domingo, 5 de maio de 2013

A claraboia e o holofote #4






Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Seção I - Burgueses e proletários



2. Um flashback vertiginoso

Marx disse que “a sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado”. Para sustentar a tese de que o antagonista da burguesia é o proletariado, Marx não recorre ao método “positivista” de acumular evidências de natureza estatística ou observacional. Ele trata de construir um relato em que o conflito surja como resultado da gênese dos próprios antagonistas, a começar da burguesia:


Dos servos da Idade Média nasceram os moradores dos primeiros burgos; desta população municipal saíram os primeiros elementos da burguesia.

A descoberta da América, a circunavegação da África abriram um novo campo de ação à burguesia emergente. Os mercados das Índias Orientais e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e das mercadorias em geral imprimiram ao comércio, à indústria e à navegação um impulso desconhecido até então; e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.

A organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não satisfazia as necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina.

Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais, a procura por mercadorias continuava a aumentar. A própria manufatura tornou-se insuficiente; então, o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos.

A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou enormemente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de comunicação. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a expansão da indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e colocando num segundo plano todas as classes legadas pela Idade Média.

Vemos, pois, que a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de transformações no modo de produção e de circulação.

Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia foi acompanhada de um processo político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada e autônoma na comuna, aqui república urbana independente, ali terceiro estado tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, base principal das grandes monarquias, a burguesia, com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.



Num flashback vertiginoso, Marx narra todo o desenvolvimento da burguesia desde suas humildes origens feudais até o Estado industrial moderno. Algumas das melhores qualidades de Marx como escritor estão presentes nesse texto antológico: o dom da fórmula que apreende um conjunto complexo de relações; a lógica implacável que conduz a conclusões fulminantes e, por vezes, sarcásticas. Porém, Marx também introduz abruptamente vários conceitos que simplesmente caíam como raios de um céu azul para os leitores não familiarizados com a Economia Política inglesa: mercado, mercadoria, divisão do trabalho, grande indústria moderna, mercado mundial, capital, modos de produção.

É tentador para o marxista que lê o Manifesto, aceitar como evidentes esses conceitos à luz do desenvolvimento que Marx lhes deu em O Capital. Essa leitura retrospectiva dá ao leitor um sentimento de familiaridade próprio de quem reconhece o terreno por onde caminha (afinal estamos diante do relato canônico da “ascensão da burguesia” na Idade Moderna). Mas, com isso, é a estranheza do texto que deixa de ser conhecida e reconhecida.

Em primeiro lugar, é bastante estranho que o relato do desenvolvimento da burguesia não faça alusão à luta de classes.  Tudo se passa como se a burguesia tivesse se tornado aquilo que é apenas por causa da expansão geográfica dos mercados e dos avanços técnicos. A oficina foi substituída pela manufatura, que foi substituída pela grande indústria para satisfazer a demanda crescente por mercadorias na América, na África e na Ásia. No relato de Marx, é a lógica expansionista do mercado que impele a ascensão da burguesia, não a luta de classes.  Daí o caráter curiosamente acumulativo, linear, não dialético, dessa ascensão em que as novas relações de produção substituem aquelas da “sociedade feudal em decomposição”. A burguesia parece dotada de uma dinâmica própria que dissolve todas as relações que a aprisionam. Ela não precisa combater: ela parece ter o poder de infiltrar-se em toda a parte e mudar as regras do jogo em seu favor. Trata-se de uma classe que aparentemente não tem antagonistas à sua altura. 

Do ponto de vista econômico, a ascensão da burguesia foi resultado do progresso técnico e do crescimento mundial da demanda. O caráter conflituoso e classista só reaparece na explicação de Marx quando ele procura mostrar que a ascensão econômica da burguesia foi acompanhada por um processo de ascensão política. No campo politico, a burguesia teve que conquistar posições para deixar de ser classe oprimida do feudalismo, aproximando-se ou afastando-se das monarquias, em antagonismo com a nobreza, até o momento em que a burguesia ganha a soberania no Estado representativo moderno, que é transformado em comitê dos negócios comuns da classe burguesa (tese que os teóricos marxistas e não-marxistas tiveram muitas ocasiões para discutir...)

O que temos, então, no vertiginoso flashback do desenvolvimento da burguesia?

Do ponto de vista econômico, um desdobramento contínuo de capacidade produtiva e dos meios de circulação para atender uma demanda que parece crescer por si mesma; do ponto de vista político, um confronto continuo para eliminar os obstáculos que tolhem a livre expansão da indústria e do comércio. 

Em resumo: automatismo do mercado no plano econômico; negociação e conflito classista no plano político. 

(Que relação haveria entre essas duas instâncias?  Marx é extremamente vago quando diz que “cada etapa da evolução percorrida pela burguesia foi acompanhada de um processo político correspondente”. A política é epifenômeno da economia? Os fenômenos políticos são paralelos aos fenômenos econômicos? Entre os processos econômicos e os processos políticos há tensão e ação recíproca? Velhas questões sem resposta.)

O que deveria incomodar profundamente um marxista que lê o relato da ascensão da burguesia não é apenas o fato de que a luta de classes aparece apenas como conflito político, mas também o fato de que o relato de Marx está calcado no poder explicativo do mercado:

A organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não satisfazia as necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados.
(...)
Todavia, os mercados ampliavam-se cada vez mais, a procura por mercadorias continuava a aumentar. 

Parece que Marx ainda estava sob o poder fetichista da mercadoria e da demanda e, por esta razão, ao invés do desdobramento dos antagonismos internos do mercado e da mercadoria, o que Marx nos oferece é apenas o espetáculo pobre da espiral ascendente do lucro:

A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou enormemente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de comunicação. Este desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a expansão da indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e colocando num segundo plano todas as classes legadas pela Idade Média.

A menção isolada e quase acidental aos “capitais” que a burguesia multiplicava mostra bem a distância entre esse discurso - que se aproxima tanto das apologias vulgares do mercado - e a crítica da economia política que Marx vai desenvolver nas duas décadas seguintes ao fracasso revolucionário de 1848.

Nem dialética, nem “positivista”, a abordagem de Marx parece apoiar-se sobre um imaginário social preexistente, mais do que sobre um exame da realidade social. Parece que o manifesto que deveria se contrapor ao espectro do comunismo, cria outros espectros: o do mercado, a da demanda crescente, o da burguesia que, como um fantasma, avança sem resistência por qualquer parte.

Então seria verdade que a burguesia, tal como descrita no Manifesto, é um personagem fantástico? Um sintoma de que Marx não chegou a uma compreensão completa e não fetichizada do processo social?  

Assunto para o próximo capítulo deste folhetim.



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