria na Suíça?


O armistício de Malmö e a crise de setembro

Os territórios contíguos do Schleswig e do Holstein, na fronteira entre a Dinamarca e a Prússia, eram motivo de litígio entre os dois reinos. A Dinamarca reclamava a integração do Schleswig, mas a maioria germânica do território queria manter sua ligação com o Holstein e com a Confederação Alemã. Em março de 1848, o levante da população majoritariamente alemã do Schleswig-Holstein teve apoio militar da Prússia. A Rússia e a Grã-Bretanha advertiram a Prússia para que retirasse suas tropas. O rei Frederico Guilherme concordou em ceder os territórios à coroa dinamarquesa no armistício assinado em Malmö em 26 de agosto. 

Para os nacionalistas, o abandono da população alemã do Schleswig-Holstein era infame; para a esquerda revolucionária, o fim da guerra significava que as tropas prussianas estariam à disposição das forças reacionárias de Berlim, cuja violência recrudescia com tal rapidez que a assembleia constituinte prussiana teve que exigir da coroa a demissão dos oficias envolvidos em atividades contrarrevolucionárias.

Inicialmente o armistício foi rejeitado pela Assembleia Nacional de Frankfurt, mas veio a ser aprovado no dia 16 de setembro. Para os representantes das forças democráticas, o recuo da assembleia diante da pressão do rei tornou evidente a fraqueza do parlamento e o seu aviltamento a mero instrumento da contrarrevolução.

Dois dias depois da aprovação do armistício, manifestações populares e levantes esparsos se voltaram contra as forças contrarrevolucionárias. Era preciso levar adiante as reformas iniciadas em março e avançar na realização das demandas políticas e sociais dos trabalhadores e da pequena burguesia democrática. Uma assembleia de quinze mil pessoas, reunidas pelos democratas e pela associação dos trabalhadores, exigiu que a esquerda se retirasse da Assembleia Nacional de Frankfurt para constituir um parlamento revolucionário.

Apesar da mobilização popular, as iniciativas da esquerda tiveram pouco efeito. As forças da reação já estavam preparadas para retomar o controle em Viena e em Berlim.


A vitória da reação

No final de outubro, o exército do imperador reestabeleceu a ordem em Viena. Os trabalhadores, apoiados apenas pelos estudantes e por uma fração da pequena burguesia, lutaram vigorosamente, mas as tropas que faziam o cerco de Viena conseguiram entrar na cidade. No 1º de novembro, a bandeira dos Habsburgos era vista no pináculo da Catedral de Santo Estevão. 

Robert Blum, deputado esquerdista da Assembleia Nacional que fora enviado para verificar os avanços da contrarrevolução na Áustria, decidiu participar dos combates  de rua. Ele foi preso e executado no dia 9 de novembro, a despeito de sua imunidade parlamentar, para escândalo e consternação de todos os democratas de fala germânica.

No mesmo 9 de novembro, veio o coup d'État prussiano. O rei nomeou o conde de Brandenburgo como chefe do novo ministério. Os generais e os aristocratas prussianos, entre os quais Otto von Bismarck, recuperaram o controle de Berlim. O rei dissolveu a assembleia prussiana e instalou sua própria constituinte.

No começo de 1849, o triunfo da Santa Aliança parecia completo. 

O imperador da Áustria impôs, no 7 de março, uma constituição que declarava que a Áustria, a Hungria e as províncias da Itália e dos Balcãs era uma entidade indivisível.

Os trabalhos da Assembleia Nacional de Frankfurt continuaram, a despeito de todas os percalços: sinal evidente da sua alienação da realidade histórico-social. No dia 28 de março, ela aprovou o esboço da nova constituição: a Alemanha seria uma monarquia constitucional, chefiada pelo rei da Prússia como imperador hereditário. No entanto, quando o parlamento ofereceu a coroa ao rei Frederico Guilherme, ele a recusou, deixando claro que não reconhecia a autoridade da Assembleia Nacional.

Aos poucos, os deputados abandonaram o parlamento. Em junho, os membros mais radicais formaram em Stuttgart um Rumpfparlament que foi dissolvido pelo exército.

Na Renânia, na Westfália, na Saxônia, em Baden e no Palatinado houve levantes promovidos pelos comitês de salvação organizados pela esquerda desde os avanços reacionários do fim do ano anterior. Esses comitês tiveram a participação de nomes como Engels, na Renânia, e de Bakunin, em Dresden, mas a coordenação era deficiente mesmo no nível local. Os líderes e participantes tiveram que fugir; os que foram capturados foram executados ou sentenciados à prisão. 

As forças da reação, lideradas por Bismarck, acabariam por unificar a Alemanha sob a hegemonia prussiana. Depois da vitória sobre o imperador Napoleão III, o rei da Prússia finalmente aceitou – em Versalhes - a coroa de Kaiser de toda a Alemanha. Enquanto o Reich alemão iniciava sua ascensão, o Império Austríaco rolava lentamente em direção à irrelevância política, às intermináveis crises parlamentares e aos impasses gerados pela calcificação das instituições, incapazes de responder às demandas dos nacionalistas, dos liberais, dos socialistas e, mais tarde, dos comunistas. Haveria ainda uma brilhante floração cultural no fim do século, mas o império era apenas um cadáver adiado.


2. Duas visões sobre a limitada participação dos trabalhadores no 48 alemão.


Hajo Holborn, A History of Modern Germany 1840 -1945 vol III, Princeton University Press, 1982 

O historiador alemão radicado nos Estados Unidos ressalta o caráter retrógrado das aspirações das classes sociais envolvidas na revolução de 1848 na Alemanha.

In the towns and cities the most revolutionary elements were the downtrodden journeymen and poor masters. The industrial workers proved unamenable to the revolutionary doctrines of Marx and Engels in 1848-49. The only socialist movement to make visible progress was the one led by Stephan Born in Berlin and that was reformist rather than revolutionary. Formation of trade unions, the improvement of working conditions and wages, as well as suffrage for the workers were the chief aims of this social-democratic group. But the mass of the manual workers consisted of artisans who expected neither revolutionary nor reformist socialism from the governments. They wanted work and a decent livelihood, and they saw the way to it chiefly in the abolition, or at least drastic curtailment, of economic freedom. The restoration of the guild system protected against the competition of factories and foreign countries was their chief political demand.
Simultaneously with the peasant riots of March, a wave of acts of destruction was perpetrated by journeyman against factories and other institutions of the modern industrialism. In the Rhineland and in Saxony numerous attempts were made to destroy machines that threatened to replace the work of the artisans. Thus the cutlers of Solingen, for example, destroyed one of the iron foundries in the neighborhood. Most pathetic was the vengeance of the jobless boatman of the Rhine and Danube against the steamships and that of the displaced wagoners of Nassau against the Taunus railroad. Soldiers had to be employed to end these disorders.
The guildsmen continued to press for the relief of their grievances. Since they felt that the old and new parliaments did not give them enough attention, they debated their problems in a number of regional and national congresses. They all wanted a protectionist economy and in general did not show much interest in the political aims of liberalism. The March ministries on their part did not produce more than minor palliatives for dealing with the miserable situation of the masses. The most important practical economic program was presented to the Prussian United Diet in April by the liberal minister Camphausen. By launching a substantial credit of expansion, this Rhenish merchant departed from the traditional fiscal policies of the Prussian treasury. The measures taken by him were quite effective in speeding up economic recovery, but since in the beginning they chiefly benefited industry and banks, not only the petty bourgeoisie but also the agrarian Junkers looked askance at the demonstration of the new power of financial capitalism. (pp. 59-60)


Barrington Moore Jr, Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta, Brasiliense, 1987

O sociólogo marxista heterodoxo norte-americano questiona a participação popular e o seu caráter revolucionário no 1848 alemão. Segundo Moore, a massa do proletariado não se moveu durante a revolução; o movimento dos trabalhadores correspondia  a uma pequena parte da classe operária e, além disso, não foi revolucionário nos meios – ainda tímidos devido à submissão a autoridades paternalistas – e não foi revolucionário nos fins: a busca de respeitabilidade como alternativa à proletarização.

O fato central é simplesmente o seguinte: a esmagadora maioria daqueles cuja situação “objetiva” qualificava como vítimas da injustiça não tomou parte ativa nos eventos do período {1848}. Até onde é possível dizer atualmente, eles apenas ficaram calados, procuraram levar suas vidas cotidianas e esperaram pelo resultado. Embora no século XX o grau de participação popular tenha indubitavelmente crescido, desconfio fortemente que não fazer nada continua a ser a forma real de ação das massas nas principais crises históricas, desde o século XVI.  Isso não significa negar a importância decisiva das ocasionais explosões populares, que, no entanto, jamais podem arrastar mais do que uma frágil parcela da população. (223-4)
A mais bem-sucedida organização, em termos de número de associados, foi a Verbrüderung, uma tentativa liderada basicamente por Stephan Born de recrutar todos os operários para uma organização nacional (..) Não existem cifras precisas sobre o número de membros que a Verbrüderung conseguiu conquistar em qualquer momento de seus dois anos de existência ativa. (...) Um cálculo moderno razoável fala em 18 mil. Trata-se de uma diminuta parcela dos mais de 550 mil trabalhadores fabris a quem ela dirigia seu principal apelo, para não mencionar os quase um milhão e meio de trabalhadores sem qualificação na Alemanha da época. (225-6)
Em nenhum momento, mais do que uma proporção infinitesimal dos trabalhadores alemães tomou parte dos eventos de forma ativa. (...) A maioria daqueles que o fizeram era evidentemente composta de membros da aristocracia operária. 
Como já se notou, a camada que Marx postulava ser a ponta de lança da revolução era, na verdade, a mais inerte de todas. (229-230)
A fim de alcançar uma compreensão mais precisa dos sentimentos e reivindicações populares na Alemanha dessa época, seria útil reduzir o conceito de revolução a um lugar muito menos saliente. Tanto entre os artesãos como entre os operários organizados, o objetivo era a aceitação da ordem social. Esta significava consideração suficiente por parte de outrem e uma base econômica suficientemente segura para permitir o auto-respeito com honestidade. Tornar-se membro do proletariado era o que todos temiam. As ideias sobre como atingir essas metas variavam amplamente, de acordo com a condição social e econômica. Para os mestres de corporação, os grandes temas eram os preços e a concorrência; a solução correta, o auxílio do Estado. A proteção do Estado significava que a sociedade proporcionaria novos serviços. Para alguns trabalhadores, o tema central eram os salários, um legítimo sinal do advento dos tempos modernos. Havia um mundo amplo e impreciso entre esses dois polos, o dos jornaleiros e aprendizes, os quais ainda não constituíam operários fabris, no sentido moderno e em sua própria esfera tinham pouca perspectiva realista de se tornarem mestres de ofícios. (237-8)



3. O 48 de Karl Marx

Karl Marx teve a honra de ser preso e expulso da Bélgica pela polícia do rei Leopoldo, assim que a notícia da revolução em Paris chegou a Bruxelas. Imediatamente ele seguiu para a França e organizou, em Paris, o novo comitê central da Liga dos Comunistas. Os integrantes eram Engels e Wolff em Bruxelas, Bauer, Moll e Schapper em Londres, e o próprio Marx. 

Em março, o comitê emitiu uma lista de dezessete demandas “em interesse do proletariado alemão, da pequena-burguesia e do campesinato”. Entre as demandas estavam: a Alemanha deveria ser uma república, una e indivisível, as propriedades feudais deveriam ser nacionalizadas, assim como as minas e o sistema de transporte; oficinas nacionais deveriam ser estabelecidas; a educação deveria ser compulsória e paga pelo Estado. 

Não se tratava do programa completo de medidas a serem tomadas pelos comunistas nos países mais avançados tal como fora estabelecido no final da seção II do Manifesto do Partido Comunista. Marx sabia bem que a Alemanha precisava primeiro de uma revolução burguesa e antifeudal. Por isso, as demandas de março eram de molde a atrair a pequena burguesia democrática, os nacionalistas, os intelectuais burgueses radicais, além das organizações de trabalhadores. A Liga dos Comunistas tinha como objetivo imediato chegar ao nível de participação democrática radical alcançado pelos jacobinos na Revolução Francesa. Pressupunha-se que essas demandas serviriam como plataforma para uma revolução civil democrática, que seria o passo inicial de uma transformação socialista.

No começo de abril, Marx e Engels se estabeleceram na Renânia. Além da proximidade com a França, tratava-se de uma região rica, desenvolvida e relativamente livre por ser administrada pelo Código Napoleônico e não pelo rígido Código Prussiano. Em Colônia, Marx e Engels trataram de divulgar as Demandas da Liga dos Comunistas, que foram publicadas diversas vezes tanto na imprensa periódica como em folhetos, entre 1848 e 1849. Marx e Engels enfrentaram várias dificuldades financeiras para publicar um jornal político que atraísse os radicais, os democratas e os comunistas. No dia 1 de junho de 1848 foi lançado o primeiro número da Nova Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung), tendo Marx como editor. A contundência das análises de Marx logo afugentaram os patrocinadores mais tímidos. Apesar do interesse dos leitores. que não parava de aumentar, Marx foi obrigado a bancar o jornal com o dinheiro de sua herança;  Jenny, sua esposa, teve que vender as joias da família. 

Marx se desdobrava. Escrevia análises agudas do cenário político francês e alemão  e envolvia-se nas tarefas práticas de organização e mobilização política. Quando, em junho, quase noventa associações se reuniram em Frankfurt para fundar uma organização democrática unificada com representações locais, apenas em Colônia é que a proposta foi levada adiante. A democracia de Colônia era constituída por um comitê central que reunia três grandes associações, cada uma delas com milhares de membros: a Associação Democrática, liderada por Marx e pelo advogado Schneider, a Associação dos Trabalhadores conduzida por Moll e Schapper, e a Associação dos Empregadores e Empregados, chefiada por Hermann Becker. 

A crise de setembro em Berlim e Frankfurt teve repercussões imediatas em Colônia. A Renânia era vista com preocupação e temor pelas forças da contrarrevolução, razão pela qual foi ocupada por tropas nas províncias orientais, em tal número que uma insurreição se tornou impossível. 

Em vista da instabilidade dos ministérios liberais na Prússia, da ameaça de golpe e da crescente intranquilidade popular por causa do armistício de Malmö, os democratas e os comunistas de Colônia organizaram, em 13 de setembro, um Comitê de Salvação Pública, composto por 30 membros das organizações democráticas e dos trabalhadores. Os editores da Nova Gazeta Renana, assim como os líderes da Associações de Trabalhadores de Colônia foram eleitos entre seus membros. O Comitê de Salvação Pública apoiou os insurgentes de Frankfurt e a luta popular contra as forças reacionárias, que tentavam anular as conquistas de março e perseguiam os membros das organizações proletárias e democráticas.

Todavia, passo a passo, a contrarrevolução ganhou terreno. No final de agosto, Marx visitara Viena para aconselhar os membros da burguesia revolucionária e para recrutar os trabalhadores em defesa de uma frente unida contra a reação, mas suas tentativas foram vãs. O Segundo Congresso dos democratas, em Berlim, em nada ajudou. Viena foi abandonada ao seu destino. No final de outubro, os soldados tomaram a cidade. 

Seguiu-se o golpe de Estado na Prússia: o recém nomeado Brandenburgo dispersou a assembleia constituinte de Berlim, desarmou as milícias e declarou estado de sítio. Não houve resistência. 

A democracia de Colônia ainda resistiria até 19 de maio de 1849, quando a Nova Gazeta Renana publicou seu último número.  Marx teve que sair da cidade. Ele chegou a Paris a tempo de assistir a crise de 13 de junho de 1849, quando as lideranças republicanas francesas, que protestavam contra o envio de tropas francesas para derrubar a república romana de Mazzini, foram presas ou tiveram que fugir sob a repressão do Presidente Luís Napoleão.

Com a prisão dos republicanos, Marx e sua família se exilaram na Inglaterra, em condições mais do que precárias. Ao chegar em Londres em 1849, Marx havia aprendido algumas lições sobre a insuficiência das forças espontâneas da classe operária e sobre as fraquezas do “partido comunista” de 1848. 



******


Holborn, Hajo, A History of Modern Germany 1840-1945 vol III, Princeton University Press | Tristram Hunt, Comunista de casaca: a vida revolucionária de Friedrich Engels, Record | Karl Marx e Friedrich Engels, Demands of the Communist Party in Germany | Franz Mehring, Karl Marx: the story of his life | Barrington Moore Jr, Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta, Brasilienese  |  Otto Rühle, Karl Marx: his life and work, Routledge | Encyclopedia of Revolutions of 1848



terça-feira, 26 de novembro de 2013

A claraboia e o holofote #16





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



As lições de 48 (Parte I)


1. Dias de 1848 na França

Luís Felipe, que chegara ao trono alçado pelas esperanças revolucionárias de 1830; Luís Felipe, o homem da conciliação; Luís Felipe, o rei burguês, tinha seus dias contados no começo de 1848. A difícil situação econômica que se arrastava desde 1845, a sucessão de escândalos políticos e financeiros, a intransigência arrogante do ministro Guizot e uma política externa submissa aos interesses britânicos solaparam o apoio ao rei, mesmo nos meios burgueses.

A oposição política se organizara em torno da coalizão formada pelos monarquistas reformistas – a “oposição dinástica”, de Odilon Barrot -, e pelos republicanos do Partido Radical, de Ledru-Rollin. Desde o final de 1847, a coalizão convocava banquetes públicos nas províncias: um expediente para burlar a proibição de manifestações contra o governo. O banquete culminante se realizaria em Paris, no dia 22 de fevereiro de 1848, e deveria reunir uma multidão imensa.

Quando, na última hora, veio a proibição, os líderes republicanos conclamaram o povo a sair às ruas. A própria Guarda Nacional aderiu aos manifestantes. Rapidamente, o rei exonerou o impopularíssimo ministro Guizot, mas de nada adiantou. A agitação se agravou depois que soldados nervosos da Guarda Nacional dispararam contra manifestantes no bulevar dos Capuchinhos, matando dezenas de pessoas.

Incapaz de fazer face à pressão popular, no dia 24, o rei abdicou e fugiu para a Inglaterra. Um governo provisório foi formado pelos homens do jornal republicano Le National, como Lamartine e Ledru-Rollin, e do jornal socialista La Réforme, como Louis Blanc, Albert, Flocon e Marrast.

Tendo como figura pública mais proeminente o poeta romântico Lamartine, o governo provisório suprimiu a pena de morte e a escravidão, assim como reconheceu a liberdade de reunião e de imprensa. Também convocou eleições – por sufrágio universal masculino - para uma assembleia constituinte. Mas o novo governo não se pretendia apenas republicano: ele também se queria democrático e social. Era preciso satisfazer as demandas da classe trabalhadora através de uma organização estatal do trabalho, como defendia o socialista Louis Blanc, que passou a presidir a recém-criada Comissão do Trabalho, sediada no Palácio Luxemburgo.  O direito ao trabalho foi reconhecido, porém era premente oferecer emprego à multidão de desempregados que a crise econômica havia gerado. Marie, ministro das Obras Públicas, instituiu as oficinas nacionais, que eram frentes de trabalho para manutenção das vias públicas, muito diferentes das unidades de produção sob a tutela do Estado preconizadas por Louis Blanc.

Extremamente mal concebidas, as oficinas nacionais não resolviam o problema do desemprego. As vagas eram insuficientes para a massa que afluía das províncias e até de países vizinhos, os salários eram extremamente baixos e as vagas disponíveis eram todas para tarefas braçais. A população pobre estava inquieta. Formavam-se clubes de oposição. Circulavam panfletos e proclamações iradas. A popularidade do governo provisório se esvaiu rapidamente.

Em meados de março, irromperam distúrbios e protestos populares. Os líderes da extrema-esquerda temiam que a eleição da assembleia constituinte fortalecesse os conservadores das províncias e anulasse a democracia social instaurada em fevereiro. Para ganhar tempo e organizar melhor a esquerda, os manifestantes pediram que as eleições fossem adiadas para 23 de abril. O governo cedeu. No entanto, novas manifestações em abril pedindo mais um adiamento das eleições encontraram o governo inflexível.

Os temores da extrema-esquerda se tornaram realidade: uma maioria de conservadores foi eleita nas províncias. O refluxo da revolução ficou evidente também na composição do poder executivo. No dia 10 de maio, o governo provisório transmitiu sua autoridade a uma Comissão Executiva de cinco membros, dos quais o único de esquerda era Ledru-Rollin, que só foi aceito por insistência de Lamartine.

A extrema-esquerda estava cindida e desorganizada. No 15 de maio, uma manifestação popular em apoio à independência da Polônia, resultou – talvez por instigação de provocadores a serviço da polícia - na invasão do Palácio Bourbon, onde se reunia a assembleia constituinte. Os líderes esquerdistas subiram à tribuna para discursar. Muitos deputados entraram em pânico. Lamartine desapareceu. Enunciaram-se demandas populares, mas os líderes não tinham propostas claras. Proclamou-se um novo governo provisório, a ser instalado no Hôtel de Ville pelos representantes dos trabalhadores. A Guarda Nacional interveio. Os principais líderes da extrema-esquerda - Albert, Raspail, Blanqui e Barbès - foram presos. Os conservadores assumiram as rédeas e, no dia seguinte, dissolveram a comissão de Luxemburgo. Os clubes de extrema esquerda foram fechados.

O clima em Paris era tenso.  Havia boatos de que os trabalhadores fariam uma demonstração de massa. A resposta dos conservadores foi discutir, no 21 de junho, o fechamento das oficinas nacionais, tidas como sementeiras de agitação, dispendiosas e contrárias ao liberalismo econômico.  A comissão do conde de Falloux decretou que os jovens trabalhadores entre 17 e 25 anos deveriam entrar no exército; quanto aos demais, aqueles que fossem migrantes das províncias deveriam sair de Paris e se reunir em Sologne, supostamente para drenar pântanos insalubres. Os trabalhadores estavam convencidos de que a intenção do governo era mandá-los para a morte.

Quando o decreto oficial apareceu em Le Moniteur no dia 22 de junho, uma delegação de trabalhadores foi protestar junto à Comissão Executiva. O ministro Marie respondeu com ameaças. No dia seguinte, a agitação dos trabalhadores culminou numa grande reunião na praça da Bastilha. Um militante socialista chamado Pujol, aos gritos de “liberdade ou morte”, conclamou a multidão a erguer barricadas. Temerosa, a assembleia chamou o general Cavaignac para organizar a defesa da cidade.

As barricadas impediam a circulação nas regiões populares da cidade – especialmente na área leste, para além da Bastilha, na rua do Faubourg Saint-Antoine, e na margem esquerda, ao longo da rua Saint-Jacques e em torno do Panteão. Havia apenas pequenas passagens para os moradores e para o insurgentes, que eram trabalhadores braçais, artesãos, pequenos lojistas, funcionários das ferrovias e operários das fábricas, que enfrentavam a ameaça da miséria.

No dia 23 de junho, a assembleia constituinte decretou estado de sítio e fez do general Cavaignac chefe do governo com poderes ditatoriais.  A Comissão Executiva, último remanescente legal da revolução de fevereiro, foi desfeita.

Cavaignac mantinha suas tropas no centro de Paris, dispersando-as em grupos para as várias áreas em que fossem necessárias. As tropas atiravam nas barricadas, mas os insurgentes se defendiam com valentia. Muitos soldados morreram. O próprio arcebispo de Paris, Monsenhor Affre, foi atingido por um tiro fatal quando tentava negociar o cessar-fogo. Para os conservadores, ele se tornou mártir da ordem e do espírito cristão diante da barbárie sanguinária dos pobres.

Não se sabe quantos eram os insurgentes, mas acredita-se que eles superavam o número de 40 mil soldados que o general Cavaignac tinha à disposição. Isso explica em parte a violência dos meios usados pelo exército, que disparou bombas incendiárias. Os bairros populares foram queimados. No dia 26 estava tudo acabado. Apesar dos preparativos feitos às vésperas do confronto e apesar dos arsenais saqueados das casernas, logo os insurgentes ficaram sem munição. Milhares de trabalhadores foram fuzilados pelas ruas depois que a revolta tinha acabado. Outros milhares foram presos e deportados. Os números serão sempre incertos.

O General Cavaignac depôs seus poderes ditatoriais no dia 28 de junho, mas a popularidade decorrente de seu êxito levou a assembleia a nomeá-lo primeiro-ministro. O estado de sítio durou até outubro.  O partido da Ordem se fortaleceu, mas não em benefício das duas casas dinásticas que disputavam o poder. Não houve uma restauração dos Bourbon, como queriam os legitimistas, nem a volta dos Orleans. O sobrinho de Bonaparte, o príncipe Luís Napoleão, que fora eleito deputado constituinte, conquistou um séquito de monarquistas, líderes católicos e camponeses, todos saudosos da estabilidade política e econômica do Império, assim como o apoio de muitos trabalhadores ressentidos com a traição da burguesia republicana moderada. Ele foi o vitorioso nas eleições de dezembro de 1848 e tornou-se o presidente Luís Napoleão.

Em 13 de junho do ano seguinte, a esquerda republicana na assembleia constituinte – também conhecida como a Montanha – decidiu organizar uma marcha de protesto contra a decisão do presidente Luís Napoleão de enviar tropas francesas para derrubar o governo republicano de Mazzini em Roma. Tratava-se de uma ação que violava o artigo da Constituição que proibia a República Francesa de atentar contra a liberdade de outras nações. A passeata republicana, com pouca adesão popular, se transformou numa tentativa de revolução, que foi logo contida e resultou na fuga dos líderes republicanos de esquerda (uma esquerda moderada, já que a extrema-esquerda tinha sido presa em maio do ano anterior). Os que não fugiram, foram presos.  Agora estava aberto o caminho para a reação que definiria o cenário político da década de 1850. O próximo passo seria o 18 Brumário de Luís Bonaparte.


2. Quatro visões sobre as jornadas de junho


a. Um quadro sinótico didático e politicamente cauteloso

Roger Price, A concise history of France, Cambridge University Press, 2005

The Parisian left was to be decapitated for a generation. Whatever the precise sociological character of the conflict, and despite the fact that workers fought on both sides, contemporaries saw it as one between bourgeoisie and people, as a form of class struggle. According to de Tocqueville the insurrection was a ‘brutal, blind but powerful attempt by the workers to escape from the necessities of their condition, which had been described to them as an illegitimate oppression… It was this mixture of cupidity and false theory which rendered the insurrection so formidable… These poor people had been assured that the well-being of the rich was in some way based upon theft from themselves.’ The conservative press depicted the events as an outbreak of mindless savagery, as a rising fought for “pillage and rape”. Their initial cry of triumph at the ‘victory gained by the cause of order’, of the family, of humanity, of civilization’ was mixed with fear, however, and was soon followed by demands for more thorough repression. Political activity was severely restricted.  (p. 204)



b. O relato clássico da historiografia marxista: a insurreição de junho foi um momento agudo da luta de classes; a derrota foi resultado das condições imaturas do proletariado.

E.J. Hobsbawn, The Age of Capital 1848-1875, Abacus, London, 1977

From the moment the barricades went up in Paris, all moderate liberals (and, as Cavour observed, a fair proportion of radicals) were potential conservatives. As moderate opinion more or less rapidly changed sides or dropped out, the workers, the intransigents among the democratic radicals, were left isolated or, what was even more fatal, to face a union of conservatives and formerly moderate forces with the old regimes: a ‘party of order’, as the French called it. Eighteen forty-eight failed because it turned out that the decisive confrontation was not between the old regimes and the united ‘forces of progress’, but between ‘order’ and ‘social revolution’. Its crucial confrontation was not that of Paris in February but that of Paris of June, when the workers, manoeuvred into isolated insurrection, were defeated and massacred. They fought and died hard. About 1500 fell in the street-fighting – some two-thirds of them on the government side. It is characteristic of the ferocity of the hatred of the rich for the poor that some thousand were slaughtered after defeat, while another twelve thousand were arrested, mostly to be deported to Algerian labour camps. (p. 30)
As for the laboring poor, they lacked the organization, the maturity, the leadership, perhaps most of all the historical conjuncture, to provide a political alternative. Strong enough to make the prospect of social revolution look real and menacing, they were too weak to do more than frighten their enemies. Their forces were disproportionately effective, in so far as they were concentrated in hungry masses in the politically most sensitive spots, the large and especially the capital cities. This concealed some substantial weakness: in the first place, their numerical deficiency – they were not always even a majority in the cities, which themselves generally included only a modest minority of the population – and in the second place, their political and ideological maturity. The most politically conscious and activist stratum among them consisted of the pre-industrial artisans. (…) The poor and unskilled in the cities and, outside Britain, the industrial and mining proletariat as a whole, had hardly any developed political ideology as yet. (p. 35)
There was to be no second edition of 1848 in western and central Europe. The working class, as he soon recognized, would have to follow a different road. (p. 37)



c. Uma defesa do ponto de vista republicano: Junho foi, de fato, uma batalha de classes sociais, mas a burguesia defendia as instituições da República e não a opressão do proletariado.

Maurice Agulhon, The Republican Experiment 1848-1852, Cambridge University Press, 1993  
(tradução de 1848 ou l’apprentissage de la République 1848-1852, Seuil, 1972)

The spontaneity of the worker’s revolt, now known as the ‘June days’, was in fact its most striking characteristic. Despite Pujol’s abstract and romantic cry, the motivation behind it was starkly social: workers reduced to unemployment by the crisis, and thereafter dependent for their livehood upon public funds, found themselves literally driven to despair when those funds were abolished. It is with good reason that history retains the cry uttered by an anonymous worker in the place du Panthéon (addressed to Arago while he was attempting to reason with a crowd on 22 June): ‘Ah! Monsier Arago, you have never been hungry!’ Although a few militants of minor reputation, such as Pujol, emerged, there was virtually no political leadership. The organizational efforts made during the weeks immediately preceding by no means offset the effects of the imprisonment, on 15 May, of the better-known leaders of the old secret societies and of the clubs. The June days, more than any other period before or since in French history, remain a class battle pure and simple. It was certainly no mere chance that Marx and Engels, following the developments of the revolution in France with the most rapt attention, now roughed out the basis of their theory that the class struggle was the most profound historical reality of all.
But before the June days unconsciously became the source of that grandiose extrapolation, much blood was to flow.
(…)
Another reason for the bloodshed was the equally impressive determination evinced in the ‘bourgeois” camp. In those days the ideals of order, property and liberty still retained a freshness and brilliance that they were later to lose. They were credited with a value that was absolute; it was only much later that this was gradually perceived to be no more than relative. (…) Furthermore, even in the camp of the worker’s enemies there were plenty of men who believed passionately in the Republic. Now, for the ordinary republican citizen, unaware of the manoeuvers and provocations of men like Marrast and Falloux, only one thing was abundantly clear: a decision about which there was nothing irregular, emanating from powers freely elected by universal suffrage, was being contested by rebels. They were just as shocked by this disobedience as they would have been (and were to be) by a military coup d´État. The final phrase in the official communiqué which was soon to announce victory to the departments (‘Order has triumphed over Anarchy, Long live the Republic’) was not nearly as hypocritical or cynical as were similar phrases used in 1871 or at later dates.
This makes it easy to understand the unanimous resolution of the Assembly and the fact that were many loyal democrats who agreed to resist the workers. (pp. 56-57)



d. Um esforço marxista-benjaminiano de recuperar o caráter único dos massacres de Junho, como evento traumático recalcado da modernidade.

Dolf Oehler, O Velho mundo desce aos infernos, Cia das Letras, 1999

A respeito das jornadas de junho, “alguns poderiam supor que se trata de impressões momentâneas dos contemporâneos e que, de uma distância maior, o acontecimento teria sido medido com outros critérios. Esse não é ocaso, porém, a menos que se perca totalmente a memória das jornadas de junho de 1848: essa data-chave da modernidade só perde em relevância quando recalcada. Donoso Cortés, o conservador espanhol que Carl Schmitt quis reabilitar como um dos mais lúcidos pensadores da história, um dos grandes homens “mantidos em silêncio no século XIX”, qualificou a batalha de Junho, num discurso que se tornou célebre diante do Parlamento de Madrid, em janeiro de 1849, como a mais sangrenta de que os séculos já tiveram notícia no interior dos muros de uma cidade. No mesmo ano, Alfred Meissner, jovem alemão de Praga, define ‘aquela monstruosoa batalha do proletariado’ como o ‘maior e mais imponente acontecimento da nova era’.  O liberal Alexis de Tocqueville, em seus Souvenirs, qualifica a insurreição de junho como “a maior e mais singular que ocorreu em nossa história, e talvez em qualquer outra’. Dez anos mais tarde, em Les Misérables, Victor Hugo sentencia que junho foi “a maior guerra de rua vista pela história’, ‘um fato à parte, e quase impossível de classificar na filosofia da história’. Os romancistas republicanos Erckmann-Chatrian julgam a batalha de junho ‘mil vezes mais terrível do que a de Waterloo’, e ‘Tomaso di Lampedusa apazigua o herói de seu Gattopardo, pouco antes de estourar a revolução siciliana, com a ideia de que todas as revoluções logo se transformam em comédia e que, mesmo na França, ‘com ressalva de junho de 1848’, no fundo nunca se deu nada de sério. Herzen, Baudelaire e Flaubert – e também Heine – não economizam superlativos (...)
Não é exagero algum afirmar que a repressão sangrenta do verão de 1848 influenciou a evolução da sociedade francesa até a Quinta República, e isso não a despeito, mas justamente porque foi recalcada e nunca trabalhada teoricamente. Além disso, essa repressão influiu – para muito além das fronteiras da França – na formação da teoria e da ideologia tanto burguesa quanto socialistas, e marca, finalmente um ponto de inflexão decisivo da literatura moderna. (p. 29-31)


3.  Marx e a revolução de junho

Em Colônia, onde chegara em março, Marx recebia avidamente as notícias de Paris e comentava-as nos artigos da Nova Gazeta Renana. A edição de 29 de junho de 1848 contém um artigo dedicado à “revolução de junho”.

Para Marx, junho não foi um acidente conjuntural, mas a revelação de uma cisão que permanecia oculta sob as esperanças despertadas em fevereiro:

"O triunfo momentâneo da força brutal foi pago pela aniquilação de todas as ilusões e quimeras da revolução de fevereiro, pela desagregação completa do partido dos velhos republicanos, pela cisão da nação francesa em duas nações, a nação dos possuidores e a nação dos trabalhadores." (“A revolução de junho”, 29 de junho 1848 Neue Rheinische Zeitung)

No artigo de Marx, tudo o que havia de positivo em fevereiro revelou seu aspecto negativo em junho. O poético se tornou prosaico, as declarações plenas de sentimentalismo deram lugar às ações mais brutais; a retórica cedeu à realidade; as máscaras caíram:

“Os fogos de artifício de Lamartine se transformaram nas bombas incendiárias de Cavaignac.

A fraternidade, essa fraternidade das classes opostos das quais uma explora a outra, essa fraternidade proclamada em fevereiro, escrita com maiúsculas sobre a fronte de Paris, sobre cada prisão, sobre cada caserna – sua expressão verdadeira, autêntica e prosaica é a guerra civil, a guerra civil na sua forma mais apavorante, a guerra do trabalho e do capital. Essa fraternidade ardeu diante de todas as janelas de Paris na noite de 25 de junho, quando a Paris da burguesia se iluminava ao passo que a Paris do proletariado queimava, sangrava e gemia até o esgotamento.

A revolução de fevereiro foi a bela revolução, a revolução da simpatia geral, uma vez que todas as contradições (entre a burguesia e o povo) que eclodiram contra a realeza não tinham ainda se desenvolvido e continuavam adormecidas, unidas, lado a lado, já que a luta social que formava o pano de fundo dessa revolução tinha atingido apenas uma existência inconsistente, uma existência puramente verbal. A revolução de junho é feia; é a revolução repulsiva, porque a realidade tomou o lugar das palavras, porque a República desmascarou a cabeça do monstro arrancando-lhe a coroa que a protegia e a escondia.” (op. cit.)

Junho foi, portanto, o momento em que a luta de classes se tornou explícita, em que as contradições ganharam gume. O momento em que ficou evidente que a luta social dos trabalhadores ameaçava a ordem burguesa, que se mantinha a despeito de todas a variedade de formas políticas que se alternaram na França desde 1789:

“Nenhuma das numerosas revoluções da burguesia francesa desde 1789 tinha sido jamais um atentado contra a Ordem, porque todas deixavam subsistir a dominação de classe, a escravidão dos trabalhadores, a ordem burguesa, a despeito da mudança frequente da forma política desse dominação e dessa escravidão. Junho tocou nessa ordem. Desgraçado seja junho!” (op. cit.)

Os massacres de junho mostraram que a questão política da forma de Estado não pode ser separada da questão social da luta de classes. A luta de classes não pode ser eliminada por declarações retóricas de unidade e fraternidade, isto é, ele não pode ser resolvida no plano simbólico ou imaginário.

"Os conflitos que nascem das condições da própria sociedade burguesa, é preciso conduzi-los até o fim; não se pode eliminá-los por meio da imaginação. A melhor forma de Estado é aquela em que as contradições sociais não são esfumadas, não são estranguladas pela força, isto e, artificialmente e, assim, apenas em aparência. A melhor forma de governo é aquele em que as contradições entram em luta aberta e encontram deste modo sua solução." (op. cit.)

Não há proclamações de ordem ou de fraternidade que não sejam expressões disfarçadas de posições no interior da própria luta de classes. Não há reivindicações políticas que não sejam reivindicações de classe ou de fração de classe, que não sejam meios de obter vantagens no jogo de forças conflitantes. A questão da forma política somente ganha sua devida relevância quando é remetida à conjuntura das forças na luta de classes. 

Essa é a razão pela qual mesmo as práticas políticas mais progressistas podem ser distorcidas. Em 1848, a instituição do sufrágio universal - componente fundamental da prática republicana e democrática - serviu de instrumento para os conservadores conquistarem o poder, tanto na eleição da assembleia constituinte quanto na eleição presidencial. Os democratas que defendiam a ampliação do direito ao voto levavam água para os moinhos da reação.


Portanto, uma das lições de junho é que as formas políticas não podem ser dissociadas de seu sentido social, definido pela conjuntura da  luta de classes:


"O abismo profundo que se abriu a nossos pés pode desorientar os democratas? Pode nos fazer crer que as lutas pela forma do Estado são vazias, ilusórias e nulas?

Somente os espíritos fracos e frouxos poderiam levantar semelhante questão." (op. cit.)

Ou, como Marx definirá um pouco mais tarde:

"Depois de junho, revolução quer dizer: derrubada da sociedade burguesa, ao passo que antes de fevereiro significava: derrubada da forma do Estado." ( As lutas de classes na França, De junho de 1848 a 13 de junho de 1849,  início).

No plano profundo da luta de classes, todas concessões sociais obtidas da boa-vontade dos setores progressistas da burguesia dirigente são efêmeras e estão sujeitas ao desmentido dos fatos. Elas são apenas o que são: concessões e não conquistas. Eis por que Marx nunca teve pelo socialista Louis Blanc o respeito que tinha pelo revolucionário Auguste Blanqui. 


*******


O historiador Maurice Agulhon afirmou que “It was certainly no mere chance that Marx and Engels, following the developments of the revolution in France with the most rapt attention, now roughed out the bases of their theory that the class struggle was the most profound historical reality of all.” (The Republican Experiment 1848-1852, p. 56). Do ponto de vista cronológico, Agulhon está errado. O caráter fundamental da luta de classes já aparecia como premissa da primeira seção do Manifesto do Partido Comunista, antes da revolução de fevereiro. Contudo, do ponto de vista teórico, tudo indica que, antes das jornadas revolucionárias de 48, Marx tinha apenas uma compreensão livresca da luta de classes, aprendida de historiadores burgueses conservadores, como Guizot e Thierry (cf. Carta a Weydemeyer, 5 de março de 1852; Carta a Engels, 27 de julho de 1854).

Quando Marx realmente compreendeu a forma violenta que a luta de classes podia assumir, ele deixou de acreditar em belas revoluções e passou a desconfiar da força dos levantes espontâneos da classe operária. Essas não foram as únicas lições de 1848. O processo revolucionário na Alemanha, do qual Marx participou de maneira intensa e direta, também lhe reservou muitos ensinamentos que ele teria tempo para assimilar no exílio em Londres, como veremos no próximo capítulo de nosso folhetim.


******


Maurice Agulhon, The Republican Experiment 1848-1852, Cambridge University Press, 1993  |  E.J. Hobsbawn, The Age of Capital 1848-1875, Abacus, London, 1977  |  Karl Marx, La révolution de juin n° 29, 29 juin 1848 La Nouvelle Gazette Rhénane  |  Karl Marx, Les luttes de classes en France  |  Oehler, Dolf, O Velho Mundo desce aos Infernos, Cia das Letras, 1999  |  Roger Price, A concise history of France, Cambridge University Press, 2005  |  Michel Winock, Vozes da Liberdade, Bertrand Brasil, 2006 | Vários, Encyclopedia of Revolutions of 1848


******

Nas fotos de 2010, a rua do faubourg Saint-Antoine, que começa na Bastilha. Centro de agitação revolucionária em 1789, 1793, 1830, 1848, 1871; palco de barricadas e assassinatos em massa em junho de 48; cenário de inumeráveis manifestações e greves; um dos focos de resistência à ocupação alemã.