terça-feira, 5 de março de 2013

Figuras do Negativo #1




Ensaio sobre Le Horla


Le Horla, de Guy de Maupassant, é uma narrativa fantástica bastante conhecida entre os apreciadores do gênero.  Maupassant publicou duas versões do conto, diferentes na forma e na extensão, mas semelhantes nas experiências vividas pelo protagonista sem nome.


Na primeira versão (1886), um alienista apresenta a um grupo de colegas um paciente que narra sua experiência com um ente invisível que ele chamava de Horla. Aparentemente a criatura lhe causava pesadelos, sugava a sua vontade de viver, esvaziava as garrafas de água e de leite e movia objetos. O paciente alegava ter visto o próprio Horla na forma de uma fina camada transparente que, por instantes, embaçara sua imagem num espelho. Quando lhe chegou a notícia de que, no Brasil, grassava uma epidemia de loucura na província de São Paulo, recordou que, poucos dias antes dos primeiros sinais de sua doença, um barco brasileiro passara diante de sua casa à beira do Sena. O paciente termina o relato dizendo que voluntariamente se internou depois de todos esses acontecimentos bizarros. O médico explica aos colegas que, a princípio, acreditara que o paciente estivesse louco, mas a averiguação de vários fatos abalara essa certeza inicial, deixando-o desorientado e perplexo. 


A segunda versão (1887) é bem mais longa. Nela acompanhamos o diário pessoal de um homem que, dias depois de ter visto um barco brasileiro passar diante de sua casa, começou a sentir-se fraco, acossado por pesadelos terríveis e aterrorizado pela sensação de que um ente invisível e maléfico invadira sua casa. Vários acontecimentos estranhos pareciam confirmar a existência desse ser: objetos eram movidos por uma mão invisível, a água e o leite desapareciam das garrafas sem que ninguém tivesse tocado nelas, uma névoa fina obscurecera por alguns momentos a imagem do protagonista no espelho. Finalmente, ele leu a notícia de uma epidemia de loucura no Brasil, a qual levava os habitantes da província de São Paulo a abandonarem suas casas para escapar de vampiros invisíveis. O narrador decidiu que era preciso matar a criatura que o assolava. Uma noite, ateou fogo em sua própria casa. Os empregados morreram no incêndio, mas o narrador – a salvo num hotel - sentia que a criatura que ele chamava de Horla ainda estava viva. Talvez a única maneira de escapar fosse o suicídio.


Segundo a interpretação escolar corrente, Le Horla é um relato em que a ruptura da vida normal e a inverossimilhança dos acontecimentos são indícios de uma loucura em progresso, apesar do caráter razoável e esclarecido do protagonista.  A hipótese de que o os elementos fantásticos do relato sejam apenas sintomas da insanidade do personagem permite manter a crença de que a ordem das coisas – tal como a conhecemos - não foi violada e de que o mundo ainda seja o mesmo descrito pela literatura realista-naturalista com a qual Maupassant estava comprometido. 


A interpretação escolar das obras canônicas da literatura é herdeira de uma certa exegese bíblica que procura afastar cuidadosamente tudo o que, no texto, poderia perturbar a rede de certezas que forma o tecido da vida prática e moral. Tudo o que é aresta, incongruência, desafio, deve ser aparado, reduzido às medidas comuns e conciliado com as formas de vida aceitas. O objetivo é tranquilizar o fiel ou o leitor neófito.


A leitura escolar do conto de Maupassant deixa de lado que, já no final da primeira versão, o depoimento do médico deixava aberta a possibilidade de que uma força nova e misteriosa tivesse rompido a ordem natural do mundo. Além disso, em ambas as versões, a curiosa notícia sobre a epidemia de loucura no Brasil indicaria que algo estava acontecendo objetivamente e não apenas na mente enfraquecida do protagonista. 


É possível que este aspecto do conto de Maupassant incomode a tradição racionalista, iluminista e positivista de que o ensino de literatura na França é herdeiro. Mais fácil é desqualificar o caráter visionário e veemente do relato, explicando-o como efeito da doença mental do próprio Maupassant. Assim, há uma dupla operação de pacificação escolar do texto: primeiro, todos os acontecimentos fantásticos não passariam de alucinações do protagonista;  segundo, todos os aspectos que não possam ser reduzidos à doença mental do personagem devem ser considerados resíduos que sinalizam a demência do próprio autor. A realidade está salva e os estudantes podem ir prestar os exames de Bac. 


Meu ponto de vista como leitor, porém, é bem diferente. 


O efeito de narrativas como Le Horla (especialmente em sua segunda versão) depende da identificação do leitor com o protagonista ou com a voz narrativa. Esses relatos podem perder sua eficácia quando mudanças históricas, sociais ou geográficas deslocam o ponto de vista do leitor e impedem os processos de identificação. Aquilo que era tomado como “normalidade” do cotidiano na época e no lugar em que o texto foi produzido passa a ser visto como algo quase tão estranho quanto os acontecimentos que interromperam essa “normalidade”. O estranhamento, porém, traz novos sentidos para a narrativa, como se a desmobilização do efeito identificatório revelasse certos motivos que, de outro modo, não seriam vistos.


Esse me parece ser o caso do conto Le Horla quando lido na perspectiva de um brasileiro, habitante de São Paulo, sinceramente tocado pela história dos pobres caipiras assustados que abandonaram suas casas com chegada dos Horlas, antes que uma dessas criaturas invisíveis viajasse clandestinamente para a França. 


É a partir dessa perspectiva que eu gostaria de fazer algumas observações sobre o conto de Maupassant.





1. La Journée du Patrimoine



Que o conto trate da ruptura de uma vida “normal”, acredito que seja ponto pacífico. Uma sombra monstruosa (seja o vampiro invisível, seja a demência) surge na vida do protagonista, debilitando suas forças, abalando suas convicções e destruindo seu cotidiano aprazível. 

Todavia, cabe perguntar: o que é essa “vida normal” que os acontecimentos interromperam? Que tipo de vida levava o protagonista antes de ser perturbado pela chegada do Horla?


Uma das grandes diferenças entre a primeira e a segunda versão do conto está na maneira como o protagonista narra os fatos bizarros que lhe sucederam. 


Na versão de 1886, o relato do protagonista é um exemplo de calma, clareza e concisão. Trata-se de um homem tão razoável que, sentindo-se incapaz de dar conta dos acontecimentos extraordinários pelos quais passara, de motu proprio decide se entregar aos cuidados de um alienista.   Já na versão de 1887, o protagonista aparece como autor de um diário pessoal em que dá livre curso a expansões retóricas e patéticas. O tom emotivo e confessional (Quelle journée admirable!) contrasta com os trechos que dissertam, por exemplo, sobre a sucessão evolutiva das espécies. A rápida alternância de momentos de exaltação e de desânimo, o caráter nervoso e excitável, a disposição melancólica e contemplativa sugerem um personagem instável e propenso à perturbação mental. Quando ele decide incendiar a própria casa, levando à morte os empregados dos quais - estranhamente - se esquecera, tudo indica que a demência havia tomado conta do protagonista. 


É esse protagonista-narrador da segunda versão que eu quero examinar.


Ele é homem solteiro de quarenta e dois anos que vive no ócio dos proprietários. Sua casa fica num belo sítio à beira do Sena, defronte a Rouen. A França é próspera, os portos são movimentados. A burguesia da província ama suas raízes e os sabores de seu terroir, mas isso não os impede de visitar Paris para assistir às peças de Alexandre Dumas Filho e, em seguida, acotovelarem-se pelos bulevares, embasbacados diante das novidades da civilização.


O protagonista-narrador é um burguês desse tipo. Feliz e satisfeito, ele cultiva rosas, dá ordens a seus muitos criados domésticos, saúda os barcos que passam diante da sua propriedade e admira a beleza gótica da catedral de Rouen ou do Monte Saint-Michel nas escapadas que dá, quando resolve fazer suas jornadas do patrimônio. 


Não sabemos qual a formação do protagonista-narrador, mas ele revela aquele bom-tom próprio de quem tem a chamada “cultura geral” (nome eufemístico para a ignorância meramente remediada). Ele endossa os preconceitos burgueses de seu tempo: admira o progresso, a civilização e a ciência como poder adquirido (e não como método de interrogação sujeito a revisão infinita). Não é um homem religioso: parece antes um agnóstico como convém ao bom-tom esclarecido. Por isso pode comover-se esteticamente com a beleza de lugares religiosos como o Monte Saint-Michel, mas achar tolas as lendas locais. Pela mesma razão, lê as revistas de divulgação científica. 


Em suma, o protagonista-narrador é aquilo que os meios artísticos desde o Romantismo desprezavam com o nome de “filisteu”: o burguês acomodado no seu bom-senso, que se julga esclarecido por defender enfaticamente alguns lugares-comuns, mas sempre incapaz de perceber algo além do pequeno mundo em que ele se encerra. 


E o que lhe faz o Horla?


Rouba-lhe a tranquilidade de burguês esclarecido. Causa-lhe pesadelos, bebe a sua água, quebra objetos, causa discórdia entre os empregados, despetala suas rosas, suga sua vitalidade e subtrai seu poder de comando até que o protagonista-narrador sinta restar-lhe apenas o caminho da revolta de besta furiosa contra o dono.





2. L’air est plein d’inconnaissables Puissances



Desde o começo, o conto é marcado pela posição precária do ser humano em relação às várias potências desconhecidas que interferem em sua vida. 


D’où viennent ces influences mystérieuses qui changent en découragement notre bonheur et notre confiance en détresse? On dirait que l’air, l’air invisible est plein d’inconnaissables Puissances, dont nous subissons les voisinages mystérieux. (12 mai)


O conto é tecido pelo duplo embate da fraqueza dos órgãos sensíveis tentando apreender as potências invisíveis que exercem influências misteriosas, e da fraqueza da razão esclarecida tentando manter sob controle a imaginação que, movida pelo medo, gera monstros e mitos.


Comme notre tête est faible et s’effare, et s’égare vite, dès qu’un petit fait incompréhensible nous frappe ! Au lieu de conclure par ces simples mots : « Je ne comprends pas parce que la cause m’échappe », nous imaginons aussitôt des mystères effrayants et des puissances surnaturelles. (12 juillet)


O doutor Parent, mestre em hipnotismo, explica ao protagonista:


Depuis que l’homme pense, depuis qu’il sait dire et écrire sa pensée, il se sent frôlé par un mystère impénétrable pour ses sens grossiers et imparfaits, et il tâche de suppléer, par l’effort de son intelligence, à l’impuissance de ses organes. Quand cette intelligence demeurait encore à l’état rudimentaire, cette hantise des phénomènes invisibles a pris des formes banalement effrayantes. De là sont nées les croyances populaires au surnaturel, les légendes des esprits rôdeurs, des fées, des gnomes, des revenants, je dirai même la légende de Dieu, car nos conceptions de l’ouvrier-créateur, de quelque religion qu’elles nous viennent, sont bien les inventions les plus médiocres, les plus stupides, les plus inacceptables sorties du cerveau apeuré des créatures. (16 juillet)


Para o protagonista-narrador, quanto mais longe da civilização, maior será a facilidade de acreditar no sobrenatural, segundo um determinismo geográfico eurocêntrico desmentido pela própria situação em que ele se encontra.


Décidément, tout dépend des lieux et des milieux. Croire au surnaturel dans l’île de la Grenouillère, serait le comble de la folie... mais au sommet du mont Saint-Michel ?... mais dans les Indes ? Nous subissons effroyablement l’influence de ce qui nous entoure. (21 juillet)


No conto de Maupassant, a relação entre as potências desconhecidas, a potência da imaginação e a potência da razão humana é expressa por um campo semântico que pertence à lógica das relações de domínio (sempre há uma potência débil que se submete à potência mais forte). O vocabulário do domínio e da submissão aparece de várias maneiras ao longo do relato: o domínio dos médicos sobre os pacientes, o domínio do patrão sobre os empregados, o domínio sobre si mesmo, o domínio da ciência sobre a superstição, o domínio do governo sobre o povo:


Je dois me soumettre aux douches et boire du bromure de potassium. (18 mai)


L’invincible sommeil m’a saisi (10 juillet)


Le peuple est un troupeau imbécile, tantôt stupidement patient et tantôt férocement révolté. On lui dit : « Amuse-toi.» Il s’amuse. On lui dit : « Va-te battre avec le voisin. » Il va se battre. On lui dit : « Vote pour l’Empereur. » Il vote pour l’Empereur. Puis, on lui dit: « Vote pour la République. » Et il vote pour la République. (14 juillet)


Ocorre que esse vocabulário do domínio e da submissão mascara a verdadeira relação entre a potência da razão e as potências desconhecidas que intervém na vida humana. Não se trata aí de uma relação que se resolva na vitória de uma das forças. O fato de que a razão passe a compreender uma potência anteriormente desconhecida não significa que essa potência perdeu sua força (por exemplo, o fato de que a causa de uma doença seja descoberta não significa que a doença seja curável). Há poucos casos concretos em que a lógica do domínio e da submissão possa ser aplicada de maneira própria. No conto, o vocabulário do domínio e da submissão não está a serviço da razão, mas da imaginação. Não se trata de compreender, mas de produzir uma imagem ditada pelo desejo de supremacia e pelo medo de perdê-la. Aquele que faz um uso estendido do vocabulário da dominação, na verdade apenas expressa o medo de ser impotente.


O Horla é um nome para esse medo. Ele é o inimigo insidioso e potente que vai subverter a situação de domínio em que protagonista-narrador é o dominante. Se o Horla causa medo é porque pode controlar o Homem (o macho europeu adulto, burguês e esclarecido), fazendo dele sua besta de carga, seu animal doméstico, sua fonte de alimento:


le Horla va faire de l’homme ce que nous avons fait du cheval et du boeuf : sa chose, son serviteur et sa nourriture, par la seule puissance de sa volonté. Malheur à nous ! (19 août)


O medo que o protagonista sente é o da perda de domínio.


Je n’ai plus aucune force, aucun courage, aucune domination sur moi aucun pouvoir même de mettre en mouvement ma volonté. Je ne peux plus vouloir ; mais quelqu’un veut pour moi ; et j’obéis. (13 août)


Daí o alívio que ele sente quando percebe que ainda é capaz de fazer-se obedecer por alguém. Seu poder de comando ainda não se esvaiu totalmente:


Oh! quelle joie de pouvoir dire à un homme qui obéit : « Allez à Rouen ! » (16 août)


Contra esse domínio que declina, a única reação é a promessa de uma revolta. 


Oh ! oui je vais lui obéir, suivre ses impulsions, accomplir toutes ses volontés, me faire humble, soumis, lâche. Il est le plus fort. Mais une heure viendra... (18 août)


Longe de constituir uma compreensão realista das relações de força em jogo, o vocabulário do domínio e da submissão (e da revolta como alternativa) expressa tão-somente uma imaginação ativada pelo medo. O Horla é real porque o medo do protagonista-narrador é real.




3. Pourquoi serions-nous les derniers!



O Horla chega à França como imigrante clandestino invisível, vindo das regiões tropicais e atrasadas do Hemisfério Sul. Ele invade a casa e passa a controlar o proprietário.  Para o burguês europeu do século XIX, ele é a soma de todos os medos. Ele é o reverso do colonialismo (situação que talvez seja obscurecida pelo fato de que o Horla veio do Brasil e não da Guiana).


Portanto, não importa se o Horla é um ente real ou uma alucinação. Aceitar essa oposição significaria endossar os termos em que o burguês esclarecido do século XIX expressava um de seus medos mais profundos: o colapso do seu domínio. Real ou imaginário, o Horla é apresentado como uma criatura mais forte que o Homem (o macho burguês europeu esclarecido).


Un être nouveau ! pourquoi pas ? Il devait venir assurément ! pourquoi serions-nous les derniers ! Nous ne le distinguons point, ainsi que tous les autres créés avant nous ? C’est que sa nature est plus parfaite, son corps plus fin et plus fini que le nôtre, que le nôtre si faible, si maladroitement conçu, encombré d’organes toujours fatigués, toujours forcés comme des ressorts trop complexes, que le nôtre, qui vit comme une plante et comme une bête, en se nourrissant péniblement d’air, d’herbe et de viande, machine animale en proie aux maladies, aux déformations, aux putréfactions, poussive, mal réglée, naïve et bizarre, ingénieusement mal faite, oeuvre grossière et délicate, ébauche d’être qui pourrait devenir intelligent et superbe. (19 août)


No entanto, o que é perturbador no conto de Maupassant não é a possibilidade de o Homem ser derrotado pelo seu oponente num embate mítico.  O que é perturbador é que, embora o protagonista-narrador anuncie o fim da época do Homem, tudo o que vemos é o desabamento de um pacato burguês impressionável, tanto mais lamentável quanto é ridículo aos olhos dos outros: 


Beaucoup de personnes à qui j’ai raconté cette aventure se sont moquées de moi. Je ne sais plus que penser. Le sage dit : Peut-être? (19 juillet)


Para o pobre filisteu apavorado a sabedoria se resumiria num gesto dubitativo caridoso, a simples migalha de um “talvez” atirada a um homem que precisa desesperadamente de certezas. É nessa escala reduzida e mesquinha que se coloca o conto, apesar da fabulações pseudo-filosóficas e pseudo-científicas do narrador-protagonista.


O Horla não nomeia uma criatura positivamente existente, mas sim uma lacuna, uma ausência, o buraco negro de medo em que a vontade se esvai e a solidez do controle se esfarela.  Ele é a negação radical da vontade, negação em face da qual até Deus deixa de ser uma lenda criada pela imaginação dos supersticiosos e se torna possibilidade de salvação para o pobre protagonista-narrador:


Oh ! mon Dieu ! Mon Dieu ! Mon Dieu !Est-il un Dieu ? S’il en est un, délivrez-moi, sauvez-moi! secourez-moi ! Pardon ! Pitié ! Grâce ! Sauvez-moi ! Oh ! quelle souffrance ! quelle torture! quelle horreur ! (14 août)


A salvação evidentemente não veio. O narrador-protagonista bota fogo na própria casa enquanto os empregados dormiam. Ele destrói a casa à qual se prendiam suas raízes, mata os homens e mulheres que obedeciam a suas ordens. Ele foge. Da última vez que o vemos, ele é um homem assustado e sozinho num quarto de hotel a pensar em suicídio. Apenas ele e o vazio, apenas ele e uma vontade impotente que se limita a desfazer o tecido das coisas. 


Essa é a verdadeira dominação do Horla.





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