quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Aviso aos navegantes e banhistas




O autor, que passa a maior parte do ano submetido às injunções da docência proletarizada, tem agora as suas merecidas férias de verão. No entanto, como professor inveterado que é, solicita aos leitores pensarem um pouco a respeito do que escreveu em A claraboia e o holofote #15:


"O Manifesto do Partido Comunista sofre de legibilidade ilusória.

O que é atual não é o texto, inevitavelmente marcado pelo lugar e tempo da enunciação; atual é o efeito das forças econômicas, sociais e políticas que se apoderaram dos significantes e remanejaram os significados, num processo semelhante ao das conquistas territoriais.

O que me interessa na seção II não é a verdade do Manifesto nem a sua atualidade, mas as condições de sua legibilidade. O caráter instrumental, polêmico e imediato do Manifesto do Partido Comunista cobra um preço muito alto de seus leitores, mesmo que eles não se deem conta disso. O texto da seção II foi definitivamente rasurado pelos acontecimentos históricos subsequentes, desde a revolução de fevereiro de 1848 aos processos de Moscou – época em que se constituíram as peças da acusação movidas contra o comunismo, não só pelos liberais quanto por muitos marxistas."


O Sobrinho de Enesidemo volta em fevereiro para levar adiante essa proposta de leitura. 

Para os sectários de esquerda ou de direita, para os dogmáticos em geral e para os neófitos cheios de convicções, fica a advertência do Sobrinho de Enesidemo (que nesse particular saiu bem ao tio):

Caiam fora! 

Se quiserem simples opiniões e pontos de vistas, vão catar buritis noutras veredas. 

Este blog é um lugar para quem tem paciência de pensar.




quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A claraboia e o holofote #18





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


As lições de 48 (Parte 3)


1. Londres, março de 1850


A Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas, de março de 1850, é, logo depois do Manifesto, o documento mais notável do partido comunista de 1848. Enquanto o Manifesto oferece uma síntese histórica que justificaria a necessidade e a oportunidade da revolução proletária, a Mensagem à Liga dos Comunistas constitui um guia prático da luta revolucionária. 

A grande lição que Marx aprendera na sua experiência em Colônia e na análise dos acontecimentos em Paris é que as revoluções são processos que, uma vez desencadeados, não tem data para terminar. Todas as conquistas do proletariado podem ser perdidas no momento seguinte, todos os aliados podem se tornar inimigos. Embora Marx acreditasse ser possível identificar etapas do processo e vislumbrar o seu resultado final, ele reconhecia que o caminho era sinuoso e difícil.  O massacre de junho de 48 em Paris e a repressão militar de outubro e novembro na Alemanha e na Áustria provaram – sem margem de dúvida – que a vitória de uma revolução proletária não seria possível sem o uso da força e sem uma estrutura partidária disseminada em células locais, mas centralizada nas suas diretrizes. 

Marx e Engels não podiam mais contar com o poder avassalador de um levante espontâneo do proletariado, que o partido teria apenas que colocar no rumo de uma sociedade comunista. Em 1850, ainda aguardando uma revolução que não aconteceria (como ficou evidente logo depois), os autores da Mensagem à Liga dos Comunistas insistiam na urgência de uma organização coesa e disciplinada, que pudesse mobilizar os trabalhadores e manter o ardor revolucionário. 

Entre o Manifesto de 1848 e Mensagem de 1850, o partido comunista encontrava os termos do dilema que o perseguiria na sua refundação ao final da 1ª Guerra Mundial: deveria o partido assumir o papel de vanguarda de um proletariado militarizado, ou deveria acompanhar e expressar a espontaneidade revolucionária dos trabalhadores? 

Entre o Manifesto e a Mensagem, há uma outra mudança – talvez mais profunda e duradoura - que interessa não só aos marxistas, mas a toda esquerda, razão pela qual quero seguir um pouco mais de perto as linhas desse documento notável que é a Mensagem à Liga do Comunistas. 


2. O documento

No seu balanço das atividades da Liga no biênio revolucionário de 1848-49, Marx e Engels reconhecem a atuação enérgica dos comunistas e os acertos da análise feita no Manifesto. Todavia, admitem que a organização da Liga se enfraqueceu, enquanto o partido democrático da pequena-burguesia tomou força. Seria preciso que a Liga enviasse um emissário para reorganizar os comunistas alemães às vésperas de uma nova temporada revolucionária, de modo que o proletariado tivesse um partido independente, a fim de não ser explorado e traído pela burguesia. 

Em 1848, a grande burguesia alemã se voltou contra os trabalhadores tão logo alcançou o poder. Para Marx e Engels, essa burguesia, que se aliara à aristocracia feudal, seria derrubada em breve pelos democratas pequeno-burgueses, apoiados pela maioria da classe média urbana, pelos pequenos industriais e mestres artesãos, bem como por uma parte dos camponeses e do proletariado rural. 

Do ponto de vista social e político, o partido democrático da pequena burguesia era composto por três grupos:

(1) os elementos mais progressistas da grande burguesia, que queriam a abolição total do feudalismo e do absolutismo; 

(2) os democratas constitucionalistas, que formaram o parlamento dissidente de Stuttgart. Seu objetivo era um estado federativo; 

(3) a pequena burguesia republicana, cujo sonho era acabar com a pressão que a grande burguesia exercia sobre a pequena burguesia.

Depois da derrota política, esses grupos passaram a se denominar os “vermelhos”, o que indicava não tanto uma preocupação com os interesses dos trabalhadores, mas sim a necessidade de formar com o proletariado uma frente contra a grande burguesia, com o intuito de:

- reduzir os gastos do governo, diminuindo o aparato burocrático e transferindo a maior parte do ônus fiscal aos grandes proprietários;

- eliminar a pressão do grande capital sobre o pequeno capital pelo combate aos juros abusivos e pela criação de instituições públicas de crédito;

- introduzir as relações burguesas de propriedade no campo;

- manter sob controle a acumulação de capital, restringindo o direito de herança e atribuído ao Estado um papel mais amplo como empregador;

- conceder aos trabalhadores um sistema de seguridade e bem-estar social, que tornaria suas vidas mais toleráveis, aplacando o ímpeto revolucionário;

- criar um Estado alemão federativo e democrático.

Caso os democratas pequeno-burgueses sejam vitoriosos, o proletariado não deve se iludir com as concessões sociais e a conversa sobre democracia. A pequena burguesia vai procurar abreviar o período revolucionária, mas os trabalhadores devem manter a luta por uma sociedade comunista. Em razão disso, o proletariado, especialmente a Liga dos Comunistas, deve assumir as seguintes atitudes em relação ao partido democrático:

(a) No período pré-revolucionário, em que a pequena burguesia democrática também é oprimida

A pequena burguesia vai procurar aliança com o proletariado, mas este deve manter sua independência. Não será necessária nenhuma aliança formal porque, assim que começar a luta contra o inimigo comum, os interesses das duas classes vão coincidir. Os pequenos burgueses vão se mostrar indecisos como sempre, mas quando a vitória for certa, vão querer que os trabalhadores se conduzam da maneira mais ordeira possível. Nesse momento é importante que o proletariado não se deixe dominar e que imponha condições que irão minar a dominação pequeno-burguesa. Acima de tudo, o proletariado tem que manter viva a chama revolucionária. Os trabalhadores devem formar comitês executivos e conselhos para supervisionar e questionar o tempo todo o governo pequeno-burguês. Esses comitês e conselhos serão núcleos de um futuro governo revolucionários do proletariado.

(b) Durante o período revolucionário, em que pequena burguesia tentará conquistar o poder

Os operários tem que se armar para se opor ao futuro governo democrático da pequena burguesia. Se não for possível impedir a formação das tradicionais milícias de cidadãos, que serão dirigidas contra os operários, os trabalhadores devem formar suas guardas proletárias, colocadas sob o comando dos conselhos locais de trabalhadores. A destruição da influência da pequena burguesia democrática e a subversão das condições do futuro governo devem ser os objetivos principais do proletariado - e da Liga - durante o levante vindouro.

(c) No período pós-revolucionário, em que a pequena burguesia exercerá o seu domínio.

Assim que o novo governo se estabelecer, a sua luta contra o proletariado vai começar. Para fazer oposição aos democratas pequeno-burgueses, é necessário que os trabalhadores se organizem em associações com uma coordenação central. Quando forem convocadas as eleições, os trabalhadores devem tomar cuidado para:

- não permitir que as autoridades usem casuísmos para excluir das eleições alguma seção dos trabalhadores;

- nomear  candidatos dos trabalhadores em oposição aos democratas burgueses. Os trabalhadores devem manter sua independência, a despeito de toda a conversa dos democratas a respeito da necessidade de união contra os candidatos reacionários. 

No momento em que o partido democrático começar a governar, o primeiro ponto de desentendimento com os trabalhadores será a forma de abolir o feudalismo: a pequena burguesia vai defender a concessão de propriedades rurais para os camponeses; ao passo que os trabalhadores precisam exigir a nacionalização e a coletivização das terras, para evitar que as relações burguesas de propriedade se estendam ao campo.

O segundo ponto é que os democratas vão querer uma república federativa, ou vão tentar minar o governo central, garantindo o máximo de autonomia para os municípios e províncias. Os trabalhadores devem apoiar um estado centralizado e indivisível. 

É verdade que, no começo, os trabalhadores não poderão propor nenhuma medida diretamente comunista, mas as seguintes linhas de ação são possíveis:

- levar os democratas a intervir nas mais variadas áreas sociais, perturbando seu funcionamento normal;

- levar os democratas ao compromisso de concentrar cada vez mais forças produtivas nas mãos do Estado;

- levar as propostas dos democratas até as suas consequências lógicas e transformá-las em ataques diretos à propriedade. Por exemplo: se os democratas propuserem imposto proporcional, os trabalhadores deverão propor imposto progressivo; se os democratas pedirem a regulamentação da dívida pública, os trabalhadores deverão exigir o calote puro e simples. As exigências dos trabalhadores devem ser ajustadas de acordo com as medidas e as concessões dos democratas.

“Embora os trabalhadores alemães não possam tomar o poder e realizar seus interesses de classe sem passar por um contínuo desenvolvimento revolucionário, desta vez eles podem ao menos estar certos de que o primeiro ato da revolução vindoura irá coincidir com a vitória direta de sua própria classe na França e será acelerado por isso. Mas eles mesmos tem o dever de contribuir ao máximo para sua vitória final, informando-se a respeito de seus próprios interesses de classe, assumindo posição política independente o mais rápido possível; não se deixando enganar pelo fraseado hipócrita da pequena-burguesia democrática, de modo a duvidar da necessidade de um partido independente e organizado do proletariado. Seu grito de guerra deve ser: A Revolução Permanente.”


3. O programa estratégico e político do partido comunista de 1848, nas palavras de Marx e Engels

(a) A organização do partido

- a necessidade de ação pública e de comitês secretos

“Um grande número de membros que estavam diretamente envolvido no movimento pensaram que o tempo das sociedades secretas tinha passado e que bastava apenas a ação pública. Os distritos e comunas permitiram que suas conexões com o Comitê enfraquecessem e gradualmente estagnassem. De modo que, enquanto o partido democrático, o partido da pequena burguesia se tornava cada vez mais organizado na Alemanha, o partido dos trabalhadores perdia seu único apoio firme; nos casos mais favoráveis, ele permaneceu organizado apenas em alguns lugares para propósito locais. No quadro do movimento geral, ele ficou sob o total domínio dos democratas pequeno-burgueses. Não é admissível que essa situação continue: a independência dos trabalhadores deve ser restaurada.”

- o partido comunista é o próprio partido dos trabalhadores: forma uma unidade com eles e defende seus interesses. Por isso, deve ser coeso e independente.

“(...) agora que uma nova revolução é iminente, isto é, agora que o partido dos trabalhadores deve ir à luta com o máximo de organização, unidade e independência, para não ser explorado e levado a reboque pela burguesia como em 1848.”

“Mesmo onde não haja perspectiva de vencer as eleições, os trabalhadores devem apresentar seus próprios candidatos para preservar sua independência, para aferir sua própria força e para chamar a atenção do público para sua posição partidária e revolucionária. Eles não devem se deixar confundir pelos lemas vazios dos democratas, que alegarão que os candidatos dos trabalhadores vão dividir o partido democrático e dar chance de vitória às forças reacionárias. Toda essa conversa significa, em última análise, uma tentativa de fraudar o proletariado. Os avanços que o proletariado fizer de maneira independente são infinitamente mais importantes do que as desvantagens resultantes da presença de um punhado de reacionários no corpo representativo. Se as forças democráticas tomarem ações decisivas e de terror contra a reação desde o primeiríssimo momento, a influência reacionária nas eleições já terá sido destruída.”

- direção centralizada

“ (...) é intolerável, em qualquer circunstância, que cada vilarejo, cada cidade e cada província possa colocar obstáculos à atividade revolucionária, que só pode desenvolver-se com total eficiência a partir de um ponto central.”

(b) A estratégia do partido 

- Oposição sistemática à democracia burguesa

“O papel traiçoeiro que a burguesia liberal alemã desempenhou contra o povo em 1848 será assumido na próxima revolução pela pequena burguesia democrática, que agora ocupa a mesma posição da oposição burguesa liberal  antes de 48.”

“A destruição da influência dos democratas burgueses sobre os trabalhadores e a perturbação das condições  do domínio momentaneamente inevitável da democracia burguesa, dificultando-a tanto quanto possível: esse são pontos que o proletariado e, portanto, a Liga devem ter em mente durante e depois do levante que se aproxima.”

No que se refere aos trabalhadores, uma coisa é sempre certa: eles vão permanecer assalariados como antes. Contudo, os democratas pequeno-burgueses querem melhores salários e segurança para os trabalhadores, e esperam conseguir isso aumentando o número de empregados do Estado e adotando medidas de bem-estar; em resumo, eles esperam subornar os trabalhadores com esmolas mais ou menos disfarçadas, de maneira a quebrar o seu impulso revolucionário, tornando a situação mais tolerável.”

- Radicalização

“Eles [os trabalhadores] devem levar as propostas dos democratas à sua conclusão lógica extrema (os democratas, em cada situação, agirão de maneira reformista, não de maneira revolucionária) e transformar essas propostas em ataques diretos à propriedade privada. Se, por exemplo, a pequena burguesia propuser a compra das ferrovias e fábricas, os trabalhadores devem exigir que essas ferrovias sejam simplesmente confiscada pelo Estado sem compensação, como propriedade de reacionários.”

- Preparo para a luta armada e rompimento com o monopólio estatal do uso da força

“Para estarem prontos a se opor, em termos de força e de ameaça, a esse partido [o dos democratas pequenos-burgueses], cuja traição aos trabalhadores vai começar no próprio momento da vitória, os trabalhadores devem estar armados e organizados. Todo o proletariado precisa ser imediatamente armado com mosquetes, rifles, canhões e munições, e deve-se impedir o renascimento das tradicionais milícias de cidadãos, dirigidas contra os trabalhadores. Onde a formação dessas milícias não puder ser impedida, os trabalhadores devem tentar se organizar por conta própria como uma guarda proletária, com líderes eleitos e com sua própria estrutura de apoio eleita; eles devem se colocar não sob o comando da autoridade estatal, mas dos conselhos locais revolucionários formados pelos trabalhadores.”

(c) O programa político do partido comunista

- Centralização do poder estatal e concentração das forças produtivas nas mãos do Estado

“Os democratas irão trabalhar por uma república federativa, mas se não puderem evitar uma república una e indivisível, irão tentar paralisar o governo central concedendo aos municípios e províncias a maior autonomia e independência possíveis. Em oposição a esse plano, os trabalhadores devem se esforçar por uma Alemanha una e indivisível, e dentro dessa república, devem se esforçar principalmente pela centralização do poder nas mãos da autoridade estatal. Eles não devem se deixar confundir pelo discurso vazio dos democratas a respeito da liberdade municipal, do autogoverno etc. Em países como a Alemanha, em que tantos vestígios da Idade Média ainda não foram abolidos, em que tanta obstinação local e provinciana deve ser vencida, é intolerável, em qualquer circunstância, que cada vilarejo, cada cidade e cada província possa colocar obstáculos à atividade revolucionária, que só pode desenvolver-se com total eficiência a partir de um ponto central.”

 “Os trabalhadores podem forçar a maior concentração possível de forças produtivas – meios de transporte, fábricas, ferrovias etc. – nas mãos do Estado”.

- Revolução permanente em escala internacional por meio da subversão e do terror até a transformação completa da sociedade

“Enquanto o democrata pequeno burguês quer terminar a revolução o mais rápido possível (...), é nosso interesse e nossa tarefa manter permanentemente a revolução até que todas as classes proprietárias, grandes ou pequenas, tenham sido retiradas das posições governantes, até que o proletariado tenha conquistado o poder estatal e até que a associação dos proletários tenha avançando tanto – não somente em um único país, mas em todas as nações importantes do mundo – que cesse a competição entre os proletários desses países e que ao menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos dos trabalhadores. Nossa preocupação maior não pode ser simplesmente modificar a propriedade privada, mas aboli-la; não é abafar os antagonismos de classe, mas abolir as classes; não é melhorar a sociedade atual, mas fundar uma nova.”

“Acima de tudo, durante e imediatamente após a luta os trabalhadores, tanto quanto possível, devem se opor às tentativas burguesas de pacificação e forçar os democratas a levar adiante seus lemas de terror. Eles devem trabalhar para assegurar que a excitação revolucionária imediata não seja subitamente suprimida depois da vitória. Pelo contrário, ela deve ser sustentada tão longamente quanto possível. Longe de se opor aos chamados “excessos” – ocasiões de vingança popular contra indivíduos odiados ou contra edificações públicas associadas a uma memória odiosa – o partido dos trabalhadores deve não apenas tolerar essas ações, mas deve até mesmo dar-lhes uma direção.”


4.  Um problema da esquerda

A Mensagem de março de 1850, tão admirada por Lênin e Trotski, tornou-se um texto embaraçoso para os marxistas acadêmicos e para os neo-marxistas de maneira geral. Esse constrangimento é resultado, em parte, da obliteração do horizonte revolucionário a partir dos anos 1970 (obliteração que, aliás, nunca foi completa, a julgar pelos eventos de 2011 no mundo muçulmano); também é consequência da desconfiança – cada vez maior nos meios de esquerda - quanto às soluções baseadas na força. Todavia, parece-me que há uma terceira fonte de constrangimento, cujos sinais podem ser lidos no próprio abismo estilístico que existe entre o Manifesto de 1848 e a Mensagem de 1850. 

No espaço de dois anos, a audácia teórica, o atrevimento jovial e a abertura do Manifesto desaparecem totalmente. No seu lugar, surge o tom ressentido, minucioso, conspiratório e calculista. Nada de voos do condor, nada de arroubos à la Blanqui. Marx já não acredita mais em belas revoluções.

Também muda a escala e a amplitude do ponto de vista. No Manifesto, Marx empunhava o globo e fazia-o girar diante dos nossos olhos, na progressão vertiginosa dos séculos. Na Mensagem, tudo se reduz à dissecação anatômica da pequena burguesia democrática alemã e à análise de sua disposição à perfídia. É bem verdade que essa análise constitui uma primorosa peça de sociologia, mas também é verdade que Marx não faz nenhuma avaliação da força efetiva do proletariado, que ele invoca tantas vezes no texto como algo dado e sobejamente conhecido. (Por que esse silêncio? Tratava-se de auto-engano ou de uma estratégia para não desesperar os camaradas da tão debilitada Liga dos Comunistas?)

Há, porém, algo mais grave: na Mensagem de 1850 aflora um viés político que, seguindo uma fratura histórica dolorosa para a esquerda, esclarece o abismo estilístico que se abriu em relação ao Manifesto.

Não se trata do jacobinismo previsível e residual do documento, que aparece de maneira explícita (embora historicamente incorreta) quando se discute a necessidade de centralização do poder (“Como na França em 1793...”). O verdadeiro problema é que, muitas vezes, Marx e Engels se aproximam da ideia de que as oportunidades ditam os meios a serem usados, inclusive os mais extremos:

“Se as forças da democracia tomarem medidas decisivas e de terror contra a reação desde o começo, a influência reacionária nas eleições já terá sido destruída.”

A Realpolitik – termo que se difundiu nessa época - se apresenta cinicamente como uma arte do possível. Talvez não seja por outra razão que a fórmula “tanto quanto possível” ocorre a cada passo na Mensagem de 1850:

“Acima de tudo, durante e imediatamente após a luta os trabalhadores, tanto quanto possível, devem se opor às tentativas burguesas de pacificação e forçar os democratas a levar adiante seus lemas de terror. Eles devem trabalhar para assegurar que a excitação revolucionária imediata não seja subitamente suprimida depois da vitória. Pelo contrário, ela deve ser sustentada tão longamente quanto possível.”

Antes do biênio 48-49, o partido comunista era apenas o partido do contra, o partido da subversão. Foi a derrota diante de um movimento contrarrevolucionário, que não temia recorrer aos meios extremos (como o assassinato de prisioneiros que já tinham se rendido em junho de 48), foi essa derrota que transformou a Liga dos Comunistas num verdadeiro partido revolucionário. É isso que Marx explica num texto fundamental:

Em resumo: não foram suas conquistas tragicômicas que fizeram avançar a revolução; ao contrário, foi somente fazendo surgir uma contrarrevolução compacta e potente, criando um adversário e combatendo-o, que o partido da subversão pode se tornar, finalmente, um partido verdadeiramente revolucionário.  (As Lutas de Classes na França)

Naquele mês de março de 1850, em que escreviam a Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas, Marx e Engels pareciam ter chegado à conclusão de que um partido revolucionário não deve recuar diante de nenhum meio. Em outras palavras, não são os meios que devem distinguir a esquerda revolucionária e a direita reacionária. Lição de Realpolitik que foi retida por alguns tiranos do século XX. 

No entanto, o partido revolucionário assim definido não foi chamado à ação nos vinte anos seguintes. As esperanças que Marx ainda acalentava em março de 1850 logo desapareceram. Ele mergulhou nos estudos de economia política; mais tarde envolveu-se nas infindáveis discussões dentro da Associação Internacional dos Trabalhadores (a Primeira Internacional). 

Marx já era um homem envelhecido quando a revolução eclodiu novamente em Paris no ano de 1871. 





domingo, 8 de dezembro de 2013

A claraboia e o holofote #17





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



As lições de 1848 (Parte 2)


1. Na Alemanha

Após a queda de Napoleão, as potências vencedoras definiram, no Congresso de Viena, a nova ordem da Europa: uma ordem continental monárquica e reacionária, sustentada pela Rússia, pela Áustria e pela Prússia, reunidas na Santa Aliança. No entanto, na parcela da Europa sob a hegemonia austríaca e prussiana, a ordem instaurada em 1815 não demorou a ser confrontada por três tipos de demandas que, apesar de sua natureza diversa, se entrelaçavam nos protestos e proclamações.

Havia, em primeiro lugar, as demandas das nacionalidades suprimidas ou subjugadas pelas potências que derrotaram Napoleão no front oriental. Os poloneses queriam de volta a sua nação, que desaparecera na partilha entre a Rússia e a Prússia; o confuso mosaico formado por mais de trinta estados alemães sonhava com a unificação nacional; no Império dos Habsburgos, húngaros, lombardos, vênetos e vários povos eslavos reclamavam sua autonomia. 

Havia também as demandas políticas liberais, parlamentaristas, constitucionalistas e, às vezes, republicanas. Essas demandas eram feitas pelas burguesias nacionais, desejosas de diminuir o poder dos aristocratas latifundiários (como os Junkers prussianos) que ainda mantinham privilégios feudais.

Por último, havia as demandas sociais da classe trabalhadora, especialmente dos artesãos, cuja organização tradicional em oficinas e corporações de ofício era erodida pelo avanço do sistema industrial, baseado no trabalho não-qualificado de um proletariado miserável, que não cessava de multiplicar-se nas cidades. 

A revolução de março de 48 foi o momento em que todas as insatisfações eclodiram, em que todas as demandas foram proclamadas, em que todas as esperanças pareciam prestes a se realizar. 


Die Märzrevolution

A notícia da queda do rei Luís Felipe e da formação de um governo provisório democrático viajou com rapidez pela Europa. Ainda em fevereiro, no dia 27, a assembleia de Baden – um dos estados mais liberais da confederação alemã – exigiu uma carta de direitos. As assembleias de Württemberg, Hessen-Darmstadt e Nassau seguiram o exemplo. Diante do forte apoio popular a essas demandas, os governantes - intimidados - cediam e nomeavam gabinetes liberais. 

No dia 3 de março, pouco depois de receber as notícias de Paris, o jornalista Lajos Kossuth, líder da bancada nacionalista liberal na Dieta Húngara, discursou contra o absolutismo da corte de Viena e exigiu a liberdade política dos povos do Império Austríaco. 

No dia 5, cinquenta e um representantes liberais e radicais de seis estados alemães redigiram a declaração de Heidelberg, segundo a qual “o mais cedo possível uma assembleia ampla de homens de confiança de todos os povos alemães deverá se reunir para deliberação contínua sobre as matérias mais importante e oferecer sua cooperação à pátria e ao governo”.

No dia 10, com as manifestações dos trabalhadores em Berlim, a agitação revolucionária chegou ao coração da Prússia. Três dias depois, o levante popular em Viena derrubou Metternich, o grande articulador da política reacionária da Santa Aliança.  Em Milão e em Veneza, a queda de Metternich e sua fuga para Londres foram a centelha para a revolta contra as autoridades austríacas (a respeito da revolução de março em Milão, cf.  Il moto non è diverso dalla stasi # 2).

Em Berlim, o rei Frederico Guilherme IV foi obrigado a ceder à pressão popular. Ele nomeou um ministério liberal e aceitou a eleição de uma assembleia em Berlim para redigir uma constituição para a Prússia. 

No último dia março, os representantes dos estados que compunham a confederação alemã se encontraram na catedral de São Paulo, em Frankfurt. Esse parlamento prévio (Vorparlament) convocou eleições - por voto censitário - para escolher os deputados da Assembleia Nacional de toda a Alemanha, que elaboraria a constituição. A primeira reunião dos 550 deputados eleitos, a maioria deles professores universitários e eruditos, ocorreu no dia 18 de maio. Imediatamente começaram as discussões para a criação de um Estado alemão unificado e liberal. Os deputados se dividiam quanto ao desenho institucional dessa Alemanha:  deveria o Reich incluir o Império Austríaco, que assumiria o papel de líder de uma “Grande Alemanha”, ou deveria excluir a Áustria, cabendo a liderança à Prússia?  A nação alemã deveria ter um governo central ou seria uma federação de estados relativamente independentes, como ocorria na Suíça?


O armistício de Malmö e a crise de setembro

Os territórios contíguos do Schleswig e do Holstein, na fronteira entre a Dinamarca e a Prússia, eram motivo de litígio entre os dois reinos. A Dinamarca reclamava a integração do Schleswig, mas a maioria germânica do território queria manter sua ligação com o Holstein e com a Confederação Alemã. Em março de 1848, o levante da população majoritariamente alemã do Schleswig-Holstein teve apoio militar da Prússia. A Rússia e a Grã-Bretanha advertiram a Prússia para que retirasse suas tropas. O rei Frederico Guilherme concordou em ceder os territórios à coroa dinamarquesa no armistício assinado em Malmö em 26 de agosto. 

Para os nacionalistas, o abandono da população alemã do Schleswig-Holstein era infame; para a esquerda revolucionária, o fim da guerra significava que as tropas prussianas estariam à disposição das forças reacionárias de Berlim, cuja violência recrudescia com tal rapidez que a assembleia constituinte prussiana teve que exigir da coroa a demissão dos oficias envolvidos em atividades contrarrevolucionárias.

Inicialmente o armistício foi rejeitado pela Assembleia Nacional de Frankfurt, mas veio a ser aprovado no dia 16 de setembro. Para os representantes das forças democráticas, o recuo da assembleia diante da pressão do rei tornou evidente a fraqueza do parlamento e o seu aviltamento a mero instrumento da contrarrevolução.

Dois dias depois da aprovação do armistício, manifestações populares e levantes esparsos se voltaram contra as forças contrarrevolucionárias. Era preciso levar adiante as reformas iniciadas em março e avançar na realização das demandas políticas e sociais dos trabalhadores e da pequena burguesia democrática. Uma assembleia de quinze mil pessoas, reunidas pelos democratas e pela associação dos trabalhadores, exigiu que a esquerda se retirasse da Assembleia Nacional de Frankfurt para constituir um parlamento revolucionário.

Apesar da mobilização popular, as iniciativas da esquerda tiveram pouco efeito. As forças da reação já estavam preparadas para retomar o controle em Viena e em Berlim.


A vitória da reação

No final de outubro, o exército do imperador reestabeleceu a ordem em Viena. Os trabalhadores, apoiados apenas pelos estudantes e por uma fração da pequena burguesia, lutaram vigorosamente, mas as tropas que faziam o cerco de Viena conseguiram entrar na cidade. No 1º de novembro, a bandeira dos Habsburgos era vista no pináculo da Catedral de Santo Estevão. 

Robert Blum, deputado esquerdista da Assembleia Nacional que fora enviado para verificar os avanços da contrarrevolução na Áustria, decidiu participar dos combates  de rua. Ele foi preso e executado no dia 9 de novembro, a despeito de sua imunidade parlamentar, para escândalo e consternação de todos os democratas de fala germânica.

No mesmo 9 de novembro, veio o coup d'État prussiano. O rei nomeou o conde de Brandenburgo como chefe do novo ministério. Os generais e os aristocratas prussianos, entre os quais Otto von Bismarck, recuperaram o controle de Berlim. O rei dissolveu a assembleia prussiana e instalou sua própria constituinte.

No começo de 1849, o triunfo da Santa Aliança parecia completo. 

O imperador da Áustria impôs, no 7 de março, uma constituição que declarava que a Áustria, a Hungria e as províncias da Itália e dos Balcãs era uma entidade indivisível.

Os trabalhos da Assembleia Nacional de Frankfurt continuaram, a despeito de todas os percalços: sinal evidente da sua alienação da realidade histórico-social. No dia 28 de março, ela aprovou o esboço da nova constituição: a Alemanha seria uma monarquia constitucional, chefiada pelo rei da Prússia como imperador hereditário. No entanto, quando o parlamento ofereceu a coroa ao rei Frederico Guilherme, ele a recusou, deixando claro que não reconhecia a autoridade da Assembleia Nacional.

Aos poucos, os deputados abandonaram o parlamento. Em junho, os membros mais radicais formaram em Stuttgart um Rumpfparlament que foi dissolvido pelo exército.

Na Renânia, na Westfália, na Saxônia, em Baden e no Palatinado houve levantes promovidos pelos comitês de salvação organizados pela esquerda desde os avanços reacionários do fim do ano anterior. Esses comitês tiveram a participação de nomes como Engels, na Renânia, e de Bakunin, em Dresden, mas a coordenação era deficiente mesmo no nível local. Os líderes e participantes tiveram que fugir; os que foram capturados foram executados ou sentenciados à prisão. 

As forças da reação, lideradas por Bismarck, acabariam por unificar a Alemanha sob a hegemonia prussiana. Depois da vitória sobre o imperador Napoleão III, o rei da Prússia finalmente aceitou – em Versalhes - a coroa de Kaiser de toda a Alemanha. Enquanto o Reich alemão iniciava sua ascensão, o Império Austríaco rolava lentamente em direção à irrelevância política, às intermináveis crises parlamentares e aos impasses gerados pela calcificação das instituições, incapazes de responder às demandas dos nacionalistas, dos liberais, dos socialistas e, mais tarde, dos comunistas. Haveria ainda uma brilhante floração cultural no fim do século, mas o império era apenas um cadáver adiado.


2. Duas visões sobre a limitada participação dos trabalhadores no 48 alemão.


Hajo Holborn, A History of Modern Germany 1840 -1945 vol III, Princeton University Press, 1982 

O historiador alemão radicado nos Estados Unidos ressalta o caráter retrógrado das aspirações das classes sociais envolvidas na revolução de 1848 na Alemanha.

In the towns and cities the most revolutionary elements were the downtrodden journeymen and poor masters. The industrial workers proved unamenable to the revolutionary doctrines of Marx and Engels in 1848-49. The only socialist movement to make visible progress was the one led by Stephan Born in Berlin and that was reformist rather than revolutionary. Formation of trade unions, the improvement of working conditions and wages, as well as suffrage for the workers were the chief aims of this social-democratic group. But the mass of the manual workers consisted of artisans who expected neither revolutionary nor reformist socialism from the governments. They wanted work and a decent livelihood, and they saw the way to it chiefly in the abolition, or at least drastic curtailment, of economic freedom. The restoration of the guild system protected against the competition of factories and foreign countries was their chief political demand.
Simultaneously with the peasant riots of March, a wave of acts of destruction was perpetrated by journeyman against factories and other institutions of the modern industrialism. In the Rhineland and in Saxony numerous attempts were made to destroy machines that threatened to replace the work of the artisans. Thus the cutlers of Solingen, for example, destroyed one of the iron foundries in the neighborhood. Most pathetic was the vengeance of the jobless boatman of the Rhine and Danube against the steamships and that of the displaced wagoners of Nassau against the Taunus railroad. Soldiers had to be employed to end these disorders.
The guildsmen continued to press for the relief of their grievances. Since they felt that the old and new parliaments did not give them enough attention, they debated their problems in a number of regional and national congresses. They all wanted a protectionist economy and in general did not show much interest in the political aims of liberalism. The March ministries on their part did not produce more than minor palliatives for dealing with the miserable situation of the masses. The most important practical economic program was presented to the Prussian United Diet in April by the liberal minister Camphausen. By launching a substantial credit of expansion, this Rhenish merchant departed from the traditional fiscal policies of the Prussian treasury. The measures taken by him were quite effective in speeding up economic recovery, but since in the beginning they chiefly benefited industry and banks, not only the petty bourgeoisie but also the agrarian Junkers looked askance at the demonstration of the new power of financial capitalism. (pp. 59-60)


Barrington Moore Jr, Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta, Brasiliense, 1987

O sociólogo marxista heterodoxo norte-americano questiona a participação popular e o seu caráter revolucionário no 1848 alemão. Segundo Moore, a massa do proletariado não se moveu durante a revolução; o movimento dos trabalhadores correspondia  a uma pequena parte da classe operária e, além disso, não foi revolucionário nos meios – ainda tímidos devido à submissão a autoridades paternalistas – e não foi revolucionário nos fins: a busca de respeitabilidade como alternativa à proletarização.

O fato central é simplesmente o seguinte: a esmagadora maioria daqueles cuja situação “objetiva” qualificava como vítimas da injustiça não tomou parte ativa nos eventos do período {1848}. Até onde é possível dizer atualmente, eles apenas ficaram calados, procuraram levar suas vidas cotidianas e esperaram pelo resultado. Embora no século XX o grau de participação popular tenha indubitavelmente crescido, desconfio fortemente que não fazer nada continua a ser a forma real de ação das massas nas principais crises históricas, desde o século XVI.  Isso não significa negar a importância decisiva das ocasionais explosões populares, que, no entanto, jamais podem arrastar mais do que uma frágil parcela da população. (223-4)
A mais bem-sucedida organização, em termos de número de associados, foi a Verbrüderung, uma tentativa liderada basicamente por Stephan Born de recrutar todos os operários para uma organização nacional (..) Não existem cifras precisas sobre o número de membros que a Verbrüderung conseguiu conquistar em qualquer momento de seus dois anos de existência ativa. (...) Um cálculo moderno razoável fala em 18 mil. Trata-se de uma diminuta parcela dos mais de 550 mil trabalhadores fabris a quem ela dirigia seu principal apelo, para não mencionar os quase um milhão e meio de trabalhadores sem qualificação na Alemanha da época. (225-6)
Em nenhum momento, mais do que uma proporção infinitesimal dos trabalhadores alemães tomou parte dos eventos de forma ativa. (...) A maioria daqueles que o fizeram era evidentemente composta de membros da aristocracia operária. 
Como já se notou, a camada que Marx postulava ser a ponta de lança da revolução era, na verdade, a mais inerte de todas. (229-230)
A fim de alcançar uma compreensão mais precisa dos sentimentos e reivindicações populares na Alemanha dessa época, seria útil reduzir o conceito de revolução a um lugar muito menos saliente. Tanto entre os artesãos como entre os operários organizados, o objetivo era a aceitação da ordem social. Esta significava consideração suficiente por parte de outrem e uma base econômica suficientemente segura para permitir o auto-respeito com honestidade. Tornar-se membro do proletariado era o que todos temiam. As ideias sobre como atingir essas metas variavam amplamente, de acordo com a condição social e econômica. Para os mestres de corporação, os grandes temas eram os preços e a concorrência; a solução correta, o auxílio do Estado. A proteção do Estado significava que a sociedade proporcionaria novos serviços. Para alguns trabalhadores, o tema central eram os salários, um legítimo sinal do advento dos tempos modernos. Havia um mundo amplo e impreciso entre esses dois polos, o dos jornaleiros e aprendizes, os quais ainda não constituíam operários fabris, no sentido moderno e em sua própria esfera tinham pouca perspectiva realista de se tornarem mestres de ofícios. (237-8)



3. O 48 de Karl Marx

Karl Marx teve a honra de ser preso e expulso da Bélgica pela polícia do rei Leopoldo, assim que a notícia da revolução em Paris chegou a Bruxelas. Imediatamente ele seguiu para a França e organizou, em Paris, o novo comitê central da Liga dos Comunistas. Os integrantes eram Engels e Wolff em Bruxelas, Bauer, Moll e Schapper em Londres, e o próprio Marx. 

Em março, o comitê emitiu uma lista de dezessete demandas “em interesse do proletariado alemão, da pequena-burguesia e do campesinato”. Entre as demandas estavam: a Alemanha deveria ser uma república, una e indivisível, as propriedades feudais deveriam ser nacionalizadas, assim como as minas e o sistema de transporte; oficinas nacionais deveriam ser estabelecidas; a educação deveria ser compulsória e paga pelo Estado. 

Não se tratava do programa completo de medidas a serem tomadas pelos comunistas nos países mais avançados tal como fora estabelecido no final da seção II do Manifesto do Partido Comunista. Marx sabia bem que a Alemanha precisava primeiro de uma revolução burguesa e antifeudal. Por isso, as demandas de março eram de molde a atrair a pequena burguesia democrática, os nacionalistas, os intelectuais burgueses radicais, além das organizações de trabalhadores. A Liga dos Comunistas tinha como objetivo imediato chegar ao nível de participação democrática radical alcançado pelos jacobinos na Revolução Francesa. Pressupunha-se que essas demandas serviriam como plataforma para uma revolução civil democrática, que seria o passo inicial de uma transformação socialista.

No começo de abril, Marx e Engels se estabeleceram na Renânia. Além da proximidade com a França, tratava-se de uma região rica, desenvolvida e relativamente livre por ser administrada pelo Código Napoleônico e não pelo rígido Código Prussiano. Em Colônia, Marx e Engels trataram de divulgar as Demandas da Liga dos Comunistas, que foram publicadas diversas vezes tanto na imprensa periódica como em folhetos, entre 1848 e 1849. Marx e Engels enfrentaram várias dificuldades financeiras para publicar um jornal político que atraísse os radicais, os democratas e os comunistas. No dia 1 de junho de 1848 foi lançado o primeiro número da Nova Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung), tendo Marx como editor. A contundência das análises de Marx logo afugentaram os patrocinadores mais tímidos. Apesar do interesse dos leitores. que não parava de aumentar, Marx foi obrigado a bancar o jornal com o dinheiro de sua herança;  Jenny, sua esposa, teve que vender as joias da família. 

Marx se desdobrava. Escrevia análises agudas do cenário político francês e alemão  e envolvia-se nas tarefas práticas de organização e mobilização política. Quando, em junho, quase noventa associações se reuniram em Frankfurt para fundar uma organização democrática unificada com representações locais, apenas em Colônia é que a proposta foi levada adiante. A democracia de Colônia era constituída por um comitê central que reunia três grandes associações, cada uma delas com milhares de membros: a Associação Democrática, liderada por Marx e pelo advogado Schneider, a Associação dos Trabalhadores conduzida por Moll e Schapper, e a Associação dos Empregadores e Empregados, chefiada por Hermann Becker. 

A crise de setembro em Berlim e Frankfurt teve repercussões imediatas em Colônia. A Renânia era vista com preocupação e temor pelas forças da contrarrevolução, razão pela qual foi ocupada por tropas nas províncias orientais, em tal número que uma insurreição se tornou impossível. 

Em vista da instabilidade dos ministérios liberais na Prússia, da ameaça de golpe e da crescente intranquilidade popular por causa do armistício de Malmö, os democratas e os comunistas de Colônia organizaram, em 13 de setembro, um Comitê de Salvação Pública, composto por 30 membros das organizações democráticas e dos trabalhadores. Os editores da Nova Gazeta Renana, assim como os líderes da Associações de Trabalhadores de Colônia foram eleitos entre seus membros. O Comitê de Salvação Pública apoiou os insurgentes de Frankfurt e a luta popular contra as forças reacionárias, que tentavam anular as conquistas de março e perseguiam os membros das organizações proletárias e democráticas.

Todavia, passo a passo, a contrarrevolução ganhou terreno. No final de agosto, Marx visitara Viena para aconselhar os membros da burguesia revolucionária e para recrutar os trabalhadores em defesa de uma frente unida contra a reação, mas suas tentativas foram vãs. O Segundo Congresso dos democratas, em Berlim, em nada ajudou. Viena foi abandonada ao seu destino. No final de outubro, os soldados tomaram a cidade. 

Seguiu-se o golpe de Estado na Prússia: o recém nomeado Brandenburgo dispersou a assembleia constituinte de Berlim, desarmou as milícias e declarou estado de sítio. Não houve resistência. 

A democracia de Colônia ainda resistiria até 19 de maio de 1849, quando a Nova Gazeta Renana publicou seu último número.  Marx teve que sair da cidade. Ele chegou a Paris a tempo de assistir a crise de 13 de junho de 1849, quando as lideranças republicanas francesas, que protestavam contra o envio de tropas francesas para derrubar a república romana de Mazzini, foram presas ou tiveram que fugir sob a repressão do Presidente Luís Napoleão.

Com a prisão dos republicanos, Marx e sua família se exilaram na Inglaterra, em condições mais do que precárias. Ao chegar em Londres em 1849, Marx havia aprendido algumas lições sobre a insuficiência das forças espontâneas da classe operária e sobre as fraquezas do “partido comunista” de 1848. 



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Holborn, Hajo, A History of Modern Germany 1840-1945 vol III, Princeton University Press | Tristram Hunt, Comunista de casaca: a vida revolucionária de Friedrich Engels, Record | Karl Marx e Friedrich Engels, Demands of the Communist Party in Germany | Franz Mehring, Karl Marx: the story of his life | Barrington Moore Jr, Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta, Brasilienese  |  Otto Rühle, Karl Marx: his life and work, Routledge | Encyclopedia of Revolutions of 1848