terça-feira, 23 de julho de 2013

Il moto non è diverso dalla stasi #1





TURIM

I

Nietzsche



“Turín es mi lugar “probado” y lo escogí desde entonces por residencia. Volvi a ocupar el mismo alojamento que había ya ocupado em la primavera, Via Carlo Alberto, 6111, enfrente del poderoso palácio Carignano, en el que nasció Vittorio Emanuele. Mis ventanas daban a la plaza Carlo Alberto, al mediodia, sobre um horizonte bordeado de colinas. Sin vacilación, y sin dejarme distraer un momento, reanudé mi trabajo. No me quedaba más que terminar el último cuarto de la obra. El 30 de septiembre, gran victoria; séptimo dia, ociosidade de um dios que se pasea a lo largo del Po. El mismo dia escribi también el prefácio de “El Ocaso de los Ídolos”, cuya corrección me habia servido de recreo durante el mes de septiembre.
Jamás he passado um otoño como aquél, jamás hubiera yo creído que uma cosa como aquélla fuera posible sobre la tierra: um Claude Lorrain transportado el infinito, todos los días de igual perfección insuperable.”
(Ecce Homo, capítulo “El Ocaso de los Ídolos”, Obras Completas de Federico Nietzsche, M. Aguilar Editor, Buenos Aires)



Via Carlo Alberto, 6111



Em 5 de abril de 1888, vindo de Gênova, Nietzsche chega à capital da casa de Savóia. Eufórico com o tempo excelente e com as ruas largas, retas e planas, que favoreciam longas caminhadas, escreve para o seu amigo Peter Gast:

Turim, caro amigo, é uma descoberta capital. Falo pensando que talvez possa tirar proveito desta notícia. A minha disposição é boa, trabalho de manhã à noite – um pequeno panfleto sobre a música ocupa-me os dedos – digiro como um semideus, durmo apesar do barulho noturno das viaturas. Tudo isto são sintomas de uma eminente adaptação a Turim. (citado por Daniel Halévy, Nietzsche, capítulo Nox ruit)




Palazzo Carignano: a fachada barroca de Guarino Guarini


Enquanto redige seu  panfleto, Nietzsche descobre numa biblioteca da cidade uma tradução francesa do Código de Manu, a antiquíssima lei sacerdotal hindu que estabelece o sistema de castas e os deveres morais relativos a cada uma delas. Em êxtase, ele torna a escrever a Peter Gast:

Não se poderia, sem pecar contra o espírito, associar na mesma frase a Lei de Manu, livro de uma incomparável espiritualidade, e a Bíblia. Preste-se atenção: as leis de Manu tem atrás de si, em si, uma verdadeira filosofia e não uma repugnante judaíce de rabinismo e superstição (...) Vamos ao essencial e mostraremos a diferença fundamental: com as leis de Manu, as classes superiores, os filósofos e os guerreiros, mantem o controle da multidão; em toda a parte os valores superiores, o consentimento à vida, o sentimento da perfeição, de um triunfal bem-estar: o sol ilumina todas as páginas do livro. Onde o cristianismo exibe a sua insondável vulgaridade (a sexualidade, a mulher, o casamento), as leis de Manu aplicam-se com respeito, amor e confiança. Como se poderia por nas mãos de mulheres e crianças um livro onde se encontram estas palavras: Para evitar o impudor, que cada um tenha a sua mulher, cada mulher tenha um marido. É melhor casar-se do que arder... (citado por Daniel Halévy, Nietzsche, capítulo Nox ruit).

Se há algo que não se pode negar é a amplitude do "demasiado humano" em Nietzsche. Do sublime ao ridículo, da plenitude à tacanheza, nada lhe foi estranho.




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O “pequeno panfleto sobre a música” será publicado no final de setembro de 1888, com o nome de O Caso Wagner.  A violência do ataque contra o antigo ídolo e mentor Richard Wagner, que havia morrido há cinco anos, causará indignação nos círculos wagnerianos e a perda de mais alguns amigos.

Apartémosnos finalmente, por un momento, para respirar, del estrecho mundo a que todo problema sobre el valor de personas condena al espíritu. Un filósofo siente la necesidad de lavarse las manos después de haberse ocupado durante largo tiempo sobre el “caso Wagner”. Ahora voy a exponer mi concepto de lo moderno. Toda época encuentra en la medida de sus fuerzas otra medida para estabelecer qué virtudes le están permitidas y cuáles vedadas. O tiene las virtudes de la vida ascendente, y entonces resiste em sus más profundas raíces a las virtudes de la vida descendente. O ella misma es uma vida que desciende, y entonces tiene necesidad de las virtudes de la decadencia, y odia todo lo que se justifica con la plenitude y la abundancia de fuerzas. La estética está indisolublement ligada a estas premisas biológicas: hay uma estética de la decadencia, hay una estética clássica; lo bello en si es una quimera tal como lo entende el idealismo.


En la estrecha esfera de los llamados valores morales no se puede encontrar un mayor contraste que el que existe entre una moral de señores y una moral de valoraciones cristianas; esta última ha crecido sobre un terreno completamente malsano (los Evangelios nos presentan exatamente los mismos tipos fisiológicos que describen las novelas de Dostoiewski), mientras la moral de los señores (romana, pagã, clásica, moral del Renacimiento) es el linguaje simbólico de las buenas constituiciones, de la vida ascendente, de la voluntad de poder entendida como princípio de la vida. La moral de los señores afirma tan instintivamente como niega la cristiana (Dios, el más allá, renuncía a si mismo, son puras negaciones). La primera comunica a las cosas su plenitude: esclarece, estabelece, racionaliza el mundo; la segunda empobrece, palidece, afea el valor de las coisas, niega el mundo. El “mundo” es una injuriosa palabra del cristianismo. Estas formas contrarias en la óptica de los valores son necesarias; son modos de ver, que no se alcanzan con argumentos y refutaciones. No se refuta el cristianismo, no se refuta una enfermedad de los ojos. El hecho de haber combatido el pesimismo como una filosofía fué el colmo de la idiotez erudita. Las nociones “verdadero” e “no verdadero” no tienen a lo que creo, ningún sentido en la óptica.

De lo único de que nos debemos defender es  de la falsedad, de la doblez del instinto, que no quiere considerar como constrastes estos contrastes; esta, por ejemplo, fué la voluntad de Wagner, que fué un no pequeño maestro de tales falsedades. (El Caso Wagner, epílogo, Obras Completas de Federico Nietzsche, M. Aguilar Editor, Buenos Aires)

Nas décadas seguintes, a crítica às "premissas biológicas" da estética decadente e o desprezo pela "repugnante judaíce de rabinismo e superstição" foram levadas adiante justamente por ideólogos que entronizaram aquilo que Nietzsche combatia: as virtudes da nação alemã, a demagogia e o culto a Richard Wagner, tanto pelas virtudes romanas e nobres de Rienzi, quanto pela pureza cristã de Parsifal.


Como aconteceu muitas vezes, as palavras de Nietzsche foram interpretadas da maneira mais torpe, mas é verdade que havia nelas muita torpeza, muita doença sem cura e muita vulgaridade de pregador de praça pública.




Palazzo Carignano: pórtico da Piazza Carlo Alberto


Feliz com a primavera espiritualmente tão rica, Nietzsche faz as malas e parte no dia 5 de junho. O verão, decide passá-lo na Suiça, em Sils-Maria, onde escreve mais dois livros: O Anticristo e O Crepúsculo dos Ídolos. No outono, retorna a Turim. Põe-se a reler toda a sua obra e escreve Ecce Homo:

É a ele próprio, é à sua glória, que consagra esse livro, o seu último livro. A euforia rompe os freios do hábito e da razão que controlam, em cada pessoa, os reflexos do orgulho ingênuo, e ele entoa a litania dos louvores a si próprio. Leiamos os títulos dos capítulos: Porque sou tão prudente – Porque sou tão refletido – Porque escrevi livros tão bons  – Porque sou uma fatalidade - Glória e eternidade. (Daniel Halévy, Nietzsche, capítulo Nox ruit)

A euforia domina Nietzsche. É certo que havia boas razões para isso. Sua obra começava a suscitar reações de admiração. Numa carta, o crítico Georg Brandes conta  o êxito do seu curso sobre Nietzsche em Copenhagen. Também o dramaturgo sueco August Strindberg lhe escreve, empolgadíssimo com a leitura de O Caso Wagner. Embora estivesse longe de ser entendido e amado, Nietzsche se sente engrandecido e deseja saborear cada momento. Come bem e frequenta os cafés mais movimentados, sempre com roupas bem cuidadas. Quer ser visto e gosta do respeito carinhoso que as pessoas lhe demonstram, como relata na carta a Meta von Salis, de 29 de dezembro:

O mais singular aqui em Turim é a total fascinação que eu exerço – em todas as classes. A cada instante sou tratado como um príncipe, há uma distinção extrema no modo como abrem a porta para mim e me servem uma comida. Cada rosto se transfigura quando entro numa loja grande (citado por Safranski, Nietzsche: biografia de uma tragédia, capítulo 14)



Ponte Vittorio Emanuele


Os sinais do colapso se acumulam rapidamente. Nietzsche fala sozinho, dança nu no apartamento e escreve cartas incoerentes para os amigos Franz Overbeck e Jacob Burckhardt, que se inquietam.

Uma vez mais Nietzsche quis se arrancar ao furor de criar e de destruir que o devora há mais de um ano; quis ultrapassar a inspiração dionisíaca, aumentá-la num outro fervor desconhecido até para ele. Goethe, o apolíneo, tantas vezes invocado desde há dois anos, não o pode salvar. Necessita encontrar outro recurso; não uma serenidade, esse tempo passou, a alma pede-lhe outra coisa, exige um fervor. Criar ou descobrir um novo fervor sempre foi uma das suas esperanças. A euforia exalta-o, o último São Silvestre não passará em vão. Eis o momento, recentemente anunciado com dois versos:

Nun lacht die Welt, der grause Vorhang riss,
Die Hochzeit kam für Licht und Finsterniss ..... 
(Finalmente o mundo ri, a cruel cortina rasga-se/ Chega o tempo dos esponsais para a luz e as trevas)

Em papéis que mãos atentas apanharão daí a pouco na desordem do quarto do alucinado, serão encontrados, escritos a lápis, os dois nomes juntos: Dioniso, o Crucificado. “Num dia que se deve situar entre 28 de dezembro e 3 de janeiro – escreve Charles Andler – Dioniso e o Crucificado fundiram-se nele...” (Daniel Halévy, Nietzsche, capítulo Nox ruit)

No dia 3 de janeiro, Nietzsche viu um cocheiro que chicoteava um cavalo na Piazza Carlo Alberto. Cheio de compaixão, abraçou-se ao animal para protegê-lo e, entre lágrimas, desmaiou. O amigo Franz Overbeck vem buscá-lo e parte com ele no  dia 9. Nietzsche estava demente e assim permaneceu até morrer em 1900.

Ninguém jamais soube o que foi feito do cavalo da Piazza Carlo Alberto, mas o grande diretor húngaro Bela Tárr ofereceu uma resposta ficcional à questão no filme O Cavalo de Turim (A Torinói Ló, 2011). O cocheiro e a sua filha são seres taciturnos, fustigados pela crueldade de um vento incessante, isolados na repetição, no silêncio e na pobreza, até que a própria luz do mundo se esvai. 




II

Primo Levi



Quando o jovem partisan Primo Levi foi preso por uma milícia fascista em dezembro de 1943, ele preferiu declarar-se judeu, ao invés de membro da guerrilha. Depois de passar pelo campo de transferência de Fossoli, em 22 de fevereiro de 1944 foi enviado para Auschwitz, onde recebeu o número de registro 174.517 e foi destinado ao trabalho no campo de Buna-Monowitz (Auschwitz III).

Após a libertação em janeiro de 1945, o Exército Vermelho transferiu os sobreviventes para um campo em Katowice, cujo comandante tentava reunir informações sobre as condições sanitárias do Lager. O médico Leonardo Debenedetti, também sobrevivente, e Primo Levi, que era químico, foram solicitados a redigir o Relatório sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de Monowitz–Auschwitz.  Os sobreviventes começavam a dar o seu testemunho do horror dos campos de extermínio.

A volta para casa foi difícil. O medo, a situação política instável, a falta de meios de transporte, a destruição das cidades do Leste europeu obrigaram Levi a fazer um caminho tortuoso pela Polônia, Bielo-Rússia, Ucrânia, Romênia, Hungria, Alemanha e Áustria. Quando chegou a Turim em outubro daquele ano, começou a escrever o relato da sua experiência em Auschwitz, que se tornou sua primeira obra: Se questo è um uomo.

A recusa das grandes editoras, incluindo a casa Einaudi, de Turim, uma das mais importantes da Itália, não o impediu de publicar o livro por um pequeno editor em 1947. A repercussão foi mínima. Desanimado, Primo Levi se dedicou ao trabalho na indústria química. Mas, em 1956, por causa do vivo interesse que o público demonstrou por uma exposição sobre os deportados de Turim , Levi voltou a propor o livro à editora Einaudi, que o aceitou dessa vez. O sucesso nacional e internacional de Se questo è um uomo encorajou o autor a retomar suas memórias do Holocausto  em várias outras obras.

Com exceção do período como partisan e como prisioneiro, Levi sempre viveu no apartamento do terceiro andar da Corso Re Umberto, 75, onde ele nasceu e que ainda hoje pertence à sua família.


Entrada do edifício de Primo Levi em janeiro de 2013


Na manhã de 11 de abril de 1987, como sempre fazia, a concièrge foi à porta de seu apartamento para entregar-lhe a correspondência. Ela desceu a escada espiral e, mal tinha se fechado em seu quartinho no térreo, ouviu o baque forte de um corpo contra o piso. Era Primo Levi. A autópsia revelou que o esmagamento do crânio lhe causou morte instantânea. Não havia nenhum sinal de violência que não tivesse relacionado à queda.

A divulgação da notícia consternou os amigos e admiradores de Levi. Logo a hipótese de um acidente (Levi se queixara de tontura ao seu médico nos dias anteriores) foi desafiada pela hipótese de suicídio. Para alguns, Levi teria concluído a sua obra e só lhe restava a morte; para outros, a doença da mãe do escritor, que a tornara totalmente dependente do filho se tornou desesperadora à medida que ele envelhecia; para Elie Wiesel, outro grande expoente da literatura de testemunho do Holocausto, Primo Levi, como outros sobreviventes, jamais superou a trauma do Lager e “morreu em Auschwitz, quarenta anos depois”.

A hipótese de suicídio de Primo Levi, ao que me parece, admite pelo menos três interpretações. Pensada à maneira estóica, seria o ato derradeiro de autonomia e de soberania, que daria ao intelectual o direito de encerrar a obra, sem sobras nem aparas. Poderia ser ainda um ato de recusa final do absurdo da existência por alguém que, depois de ter olhado o abismo da crueldade, sentia culpa por ter sobrevivido. Ou seria o ato impulsivo de desesperança de um homem velho que lutava contra a depressão e mergulhou no fosso da escada para liquidar a fatura.

Tenho a impressão de que, para aqueles que acreditam na hipótese do suicídio, a possibilidade de uma morte meramente acidental deve parecer um anticlímax metafísico, isto é, uma intromissão indevida e brutal da contingência do mundo. É por isso que as objeções factuais que o sociólogo italiano Diego Gambetta levantou contra a hipótese do suicídio encontraram e encontram tanta resistência. 

[A discussão sobre a hipótese do suicídio se encontra no famoso artigo de Gambetta, “Primo Levi's Last Moments" e foi retomada num artigo interessante e informativo do psiquiatra Adrian Gramary, "Primo Levi: a queda do sobrevivente".]

Não sei se Primo Levi caiu por acidente ou atirou-se do alto da escada, mas sei que ele nunca demonstrou disposição em acreditar que há um tecido inconsútil que dá sentido último aos acontecimentos . A contingência estava na origem de sua carreira de escritor e constituía o horizonte de sua vida, como ele mesmo disse em 1976:

Una certa affermazione posso però formularla, ed è questa: se non avessi vissuto la stagione di Auschwitz, probabilmente non avrei mai scritto nulla. Non avei avuto motivo, incentivo, per scrivere: ero stato uno studente mediocre in italiano e scadente in storia, mi interessavano di più la física e la chimica, ed avevo poi scelto un mestiere, quello del chimico, che non aveva niente in comune col mondo della parola scritta. È stata l’esperienza del Lager a costringermi a scrivere: non ho avuto da combattere con la pigrizia, i problemi di stile mi sembravano ridicoli; ho trovato miracolosamente il tempo di scrivere pur senza mai sottrare neppure un’ora al mio mestiere quotidiano; mi pareva, questo libro, di averlo già in testa tutto pronto, di doverlo solo lasciare uscire e scendere sulla carta.

Escritor por acaso, mas principalmente sobrevivente por acaso:

Il fato che io sia sopravvissuto, e sia ritornato indenne, secondo me è dovuto principalmente ala fortuna. Solo in piccola misura hanno giocato fattori preesistenti, quali il mio allenamento ala vita di montagna, ed il mio mestiere di chimico, che mi ha concesso qualche privilegio negli ultimi mesi de prigionia. Forse mi ha aiutato anche il mio interesse, mai venuto meno, per l’animo umano, e la volontà non soltanto di sopravvivere (che era comune a molti), ma di sopravvivere allo scopo preciso di raccontare le cose a cui avevamo assistito e che avevamo sopportato. E forse ha giocato infine anche la volontà, che ho tenacemente conservata, di riconoscere sempre, anchei nei giorni più scuri, nei miei compagni e in me stesso, degli uomini e non delle cose, e di sottrarmi così a quella totale umilazione e demoralizzazione che conduceva molti al naufragio spirituale.
(Primo Levi, Se questo è uomo, Apêndice)

A contigência é radical, mas não conduz ao absurdo. Palavras como “provavelmente”, “em pequena medida”, “talvez” servem para dar a dimensão da nossa ignorância, elas não constituem uma denúncia de alguma opacidade insuperável do mundo, à qual recorrem com demasiada facilidade os que sentem o chão ceder quando se dão conta da ausência de Deus. A respeito dessa ausência, Levi fez uma declaração hoje famosa, que nos atira diretamente no plano da história: C’è Auschwitz, quindi non può esserci Dio.



III


Gianni Vattimo e tantos outros


O inverno não estava demasiado frio, mas o chuvisco intermitente e a vontade de descansar o corpo por uns instantes nos fizeram parar no café Al Bicerin.  O lugar é pequeno e mal tínhamos espaço para espalhar nossos agasalhos pesados. Ludmila tinha também que procurar onde deixar a sacola com lãs e o bastidor de bordar que tínhamos comprado num armarinho bem fornido e simpático numa travessa da Corso Re Umberto, quando voltávamos da visita ao prédio de Primo Levi.

Galeria do Teatro Cinema Roma, ao lado do Palazzo Carignano

Acostumados ao ritmo paulistano de Milão, íamos a passo largo e rápido, mas Turim é mais lenta no andar e no falar. Da Corso Re Umberto, pegamos a Via Antonio Gramsci e seguimos pelas arcadas da Via Roma até a Piazza San Carlo, depois até a Piazza Reale. Parávamos o tempo justo para as fotos e filmagens. Eu queria seguir logo à capela onde o Santo Sudário é guardado.

A igreja do Sudário é a mais decepcionante da Itália. Os fiéis se juntam, no fundo, à esquerda de quem entra, para contemplarem o nicho vazio onde se esconde a suposta relíquia do Homem-Deus morto. Se me fosse dado escolher, gostaria que o Sudário fosse autêntico e não uma brincadeira de mau-gosto de Leonardo da Vinci, como nos romances de Dan Brown.

O vazio de uma relíquia contestada me esvaziou também. Precisávamos de um café e o Al Bicerin não fica longe. Trouxeram-nos as taças com as colheres de cabo longo, que não são para mexer o café, mas para alcançar o chocolate no fundo. O café funciona desde o século XVIII na pequena Piazza della Consolata, voltado para uma torre românica.  Dizem que o conde Cavour o frequentava. Nietzsche deve ter estado aqui também na sua segunda temporada em Turim, quando costumava aparecer em lugares mais frequentados. Mas é possível que ele, que gostava tanto de andar à beira do rio, fosse para algum café da Via Po, bem mais perto da sua casa, depois de entrar na biblioteca da universidade ou visitar a Mole Antonelliana em construção.

Um grupo de russos acabou de lotar o café. Falavam alto. Os russos sempre falam alto. Ludmila e eu topamos com eles por toda a Itália, mas era singularmente apropriado encontrá-los na célebre cidade sabauda, cujo projeto urbanístico setecentesco se aproxima tanto do de São Petersburgo, com  seus palácios hieráticos, seus cavaleiros de bronze e suas perspectivas infinitas.



Via Roma vista da Piazza Castello


Houve muitas pontes entre Turim e a Rússia no passado. Antes que a família Agnelli aceitasse construir uma fábrica da FIAT na Rússia (onde se produzia o indestrutível Lada), Gramsci tinha saudado a revolução bolchevique e chegou a representar os marxistas italianos na Rússia, onde conheceu a militante que se tornaria sua esposa. Bem antes, no começo do século XIX, os irmãos de Maistre, Joseph e Xavier, foram os mais famosos dos russo-turineses. Xavier, autor de Viagem à volta do meu quarto, que inspirou Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett,  foi viver em São Petersburgo como pintor. Joseph, o mais brilhante do ideólogos da Reação, encerrou seus dias em Turim, depois da temporada como embaixador da casa de Savóia junto ao czar Alexandre I.


Piazza Castello

Como devia doer ao velho e ultra-católico Joseph de Maistre passar diante da Igreja do Espírito Santo e recordar-se que, ali, o seu muito odiado e desprezado Jean-Jacques Rousseau tinha se convertido ao catolicismo em 1728 só para agradar Madame de Warens, a belíssima carola de quem Jean-Jacques se tornou amante logo que abjurou os erros da sua formação huguenote e genebrina.

É fato, porém, que estávamos mais ocupados em raspar o chocolate do fundo da taça do que com considerações históricas. Mesmo assim,  o vazio do nicho do Sudário e o ar gélido do Santuário me acompanharam como lembrança incômoda, que se tornou ainda mais forte quando, em Roma, visitamos a réplica do Sudário, que é guardada na Igreja de Santa Croce in Gerusalemme junto com as relíquias do Santo Lenho e do Santo Espinho numa sala igualmente gélida, onde um grupo de escolares bocejava.

De maneira apressada, atribuí esse incômodo aos vestígios da minha formação católica, que ainda espera alcançar alguma transcendência pelos olhos da carne. Porém, recentemente, ocorreu-me algo melhor.

Palazzo Reale: ao fundo à esquerda, a torre do Santuário do Sudário

Um dos conceitos centrais do Cristianismo é o de kenósis, isto é, despojamento, esvaziamento. Segundo São Paulo, a redenção foi eficaz porque Jesus se despojou da sua condição divina para tomar o cálice do sofrimento. Ao fazer-se reconhecer como carne sofredora, Jesus acedeu ao ponto mais alto do poder divino.

Tende entre vós os mesmos sentimentos que Jesus, o qual, sendo de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas despojou-se de si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes. (Epístola aos Filipenses, 2, 6-9)

Essa dialética da redenção pelo sofrimento, mediada pela kenósis, foi revalorizada e reinterpretada por vários filósofos recentes de formação hermenêutica.  Gianni Vattimo, discípulo de Gadamer e estudioso de Heidegger e Nietzsche, vem propondo há algum tempo uma versão secularizada da kenósis como a experiência religiosa possível num horizonte histórico que reconhece que Deus está morto. O sagrado somente pode se dar como problema, pela abdicação das certezas e dos dogmas religiosos. Nenhuma sarça ardente vai nos trazer a luz, mas a ausência e a precariedade devem se tornar aberturas para o diálogo e a tolerância. 


Pátio da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Turim


Os filósofos são filhos de seu tempo, mas também são filhos de suas cidades. Como turinês, Gianni Vattimo é mais um elo da cadeia histórica e filosófica daquela que é a mais especulativa das cidades italianas.

Turim é a sede do Sudário: a imagem mesma da kenósis, isto é, do corpo de Jesus despojado de sua divindade. Na universidade de Turim, o grande humanista e reformador Erasmo de Rotterdam obteve seu doutoramento em Teologia em 1506. Em Turim, Joseph de Maistre fez suas reflexões finais sobre o papel da religião católica como defesa contra a maré de descrença revolucionária daqueles que promoviam a razão humana à condição divina. Em Turim, Nietzsche, proclamador da morte de Deus, identificou-se com o Crucificado. Em Turim, Antonio Gramsci abandonou o idealismo e tornou-se adepto do materialismo histórico marxista. Em Turim, Primo Levi declarou que a existência de Auschwitz excluía a existência de Deus. Em Turim, Gianni Vattimo defende que a religião moderna não tem mais o direito de apresentar-se como dogma revelado, mas apenas como abertura e hiância.

O inverno na alma que sentíamos diante do nicho vazio do Sudário era, portanto, a religião possível, sem impostura. Desolada como o transeunte que atravessava a Piazza San Carlo sob o chuvisco de janeiro.

Piazza San Carlo no inverno


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Era hora de pegarmos o trem para Milão. Na Piazza Carlo Alberto, nenhum cavalo. Junto ao Pó, apenas as margens geladas e escorregadias.


Rio Pó: Igreja da Mãe de Deus e Igreja de Santa Maria do Monte









sexta-feira, 19 de julho de 2013

Aviso aos Navegantes







Aqueles que acompanham a minha leitura do Manifesto do Partido Comunista sabem, desde o início, que meu objetivo é analisar as duas primeiras seções, passo a passo, página a página.

Na análise da seção I, procurei mostrar que há uma estrutura narrativa subjacente, capaz de organizar a exposição com grande eficácia didática, conquanto falseie a conclusão ao introduzir a moral ingênua própria dos Märchen.  

O percurso teve a vantagem de retomar as linhas principais da teoria marxista do capital, ainda em seu momento inicial, e repassar as posições teóricas de algumas figuras do marxismo clássico e contemporâneo.

Concluída a seção I, decidi suspender a leitura da seção seguinte por algumas semanas. Os problemas da seção II vão nos levar ao coração da prática política do comunismo, discutida nos textos de Lênin, Rosa Luxemburgo, Lukács, Gramsci e Trotsky.

A empreitada é enorme e eu mesmo preciso tomar fôlego. Que os leitores façam, portanto, o obséquio de seguir-me num intermezzo ameno pelas cidades italianas enquanto recompomos nossas forças.







quarta-feira, 17 de julho de 2013

A claraboia e o holofote #12







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


Seção I – Burgueses e Proletários


7.  O final: a dinâmica ideal da luta de classes e seu resultado

Ao longo da leitura do Manifesto, tentei mostrar que Marx e Engels queriam recompor a lógica do processo histórico da modernidade burguesa, apresentando-a de maneira extremamente sucinta por meio de uma transposição didática audaciosa, decalcada na estrutura narrativa dos Märchen, isto é, dos contos de fadas: equilíbrio natural – desequilíbrio introduzido pelo vilão dotado de poderes fantásticos – novo equilíbrio alcançado pelo herói ao assumir, de maneira controlada, os poderes fantásticos do vilão derrotado.

Ao Märchen do fantasma do comunismo, o Manifesto contrapõe um outro Märchen: o da burguesia como classe revolucionária e demiúrgica, que destrói o equilíbrio estático do feudalismo e introduz uma revolução contra tudo o que é natural e permanente. Na sua destruição criadora (para retomar a famosa expressão de Schumpeter), a burguesia perde o controle sobre os poderes que invocou e dá origem ao proletariado, o herói destinado a instaurar o novo equilíbrio, usando as armas fabulosas criadas pela burguesia: o sistema industrial moderno baseado nas colossais forças produtivas liberadas pela revolução burguesa.

Ocorre que o recurso à estrutura dos Märchen (possivelmente inconsciente por parte dos autores do Manifesto), conduz a uma inevitabilidade de resultados que extrapola a lógica do processo histórico. O Märchen deixa de ser apenas um recurso didático e torna-se uma garantia de que o futuro se realizará de acordo com os ditames de uma moral ingênua, que exige que o vilão seja derrotado pelo herói para que o equilíbrio seja restituído. 

Alguns estudiosos, como Michel Löwy, dedicaram-se a mostrar o forte componente messiânico do marxismo revolucionário. O que eu proponho é que este messianismo, que pretende dispor de um holofote para iluminar o futuro, se expressa, do ponto de vista do relato histórico, por meio da estrutura narrativa dos Märchen e que essa estrutura contamina a compreensão da lógica do processo. 

As virtudes da exposição do Manifesto, assim como os vícios decorrentes da estrutura narrativa adotada, talvez sejam mais evidentes na sequência que termina a primeira seção do Manifesto do Partido Comunista.


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O proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento. Sua luta contra a burguesia começa com a sua existência.

No começo, empenham-se na luta operários isolados, mais tarde, operários de uma mesma fábrica, finalmente operários de um mesmo ramo de indústria, de uma mesma localidade, contra o burguês que os explora diretamente. Dirigem os seus ataques não só contra as relações burguesas de produção, mas também contra os instrumentos de produção, destroem as mercadorias estrangeiras que lhes fazem concorrência, quebram as máquinas, queimam as fábricas e esforçam-se para reconquistar a posição perdida do trabalhador da Idade Média.

Nessa fase, o proletariado constitui massa disseminada por todo o país e dispersa pela concorrência. A coesão maciça dos operários não é ainda o resultado de sua própria união, mas da união da burguesia que, para atingir seus próprios fins políticos, é levada a por em movimento todo o proletariado, o que por enquanto ainda pode fazer. Durante essa fase, os proletários não combatem seus próprios inimigos, mas os inimigos de seus inimigos, os restos da monarquia absoluta, os proprietários de terras, os burgueses não-industriais, os pequenos burgueses. Todo movimento histórico está desse modo concentrado nas mãos da burguesia e qualquer vitória alcançada nessas condições é uma vitória burguesa.

Mas, com o desenvolvimento da indústria, o proletariado não apenas se multiplica; comprime-se em massas cada vez maiores, sua força cresce e ele adquire maior consciência dela. Os interesses, as condições de existência dos proletários se igualam cada vez mais à medida que a máquina extingue toda diferença de trabalho e quase por toda parte reduz o salário a um nível igualmente baixo. Em virtude da concorrência crescente dos burgueses entre si e devido às crises que disso resultam, os salários se tornam cada vez mais instáveis, o aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas torna a condição de vida do operário cada vez mais precária; os choques individuais entre o operário singular e o burguês singular tomam cada vez mais o caráter de confronto entre duas classes. Os operários começam a formar coalizões contra os burgueses e atuam em comum na defesa de seus salários; chegam a fundar associações permanentes a fim de precaverem-se de insurreições eventuais. Aqui e ali a luta irrompe em motim.

De tempos em tempos, os operários triunfam, mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores. Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de comunicação criados pela grande indústria e que permitem o contato entre operários de diferentes localidades. Basta, porém, este contato para concentrar as numerosas lutas locais, que tem o mesmo caráter em toda parte, em uma luta nacional, uma luta de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política. E a união que os burgueses da Idade Média, com seus caminhos vicinais, levaram séculos a realizar os proletários modernos realizam em poucos anos por meio das ferrovias.

A organização do proletariado em classe e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mais sólida, mais poderosa. Aproveita-se das divisões internas da burguesia para obrigá-la ao reconhecimento legal de certos interesses da classe operária, como, por exemplo, a lei da jornada de dez horas de trabalho na Inglaterra.

Em geral, os choques que se produzem na velha sociedade favorecem de diversos modos o desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em luta permanente; primeiro, contra a aristocracia; depois, contra as frações da própria burguesia cujos interesses se encontram em conflito com os progressos da indústria; e sempre contra a burguesia dos países estrangeiros. Em todas estas lutas, vê-se forçada a apelar para o proletariado, a recorrer a sua ajuda e desta forma arrastá-lo para o movimento político. A burguesia fornece aos proletários os elementos de sua própria educação política, isto é, armas contra ela própria.

Além disso, como já vimos, frações inteiras da classe dominante, em consequência do desenvolvimento da indústria, são lançadas no proletariado, ou pelo menos ameaçadas em suas condições de existência. Também elas trazem ao proletariado numerosos elementos de educação.

Finalmente, nos períodos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo de dissolução da classe dominante, de toda a velha sociedade, adquire um caráter tão violento e agudo, que uma pequena fração da classe dominante se desliga desta, ligando-se à classe revolucionária, à classe que traz nas mãos o futuro. Do mesmo modo que outrora uma parte da nobreza passou para a burguesia, em nossos dias uma parte da burguesia passa para o proletariado, especialmente a parte dos ideólogos burgueses que chegaram à compreensão teórica do movimento histórico em seu conjunto.

De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico.

As camadas médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias. Não são, pois revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, são reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás da roda da História. Quando se tornam revolucionárias, isto se dá em consequência de sua iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros; abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado.

O lúmpen-proletariado, putrefação passiva das camadas mais baixas da velha sociedade, pode, às vezes, ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de vida o predispõem mais a vender-se à reação.

As condições de existência da velha sociedade já estão destruídas nas condições de existência do proletariado. O proletário não tem propriedade; suas relações com a mulher e os filhos já não tem em comum com as relações familiares burguesas. O trabalho industrial moderno, a subjugação do operário ao capital, tanto na Inglaterra como na França, na América como na Alemanha, despoja o proletário de todo caráter nacional. As leis, a moral, a religião são para ele meros preconceitos burgueses, atrás dos quais se ocultam outros tantos interesses burgueses.

Todas as classes sociais que no passado conquistaram o poder trataram de consolidar a situação adquirida submetendo toda a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e, por conseguinte, todo modo de apropriação existente até hoje. Os proletários nada tem de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada até aqui existentes.

Todos os movimentos históricos tem sido, até hoje, movimentos de minorias ou em proveito de minorias. O movimento proletário é o movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria. O proletariado, a camada mais baixa da sociedade atual, não pode erguer-se, pôr-se de pé, sem fazer saltar todos os estratos superpostos que constituem a sociedade oficial.

A luta do proletariado contra a burguesia, embora não seja na essência uma luta nacional, reveste-se dessa forma num primeiro momento. É natural que o proletariado de cada país deva, antes de tudo, liquidar a sua própria burguesia.

Esboçando em linhas gerais as fases do desenvolvimento proletário, descrevemos a história da guerra civil mais ou menos oculta na sociedade existente, até a hora em que essa guerra explode numa revolução aberta e o proletariado estabelece sua dominação pela derrubada violenta da burguesia.

Todas as sociedades anteriores, como vimos, se basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas para oprimir uma classe é preciso garantir-lhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência servil. O servo, em plena servidão, conseguiu tornar-se membro da comuna, da mesma forma que o pequeno burguês sob o jugo do absolutismo feudal, elevou-se à categoria de burguês. O operário moderno, pelo contrário, longe de se elevar com o progresso da indústria, desce cada vez mais, caindo abaixo das condições de sua própria classe. O trabalhador torna-se um indigente e o pauperismo cresce ainda mais rapidamente do que a população e a riqueza. Fica assim evidente que a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante e de impor à sociedade, como lei suprema, as condições de existência de sua classe. Não pode exercer o seu domínio porque não pode mais assegurar a existência de seu escravo, mesmo no quadro de sua escravidão, porque é obrigada a deixá-lo afundar numa situação em que deve nutri-lo em lugar de ser nutrida por ele. A sociedade não pode mais existir sob sua dominação, o que quer dizer que a existência da burguesia não é mais compatível com a sociedade. 

A condição essencial para a existência e supremacia da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e o crescimento do capital; a condição de existência do capital é o trabalho assalariado. Este se baseia exclusivamente na concorrência dos operários entre si. O progresso da indústria, de que a burguesia é agente passivo e involuntário, substitui o isolamento dos operários, resultante da competição, por sua união revolucionária resultante da associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria retira dos pés da burguesia a própria base sobre a qual assentou o seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.


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A estrutura argumentativa do texto

O texto apresenta a dinâmica histórica da formação do proletariado como classe e de seu papel revolucionário.  Devido à sua extensão, talvez seja interessante decompor as etapas de seu percurso lógico-narrativo.

A. A formação da classe e da consciência proletária 

O antagonismo entre o proletariado e a burguesia é sistêmico. O proletariado oprimido luta contra a burguesia opressora desde que começa a existir. Entretanto, o sentido e as armas usadas na luta se modificam à medida em que os proletários se organizam como classe e ganham consciência de seus propósitos:

a) Na fase inicial de dispersão e isolamento dos proletários, sua luta é parcial e reacionária. Parcial porque certos proletários se voltam contra certos patrões; reacionária porque, naquele momento, o objetivo do proletariado é retornar às condições do trabalho artesanal herdadas da Idade Média. Por isso, os proletários atacam as máquinas e as instalações das fábricas, isto é, os meros instrumentos de produção, como se eles fossem os opressores.

b) Com o crescimento da indústria, os proletários, em número cada vez maior, são arregimentados para lutar contra os inimigos da burguesia industrial, como a monarquia absolutista, os proprietários de terras com seus privilégios feudais, os pequenos burgueses que controlam o comércio local. O proletariado ganha coesão, por obra da burguesia, e torna-se agente revolucionário, mas a serviço da revolução burguesa. Mas, ao ser recrutado para as lutas da burguesia, o proletariado ganha consciência das lutas sociais e aprende os métodos de combate.

c) O número de proletários não para de crescer. As condições de trabalho se tornam uniformemente mais baixas e os salários são comprimidos pelas crises comerciais. Isso leva os proletários a organizarem-se em coalisões e associações permanentes. O conflito com os patrões burgueses adquire o aspecto de luta de classes. 

d) A facilidade de comunicação criada pela grande indústria permite coordenar as lutas locais em lutas nacionais, que ganham forma político-partidária; todavia, o surgimento de um partido do proletariado enfrenta obstáculos, entre os quais a concorrência que os proletários fazem uns aos outros pela obtenção de emprego (uma das condições de existência do sistema industrial de trabalho assalariado é estimular essa concorrência). Apesar das dificuldades, as associações partidárias do proletariado renascem sempre e se tornam mais fortes, aproveitando-se das dissensões internas da burguesia para obter melhorias dos salários e das condições de trabalho.

e) O avanço da grande indústria e a crescente proletarização da sociedade fazem com que cada vez mais elementos dos segmentos médios e até da classe dominante passem para o lado do proletariado, trazendo consigo conhecimentos úteis para a luta da classe operária do ponto de vista estratégico, político e organizacional. Por fim, no momento mais agudo da luta de classes, uma fração da burguesia passa para o lado da classe proletária revolucionária. É o caso dos ideólogos burgueses (como Marx e Engels), que alcançaram a compreensão do papel do proletariado no processo histórico-mundial. 

O movimento pelo qual o proletariado como classe em si (isto é, como grupo de pessoas que compartilham uma certa posição no interior do sistema produtivo) se torna classe para si (isto uma classe consciente de sua condição e de seus objetivos) é decorrência:

-  do antagonismo sistêmico em relação à burguesia,

-  do seu crescimento numérico,

-  da degradação de suas condições, a despeito de vitórias efêmeras,

-  do seu esforço associativo,

- das contribuições trazidas por elementos de outras classes sociais, que caíram no proletariado.

Na sua fase final, por meio da contribuição teórica dos ideólogos burgueses que passam a apoiar a revolução proletária, o proletariado se torna classe em-si para-si (isto é, consciente da necessidade histórica da sua própria existência e da sua posição no processo como um todo). Essa consciência revolucionária de classe em-si para-si tomará a forma institucional de um partido internacional dos trabalhadores: o partido comunista. 

B. A exclusividade do papel revolucionário do proletariado 

Somente o proletariado é uma classe revolucionária anti-burguesa. As camadas médias (pequena burguesia, artesãos, camponeses) não são revolucionárias, mas sim conservadoras e a até reacionárias. Do mesmo modo que o lúmpen-proletariado, “putrefação passiva das camadas mais baixas da velha sociedade”, essas camadas sociais só se tornam revolucionárias quando se sentem ameaçadas pela burguesia. Neste caso, passam para o lado do proletariado. Sua consciência revolucionária é apenas de empréstimo.

O proletariado é eminentemente revolucionário porque:

a) É a única classe surgida a partir do sistema industrial. Portanto é a única interessada em resolver e ultrapassar as contradições desse sistema, ao invés de recuar para um estágio anterior. 

b) O proletariado não tem nada a perder com a destruição revolucionária da sociedade existente. As condições de existência da sociedade burguesa já estão destruídas nas condições de existência do proletariado. O proletariado não pátria nem propriedade, as relações familiares proletárias nada tem em comum com a família burguesa. Do ponto de vista do proletariado, a lei, a moral e a religião são apenas preconceitos burgueses.

c) O proletariado constitui a maioria da sociedade. O movimento proletário é um movimento autônomo da imensa maioria em proveito da imensa maioria. A luta de emancipação do proletariado, camada mais baixa da sociedade moderna, não pode se consumar sem destruir o conjunto das relações sociais de opressão.

d) As condições básicas de subsistência do proletariado são ameaçadas pelo avanço da sociedade industrial burguesa. Todas as sociedades se basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Para oprimir uma classe é preciso garantir-lhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência servil, mas, na sociedade industrial, o proletário torna-se um indigente e o pauperismo cresce mais rapidamente do que a população e a riqueza. Por isso, a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante opressora.


e) O próprio sistema industrial burguês suscitou a organização revolucionária internacional do proletariado como classe anti-burguesa. A condição essencial para a existência e supremacia da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e o crescimento do capital. A condição de existência do capital é o trabalho assalariado. Este se baseia exclusivamente na concorrência dos operários entre si, mas o progresso da indústria substitui o isolamento dos operários, resultante da concorrência, por sua união resultante da associação. Portanto, o desenvolvimento da grande indústria elimina a concorrência entre os trabalhadores assalariados em que se sustentava. O próprio sistema de grande indústria permite a associação revolucionária dos proletários.

C. A conclusão histórico-política

Em resumo, o Manifesto mostra que as condições históricas pelas quais o proletariado se torna uma classe social são as mesmas que explicam a emergência de uma consciência de classe revolucionária anti-burguesa: o desenvolvimento da grande indústria (o sistema mais avançado de extração do valor produzido pelo trabalho) destrói a concorrência entre os trabalhadores assalariados e leva à sua união crescentemente revolucionária. 

Uma vez que a burguesia é o feiticeiro que perdeu o controle das forças que conjurou, ela é o agente passivo e involuntário das transformações sociais e econômicas que possibilitaram a existência do proletariado como classe consciente de si, organizada num partido revolucionário voltado para a destruição violenta da própria burguesia. 

O final da primeira seção do Manifesto conclui que “a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.


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A posição do problema

De onde vinha a certeza de Marx e Engels em relação à inevitabilidade do resultado futuro da luta de classes num prazo relativamente curto?

É inegável que as agitações iniciadas em 1847 alimentavam as esperanças dos autores do Manifesto em relação a um levante revolucionário do proletariado. Essas esperanças também podem ter sido responsáveis pela estimativa exagerada da força objetiva do proletariado. No entanto, “a derrota da insurreição parisiense de junho de 1848 – a primeira grande batalha entre o proletariado e a burguesia – colocou novamente em um segundo plano as aspirações sociais e políticas do operariado europeu. (...) Quanto ao Manifesto, este parecia ficar, a partir de então, relegado ao esquecimento.” (Friedrich Engels, Prefácio à edição inglesa do Manifesto Comunista, de 1888).

O problema é que, mesmo aceitando a descrição da burguesia feita pelo Manifesto, isto é, mesmo aceitando que a tese de que burguesia produz as condições que ameaçam sua supremacia de classe, nada garante que a sua destruição seja inevitável nem próxima. Tampouco há garantia de que a destruição da burguesia seja obra do proletariado, nem de que essa vitória representará o fim das sociedades divididas pela luta de classes entre opressores e oprimidos. 

Em outras palavras, apesar da pertinência de vários momentos da exposição do Manifesto, não há uma conexão lógica entre o processo descrito e os resultados previstos. As claraboias se mostraram eficientes para trazer luz ao presente histórico e social, mas os holofotes foram incapazes de iluminar o futuro.

A lacuna lógica se manifesta quando aproximamos a premissa e a conclusão da primeira seção:

“A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. 
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, tem vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito.
(...)
A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.”


A premissa reconhece que a luta de classes pode ter dois resultados: a transformação revolucionária da sociedade ou a destruição das duas classes antagônicas.  A conclusão afirma a vitória inevitável do proletariado.

Cabe então perguntar: 

(1) por que a luta não poderia se estender por um período extremamente longo? 

(2) por que uma luta prolongada não poderia modificar a própria estrutura das classes em conflito e a forma mesma do conflito?  

(3) por que a luta entre a burguesia e o proletariado não poderia terminar com a destruição das duas classes? 


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(1) por que a luta  de classes não poderia se estender por um período extremamente longo? 

Pela própria natureza conclamatória, o Manifesto se coloca diante da ação de curto prazo, mesmo que a escala de sua análise retroceda em escala secular ou milenar. Assim, embora o texto não seja explícito quanto à uma vitória imediata do proletariado, é evidente que Marx e Engels contavam com uma revolução vitoriosa em data próxima. É o que se percebe nessa declaração:

É sobretudo para a Alemanha que se volta a atenção dos comunistas, porque a Alemanha se encontra às vésperas de uma revolução burguesa e porque realizará essa revolução nas condições mais avançadas da civilização europeia e com um proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra do século XVII e o da França no século XVIII; e por que a revolução burguesa alemã só poderá ser, portanto, o prelúdio imediato de uma revolução proletária. (Manifesto, seção IV – Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição).

A expectativa de uma luta de curto prazo parecia justificável teoricamente pela aceleração do processo de associação do proletariado (graças aos meios de comunicação criados pela grande indústria) e pelos sintomas de que a hora decisiva se aproximava, entre eles o fato de que uma pequena fração da classe burguesa passava para o lado do proletariado, como acontecera às vésperas da Revolução Francesa. 

É preciso reconhecer, no entanto, que o erro quanto à proximidade de uma revolução não indica em si mesmo uma falha na compreensão do processo histórico e social, mas sim uma avaliação indevida das forças em conflito. A dura lição de junho de 1848 e a repressão política da década de 1850 tornarão Marx e Engels mais cuidadosos ao estimarem o grau de maturidade do proletariado. Também levarão Marx a aprofundar sua análise da dinâmica do capital (que resultará na Contribuição à Crítica da Economia Política) e da dinâmica do conflito de classes (que resultará no 18 Brumário de Luis Bonaparte). 

Desse ponto de vista, o fracasso prático sangrento de 1848 reverterá em aprendizado teórico na década seguinte.  Mas isso implicará um recuo das expectativas de vitória revolucionária a curto prazo.


(2) por que uma luta prolongada não poderia modificar a própria estrutura das classes em conflito e a forma mesma do conflito?  

A história de muitas sociedades é a história da luta de classes, mas a luta mesma tem sua historicidade na medida em que o processo de luta transforma as classes antagônicas e remodela a sociedade, criando novas classes. 

É o que parece ter acontecido com a luta prolongada entre burguesia e proletariado e com a compreensão teórica dessa luta pela diversidade das teorias marxistas, muitas das quais contestam o potencial revolucionário do proletariado (Edward Bernstein), a centralidade do trabalho e da produção na análise social (Herbert Marcuse e André Gorz), ou até mesmo postulam que a luta de classes seja uma estrutura inconsciente impossível de ser verificada empiricamente (Slavoj Zizek).

A verdade é que os próprios termos iniciais do antagonismo caíram em desuso. Basta verificarmos quão poucas vezes Eric Hobsbawn usa a palavra “burguesia” na sua análise do curto século XX em A Era dos Extremos,  ou constatarmos que o Dicionário do Pensamento Marxista, organizado por Tom Bottomore, não tem um verbete para o termo “proletariado” e sim para o termo mais geral e já um pouco cediço de “classe operária”.


(3) por que a luta entre a burguesia e o proletariado não poderia terminar com a destruição das duas classes? 

Em nenhum momento, o Manifesto considera seriamente a possibilidade de um colapso da forma de produção capitalista por causa da destruição recíproca das classes antagônicas. Talvez seja essa a diferença mais flagrante entre a perspectiva marxista, mesmo a das obras posteriores, e regime de pensamento catastrofista com o qual estamos todos familiarizados. Entre as nossas perspectivas de presente ou futuro próximo estão:

- o reino da estupidez e da mediocridade do último homem (Nietzsche);

- a impossibilidade de emancipação, representada pela bota que esmaga eternamente a face humana (Orwell);

- a tirania da intimidade (Sennett);

- a derrocada da sociabilidade pelo meta de sobrevivência do eu-mínimo (Lasch);

- a substituição da vida social pelo regime dos simulacros e das simulações (Baudrillard);

- a sociedade de controle (Deleuze);

- a vitória definitiva do liberalismo e do mercado (Fukuyama);

- o colapso da civilização pela destruição dos ecossistemas (Jared Diamond);

etc.

Se, do ponto de vista da esquerda, a contração do horizonte e das possibilidades de transformação constitui uma limite para o pensamento, também nos torna mais agudos na percepção do caráter ilusório das esperanças revolucionárias de outras épocas.  É o que permite enxergar a estrutura narrativa que sustenta a crença na vitória do proletariado e a afirmação da sua inevitabilidade. Essa estrutura narrativa, que permite o salto da premissa da seção I do Manifesto para a conclusão final, é  a do conto da carochinha, com sua moralidade ingênua e sua justiça dos acontecimentos. 

Nossa crença nos Märchen foi corroída pela marcha dos desastres do século XX, mas será que nosso pessimismo significa que nos tornamos mais lúcidos quanto ao futuro?  Ou simplesmente estamos comprometidos com uma estrutura narrativa de outro tipo?  Por que é mais fácil acreditarmos no fim do mundo do que no fim do capitalismo?