domingo, 9 de junho de 2013

A claraboia e o holofote #8





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Excurso n.3 -


Contos da carochinha tem má reputação. Eles sempre são capturados em redes de oposição nas quais formam o par negativo da realidade, do fato, do esclarecimento, da visão adulta, do senso trágico da realidade, da ciência; enfim, da verdade. O conto da carochinha aparece sempre como fantasia, ficção, mistificação, infantilismo, visão ingênua do mundo, teoria primitiva: em suma, como mentira.

No entanto, numerosas vezes, o apelo à realidade e aos fatos contra a fantasia e a ficção foi feito pelas forças da reação e da opressão (não importa de qual lado do alinhamento político). Dentro de uma certa tradição marxista (aquela mais intimamente ligada ao bolchevismo), a dualidade realidade/fantasia ganhou a forma de oposição entre o “socialismo científico” (no singular) e os “socialismos utópicos” (no plural), lição ensinada em todas as cartilhas e catecismos comunistas. Neste caso, a questão nunca foi a cientificidade do socialismo, mas a imposição de um consenso definido pela cúpula da Internacional para combater as tendências críticas, desqualificando-as como dissidentes, renegadas ou utópicas. Lênin e seus lacaios fizeram muito para ampliar o léxico de insultos da esquerda contra a própria esquerda.

No quadro da 3ª Internacional, “socialismo científico” era simplesmente o “socialismo real”. A conotação sombria e inapelável que o termo ganhou tornou muito fácil a tarefa dos apologistas do mercado e dos próceres da reação: bastava argumentar que o chamado “socialismo real” era toda a realidade do socialismo, e que os outros socialismos podiam ser descartados por serem simplesmente utópicos, como a própria Academia de Moscou reconhecia...

No entanto, mesmo uma leitura distraída da terceira seção do Manifesto mostra que os alvos principais de Marx e Engels não eram os utópicos, mas sim o que eles chamavam de “socialismos reacionários” e “socialismos conservadores ou burgueses”. O Manifesto se mostra extremamente compreensivo quanto ao valor do “socialismo e comunismo crítico-utópicos”:

Os sistemas socialistas e comunistas propriamente ditos, os de Saint-Simon, Fourier, Owen etc., aparecem no primeiro período da luta entre o proletariado e a burguesia (...)

Os fundadores desses sistemas compreendem bem o antagonismo das classes, assim como a ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhe seja peculiar.

Como o desenvolvimento dos antagonismos de classes acompanha o desenvolvimento da indústria, não distinguem tampouco as condições materiais da emancipação do proletariado e põem-se à procura de uma ciência social, de leis sociais que permitam criar essas condições.

Substituem a atividade social por sua própria imaginação pessoal; as condições históricas da emancipação por condições fantásticas; a organização gradual e espontânea do proletariado em classe por uma organização da sociedade pré-fabricada por eles. 

(...)

Essa descrição fantástica da sociedade futura, feita numa época em que o proletariado ainda pouco desenvolvido encara sua própria posição de um modo fantástico, corresponde às primeiras aspirações instintivas dos operários a uma completa transformação da sociedade.

Mas as obras socialistas e comunistas encerram também elementos críticos. Atacam todas as bases da sociedade existente. Por isso forneceram em seu tempo materiais de grande valor para esclarecer os operários.

(...)

A importância do socialismo e do comunismo crítico-utópicos está na razão inversa do seu desenvolvimento histórico. À medida que a luta de classes se acentua e toma formas mais definidas, a fantástica pressa de abstrair-se dela, essa fantástica oposição que lhe é feita, perde qualquer valor prático, qualquer justificação teórica. Por isso, se em muitos aspectos os fundadores desses sistemas foram revolucionários, seus discípulos formam sempre seitas reacionárias. Aferram-se às velhas concepções de seus mestres apesar do desenvolvimento histórico contínuo do proletariado.
(Manifesto do Partido Comunista, seção III – Literatura Socialista e Comunista)



O socialismo e comunismo crítico-utópicos são apresentados como produto de um estágio em que o antagonismo de classes começava a tornar-se evidente. Mas justamente por causa do estado incipiente da luta de classes, Saint-Simon, Fourier e Owen procuravam uma ciência social capaz de criar condições para a emancipação do proletariado. 

Deveríamos então dizer que é o socialismo crítico-utópico que pretende ser científico. É ele que quer ser uma ciência da sociedade, capaz de organizá-la e abolir os antagonismos e o sofrimento da classe operária. O comunismo de Marx e Engels no Manifesto não precisava de uma ciência social, mas apenas de uma permanente vigilância das condições históricas. A superioridade da visão de Marx e Engels em relação a Saint-Simon e Fourier era, do ponto de vista dos próprios autores do Manifesto, apenas o resultado de viverem num momento supostamente mais maduro do antagonismo de classes e de consciência do proletariado. O comunismo de Marx não é uma ciência (isto é, um conjunto de teorias sobre a sociedade), mas sim o resultado da observação das forças em ação no momento. 

Os autores do Manifesto tratam de mostrar que, precisamente pelo fato de que as condições sociais estavam pouco desenvolvidas, a ciência social proposta pelos fundadores dos sistemas crítico-utópicos era fantasiosa. Não há uma ciência da sociedade (portanto da História) que possa estar além do próprio horizonte histórico em que se encontra. Tudo o que vai além da práxis concreta e presente ganha necessariamente a forma de fantasia e misticismo (eis o conteúdo da oitava tese contra Feuerbach). Não há holofotes que realmente iluminem o futuro, há apenas claraboias que clareiam o presente. Entretanto, o Manifesto reconhece o valor crítico da ciência social/fantasia de Saint-Simon, Fourier e Owen. É o elemento crítico que as torna cruciais para o desenvolvimento e esclarecimento do proletariado, mas esse elemento crítico é indissociável do caráter fantástico em que essas teorias se apresentam. Elas projetam “cientificamente” sociedades futuras em que os sofrimentos do presente sejam abolidos e é essa fantasia que dinamiza o movimento de emancipação.

Assim, o próprio Manifesto do Partido Comunista desfaz a oposição entre “socialismo científico” e “socialismo utópico”. A pretensão de ciência é meramente fantasia, mas a fantasia tem um núcleo de verdade como crítica que apreende, em negativo, o estágio atual do movimento histórico. Com isso, a simples oposição entre realidade e fantasia se desfaz na sua imbricação mútua.

Eu acredito que essa leitura que Marx e Engels faziam de Saint-Simon, Fourier e Owen pode hoje ser dirigida ao próprio Manifesto.

A forma narrativa da primeira seção (Burgueses e Proletários),  ao transformar a burguesia em personagem fantástica de um conto da carochinha, falseia a história do ponto de vista factual, mas tem vantagens didáticas para a compreensão das transformações da Idade Moderna.

A primeira vantagem está na própria economia expositiva: ao invés da curva fractal da história social e econômica moderna na sua factualidade, Marx nos oferece uma esquemática linha reta, que apreende de um só golpe todo o movimento histórico. Trata-se, portanto, de uma transposição didática especialmente audaciosa, porquanto abusa das generalizações e das personificações de forças abstratas (sobre a teoria da transposição didática, fiz alguns comentários em Três pensamentos no café da manhã).

O procedimento de Manifesto, porém, tem outra vantagem didática. Despojando a burguesia (isto é, o capital) das circunstâncias históricas específicas, os nexos lógicos do capital se evidenciam e a potência que lhe é própria se desnuda. O capital é uma força histórica, mas os efeitos que ele produz obliteram a compreensão plena da sua lógica. Ao invés da granada, vemos apenas a desordem e os danos de seus estilhaços.  A história moderna - no plano da sua factualidade - obscurece a efetividade do capital - no plano de seu movimento de longo prazo.  Por isso, sempre será possível para qualquer historiador não-marxista contestar a causalidade do capital. O Manifesto não resiste a uma leitura que exija respeito aos padrões historiográficos que se constituíram no século XIX e XX, em grande parte como resistência ao marxismo. Mas o conto da carochinha narrado no Manifesto permite vislumbrar – pela sua potência imaginativa – o painel mundial e a escala multissecular da ação da burguesia (isto é, do capital). Somente um lance audacioso de imaginação poderia romper com a visão paroquial oferecida pelas historiografias nacionais, diplomáticas ou políticas da época. 



No próximo capítulo deste folhetim, quero mostrar um exemplo dos ganhos interpretativos do Manifesto, ao abandonar a factualidade pontual em proveito das linhas gerais do conto da carochinha. 





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