domingo, 31 de março de 2013

Figuras do Negativo #3






Ensaio sobre Bartleby, the Scrivener - A Story of Wall-Street


Ao amigo Ítalo



Há muitos anos, meu amigo Ítalo e eu fazíamos muitas piadas assumindo o papel de Bartleby na vida cotidiana do colégio.

- Hoje haverá reunião à tarde. O senhor professor está convocado.
- Eu preferiria não comparecer à reunião.
- Professor, seja razoável!
- No momento, eu preferiria não ser razoável.

A resistência passiva de Bartleby se tornou quase tão conhecida quanto a obsessão vingativa do Capitão Ahab, mas levou muito tempo até que o conto de Herman Melville, publicado no  Putnam’s Magazine em novembro e dezembro de 1853, fosse reconhecido como uma das grandes obras da literatura. 


Fazendo par com sua propensão de construir enredos carregados de especulação filosófica, Herman Melville tinha um grande talento humorístico. Várias passagem de Bartleby, the Scrivener guardam um saboroso non-sense sob medida para os admiradores mais assíduos do Monty Python Flying Circus  (posso até ver Graham Chapman como o patrão, Michael Palin faria Bartleby, John Cleese seria Nippers, Terry Jones apareceria como Turkey e Eric Idle faria Ginger-Nuts). Um trecho como o que se segue é capaz de eliminar qualquer dúvida a respeito:


Again I sat ruminating what I should do. Mortified as I was at his behavior, and resolved as I had been to dismiss him when I entered my offices, nevertheless I strangely felt something superstitious knocking at my heart, and forbidding me to carry out my purpose, and denouncing me for a villain if I dared to breathe one bitter word against this forlornest of mankind. At last, familiarly drawing my chair behind his screen, I sat down and said: "Bartleby, never mind then about revealing your history; but let me entreat you, as a friend, to comply as far as may be with the usages of this office. Say now you will help to examine papers to-morrow or next day: in short, say now that in a day or two you will begin to be a little reasonable:—say so, Bartleby."
"At present I would prefer not to be a little reasonable," was his mildly cadaverous reply.
Just then the folding-doors opened, and Nippers approached. He seemed suffering from an unusually bad night's rest, induced by severer indigestion then common. He overheard those final words of Bartleby.
"Prefer not, eh?" gritted Nippers—"I'd prefer him, if I were you, sir," addressing me—"I'd prefer him; I'd give him preferences, the stubborn mule! What is it, sir, pray, that he prefers not to do now?"
Bartleby moved not a limb.
"Mr. Nippers," said I, "I'd prefer that you would withdraw for the present."
Somehow, of late I had got into the way of involuntarily using this word "prefer" upon all sorts of not exactly suitable occasions. And I trembled to think that my contact with the scrivener had already and seriously affected me in a mental way. And what further and deeper aberration might it not yet produce? This apprehension had not been without efficacy in determining me to summary means.
As Nippers, looking very sour and sulky, was departing, Turkey blandly and deferentially approached.
"With submission, sir," said he, "yesterday I was thinking about Bartleby here, and I think that if he would but prefer to take a quart of good ale every day, it would do much towards mending him, and enabling him to assist in examining his papers."
"So you have got the word too," said I, slightly excited.
"With submission, what word, sir," asked Turkey, respectfully crowding himself into the contracted space behind the screen, and by so doing, making me jostle the scrivener. "What word, sir?"
"I would prefer to be left alone here," said Bartleby, as if offended at being mobbed in his privacy.
"That's the word, Turkey," said I —"that's it."
"Oh, prefer? oh yes — queer word. I never use it myself. But, sir, as I was saying, if he would but prefer"
"Turkey," interrupted I, "you will please withdraw."
"Oh certainly, sir, if you prefer that I should."
As he opened the folding-door to retire, Nippers at his desk caught a glimpse of me, and asked whether I would prefer to have a certain paper copied on blue paper or white. He did not in the least roguishly accent the word prefer. It was plain that it involuntarily rolled form his tongue. I thought to myself, surely I must get rid of a demented man, who already has in some degree turned the tongues, if not the heads of myself and clerks. But I thought it prudent not to break the dismission at once.

Depois de ter descoberto que o escrevente Bartleby morava no escritório, o narrador – um velho advogado instalado em Wall-Street -. decidiu tentar, amigavelmente, saber mais sobre aquele homem quieto que se recusava a cumprir as tarefas usuais da profissão. Como sempre, Bartleby preferia não responder às questões sobre seus parentes e sua proveniência. Impaciente, o narrador pediu que o escrevente fosse mais razoável e que, pelo menos, agisse em conformidade às práticas do ofício. Bartleby recusou mais uma vez. Os outros escreventes, Nippers e Turkey se intrometeram na conversa. O narrador se deu conta de que todos – inclusive ele mesmo – haviam passado a usar o verbo “preferir” de maneira involuntária e um tanto inadequada: claro sinal de que a presença de Bartleby estava começando a transformar as pessoas à sua volta. Era preciso tirá-lo do escritório, mas o narrador achava prudente não demiti-lo por enquanto.


A maneira como a resolução do narrador se desmancha diante da resposta absurda de Bartleby (At present I would prefer not to be a little reasonable); as intervenções desastradas de Nippers e Turkey, que se apinhavam no pequeno espaço entre a mesa de Bartleby e o biombo dobrável; a queixa do escrevente, que preferiria estar sozinho ali; por fim, a suspeita de que ocorrera uma contaminação linguística no escritório, todos esses elementos compõem uma cena farsesca que retoma o humor à la Dickens das páginas iniciais, quando o narrador apresentou os empregados de seu escritório como tipos cujas manias, falhas e esquisitices inofensivas resolviam-se numa relação passavelmente harmoniosa. 


Bartleby, porém, não é um tipo – apesar do seu bordão I would prefer not to. Ao contrário do que se poderia esperar do enredo, ele não introduz manias e falhas que devam ser acomodadas para reestabelecer a harmonia imperfeita daquele escritório. A chegada de Bartleby quase não muda a vida dos outros personagens, que vão para a penumbra à medida que a narrativa avança. Bartleby afeta apenas o seu patrão, que é o narrador. Diante da resistência passiva do novo escrevente, o personagem-narrador vê desabarem as pressuposições que fazia acerca de si mesmo.  Bartleby é a pedra no meio do caminho. Uma pedra inesquecível e incontornável.


II

Again I sat ruminating what I should do. Mortified as I was at his behavior, and resolved as I had been to dismiss him when I entered my offices, nevertheless I strangely felt something superstitious knocking at my heart, and forbidding me to carry out my purpose, and denouncing me for a villain if I dared to breathe one bitter word against this forlornest of mankind.

No dia anterior, um domingo, a caminho de ouvir um pregador famoso na Trinity Church, o narrador passara pelo seu escritório e descobrira que Bartleby vivia ali, dormia no sofá, alimentava-se apenas de alguns biscoitos de gengibre e pedaços de queijo e fazia a barba sem um espelho. Diante da pobreza, da solidão e do desamparo de Bartleby, o velho advogado sentira uma piedade tão extrema e dolorosa, que se tornava repulsa:

To a sensitive being, pity is not seldom pain. And when at last it is perceived that such pity cannot lead to effectual succor, common sense bids the soul rid of it. What I saw that morning persuaded me that the scrivener was the victim of innate and incurable disorder.

O senso comum, de que o narrador quer se fazer porta-voz, exige uma medida simples: se alguém está além do socorro que nossa piedade possa oferecer, é melhor livrar-se dessa pessoa. Bartleby deveria ser vítima de algum desarranjo inato e incurável, portanto, era claro o que devia ser feito. Contudo, o personagem-narrador não consegue dar o passo exigido pelo senso comum:

nevertheless I strangely felt something superstitious knocking at my heart, and forbidding me to carry out my purpose, and denouncing me for a villain if I dared to breathe one bitter word against this forlornest of mankind.

O sentimento do personagem-narrador lhe parece “estranho”: ele o qualifica como “superstição” e tenta descrevê-lo como uma recriminação da sua consciência moral aflita, que denunciava a ofensa que se poderia fazer ao mais desamparado de todos os homens. O personagem-narrador tenta dar uma forma reconhecível – do ponto de vista do senso comum – para a sua incapacidade em levar adiante a resolução de demitir o escrevente. Superstição e consciência moral são apenas nomes convencionais para algo cuja estranheza ele sente bem.  Na hora de confrontar-se com Bartleby, essa incapacidade de levar adiante a resolução tomada assume a forma espúria de conselhos de quem se pretende familiar e amigo, sem nada conhecer a respeito do interlocutor:

At last, familiarly drawing my chair behind his screen, I sat down and said: "Bartleby, never mind then about revealing your history; but let me entreat you, as a friend, to comply as far as may be with the usages of this office. Say now you will help to examine papers to-morrow or next day: in short, say now that in a day or two you will begin to be a little reasonable:—say so, Bartleby."

Bartleby não cede à ameaça velada contida na recomendação supostamente amistosa:

"At present I would prefer not to be a little reasonable," was his mildly cadaverous reply.

A resposta do escrevente, embora moldada no padrão das suas recusas anteriores, ainda assim é desconcertante do ponto de vista do senso comum. 

Bartleby é um homem de moral e decoro, como o próprio narrador reconhecera no domingo, quando descartara a hipótese de que o escrevente estivesse a usar o escritório para qualquer propósito indecente. Bartleby também é um mestre na arte da polidez: nunca eleva seu tom de voz, nunca se intromete nos assuntos alheios, nunca faz um comentário impertinente. Ele recusa de maneira branda: as expressões modais e adverbiais envolvem o “não” num casulo macio de formalidade e decoro que contrasta  comicamente com o caráter intempestivo da recusa. Os sucessivos atos de recusa destroem a fluidez da vida social que a polidez é chamada a garantir.  Diante disso, o uso do verbo “preferir” constitui uma impertinência, que só pode ser entendido como ruptura unilateral do trato social. A reclusão de Bartleby no escritório, isolado dos outros por um biombo, as horas de devaneio contemplando a parede cega que tinha diante de sua janela, seu silêncio, sua resistência a cooperar são entendidos pelo narrador como sinais de que Bartleby não se encontra no mundo dos homens sãos, quiçá nem no reino dos vivos.

Had there been the least uneasiness, anger, impatience or impertinence in his manner; in other words, had there been any thing ordinarily human about him, doubtless I should have violently dismissed him from the premises.
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Now, the utterly unsurmised appearance of Bartleby, tenanting my law chambers of a Sunday morning, with his cadaverously gentlemanly nonchalance, yet withal firm and self-possessed, had such a strange effect upon me, that incontinently I slunk away from my own door, and did as desired.
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His cadaverous triumph over me.
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the apparition of Bartleby appeared.

O constante fluxo de epítetos que o narrador usa para Bartleby (forlorn, passive, eccentric, unreasonable, inflexible, unaccountable escrivener, intolerable incubus, ghost, a demented man, little deranged etc) simplesmente reforça o que já sabíamos desde o início do relato: Bartleby é insondável.

While of other law-copyists I might write the complete life, of Bartleby nothing of that sort can be done. I believe that no materials exist for a full and satisfactory biography of this man. It is an irreparable loss to literature. Bartleby was one of those beings of whom nothing is ascertainable, except from the original sources, and in his case those are very small. What my own astonished eyes saw of Bartleby, that is all I know of him, except, indeed, one vague report which will appear in the sequel.

Por que o olhar do narrador (my own astonished eye) se surpreende tanto com Bartleby?


III


Na tentativa de estabelecer uma diferença entre a posição de Bartleby e a sua, o velho advogado afirma que Bartleby é um homem de preferências, enquanto ele mesmo é um homem de pressuposições (assumptions):

The great point was, not whether I had assumed that he would quit me, but whether he would prefer so to do. He was more a man of preferences than assumptions.

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Yes, as before I had prospectively assumed that Bartleby would depart, so now I might retrospectively assume that departed he was. In the legitimate carrying out of this assumption, I might enter my office in a great hurry, and pretending not to see Bartleby at all, walk straight against him as if he were air. Such a proceeding would in a singular degree have the appearance of a home-thrust. It was hardly possible that Bartleby could withstand such an application of the doctrine of assumptions. But upon second thoughts the success of the plan seemed rather dubious. I resolved to argue the matter over with him again.

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"Bartleby," said I, entering the office, with a quietly severe expression, "I am seriously displeased. I am pained, Bartleby. I had thought better of you. I had imagined you of such a gentlemanly organization, that in any delicate dilemma a slight hint would have suffice—in short, an assumption.


O narrador é um “homem de pressuposições” (assumptions) na medida em que acredita que a vida social é feita de acordos tácitos que serão cumpridos sem necessidade de explicitação e sem possibilidade de recusa. Uma pequena sugestão deveria ser entendida como uma ordem (a slight hint would have suffice—in short, an assumption) e uma ordem deveria necessariamente ser cumprida, por ser uma ordem. As recusas de Bartleby revelam o aspecto infundado das pressuposições do narrador, inclusive a pressuposição de que o patrão deveria ser obedecido.

As preferências de Bartleby não apenas desafiam as pressuposições do narrador. Elas colocam em evidência, de maneira hiperbólica, a escolha do narrador (sua “preferência”, para usar a linguagem do escrevente) pela inação:

I am a man who, from his youth upwards, has been filled with a profound conviction that the easiest way of life is the best. Hence, though I belong to a profession proverbially energetic and nervous, even to turbulence, at times, yet nothing of that sort have I ever suffered to invade my peace. I am one of those unambitious lawyers who never addresses a jury, or in any way draws down public applause; but in the cool tranquility of a snug retreat, do a snug business among rich men's bonds and mortgages and title-deeds. All who know me, consider me an eminently safe man.

A pobreza de Bartleby, sua solidão, sua recusa de realizar as tarefas exigidas pelo ofício, seu desamparo, o ter sido finalmente preso como vagabundo são um espelho incômodo para o narrador, que – por falta de pudor ou de consciência de si mesmo – apela para o léxico da convicção (a profound conviction) e da moderação virtuosa (I am one of those unambitious lawyers; in the cool tranquility, an eminently safe man para legitimar a preguiça e a morosidade de um caráter fraco, que vive de conciliações, protelações e retiradas estratégicas. Daí as numerosas desculpas que inventa para adiar a solução do problema:

I thought to myself, surely I must get rid of a demented man, who already has in some degree turned the tongues, if not the heads of myself and clerks. But I thought it prudent not to break the dismission at once.

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At length, necessities connected with my business tyrannized over all other considerations.

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and though I often felt a charitable prompting to call at the place and see poor Bartleby, yet a certain squeamishness of I know not what withheld me.

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The landlord's energetic, summary disposition had led him to adopt a procedure which I do not think I would have decided upon myself; and yet as a last resort, under such peculiar circumstances, it seemed the only plan.

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I now strove to be entirely care-free and quiescent; and my conscience justified me in the attempt; though indeed it was not so successful as I could have  wished. So fearful was I of being again hunted out by the incensed landlord and his exasperated tenants, that, surrendering my business to Nippers, for a few days I drove about the upper part of the town and through the suburbs, in my rockaway; crossed over to Jersey City and Hoboken, and paid fugitive visits to Manhattanville and Astoria. In fact I almost lived in my rockaway for the time.

A inação decidida, mas polida de Bartleby reflete a inação envergonhada e irritável do velho advogado.  Mas, sobretudo, Bartleby recusa a sociabilidade feita à base de pressuposições e pequenas concessões do velho advogado, tão bem expressa na sua satisfação com a harmonia precária e imperfeita entre o mau-humor dispéptico de Nippers pela manhã e o furor alcoólico de Turkey à tarde, ou na maneira como procedeu para manter Bartleby perto de si, conciliando privacidade e proximidade de contato:

I procured a high green folding screen, which might entirely isolate Bartleby from my sight, though not remove him from my voice. And thus, in a manner, privacy and society were conjoined.

As recusas de Bartleby são exasperantes porque desnudam as pequenas misérias que compõem a pusilanimidade e a impotência do personagem-narrador, o qual, de maneira suspeita, coloca sob a categoria de “maravilha” o efeito paralisador que sofre por causa da “ascendência” do escrevente sobre si:

With any other man I should have flown outright into a dreadful passion, scorned all further words, and thrust him ignominiously from my presence. But there was something about Bartleby that not only strangely disarmed me, but in a wonderful manner touched and disconcerted me.

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Indeed, it was his wonderful mildness chiefly, which not only disarmed me, but unmanned me, as it were.

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But again obeying that wondrous ascendancy which the inscrutable scrivener had over me, and from which ascendancy, for all my chafing, I could not completely escape, I slowly went down stairs and out into the street, and while walking round the block, considered what I should next do in this unheard-of perplexity.

O velho advogado, habitualmente paralisado pela sua inação, pela rotina do escritório e pela constância dos hábitos dos seus funcionários, parece espantado com o fato de que era incapaz de demitir Bartleby ou tomar qualquer atitude definitiva em relação ao escrevente taciturno que tinha junto de si. Mas o fato é que ele também não conseguia despedir Turkey apesar das manchas de tinta nas cópias... O bom coração do personagem-narrador é apenas medo de envolver-se em contendas na hora de resolver definitivamente uma questão. É uma complacência com os esquemas provisórios de baixo nível de conflito.

É essa impotência que ele pretende resolver através do recurso à imaginação e ao devaneio: na impossibilidade de chegar, por si mesmo, a uma solução, o personagem-narrador fantasia ações para vencer a resistência passiva do escrevente e imaginar de onde vinha sua recusa, como acontece nas ingênuas considerações que o próprio narrador formula e descarta a respeito da influência dos biscoitos de gengibre sobre a personalidade de Bartleby.  Portanto, a impotência do discernimento é suplementada pela imaginação, como o velho advogado admite:

Nothing so aggravates an earnest person as a passive resistance. If the individual so resisted be of a not inhumane temper, and the resisting one perfectly harmless in his passivity; then, in the better moods of the former, he will endeavor charitably to construe to his imagination what proves impossible to be solved by his judgment.

(Considero que toda a nota final sobre a atividade anterior de Bartleby no setor de correspondência devolvida é apenas um desses exercícios de imaginação para suprir, caritativamente, a incapacidade do narrador em compreender e julgar. O próprio narrador afirma que era apenas um boato. Vindo de quem? Quem saberia alguma coisa desse tipo sobre Bartleby?)

A capacidade de recorrer à imaginação para suprir aquilo que não entende funciona sempre no sentido de conferir o máximo de conforto moral a um homem que não quer parecer cruel, injusto ou malvado. O ápice desse exercício imaginativo de auto-ilusão é quando o narrador se convence de que foi predestinado pela Providência a fornecer para Bartleby um canto no escritório onde ele possa viver.

Gradually I slid into the persuasion that these troubles of mine touching the scrivener, had been all predestinated from eternity, and Bartleby was billeted upon me for some mysterious purpose of an all-wise Providence, which it was not for a mere mortal like me to fathom. Yes, Bartleby, stay there behind your screen, thought I; I shall persecute you no more; you are harmless and noiseless as any of these old chairs; in short, I never feel so private as when I know you are here. At last I see it, I feel it; I penetrate to the predestinated purpose of my life. I am content. Others may have loftier parts to enact; but my mission in this world, Bartleby, is to furnish you with office-room for such period as you may see fit to remain.

A imaginação fértil do narrador, porém, não pode lhe fornecer princípios de conduta, mas apenas veleidades de ação cujo fim último é pacificar uma consciência moral preguiçosa que deseja apenas auto-congratular-se sem fazer sacrifícios. Essa falta de solidez na vida moral do narrador se manifesta como instabilidade:

Here I can cheaply purchase a delicious self-approval. To befriend Bartleby; to humor him in his strange willfulness, will cost me little or nothing, while I lay up in my soul what will eventually prove a sweet morsel for my conscience. But this mood was not invariable with me. The passiveness of Bartleby sometimes irritated me. I felt strangely goaded on to encounter him in new opposition, to elicit some angry spark from him answerable to my own.

A incerteza inerente a uma vida moral preguiçosa e veleitária conduzida pela imaginação (e não pelo discernimento) se manifesta, do ponto de vista linguístico, pela dança das formas modais que vemos neste trecho:

What shall I do? I now said to myself, buttoning up my coat to the last button. What shall I do? What ought I to do? what does conscience say I should do with this man, or rather ghost. Rid myself of him, I must; go, he shall. But how? You will not thrust him, the poor, pale, passive mortal,—you will not thrust such a helpless creature out of your door? you will not dishonor yourself by such cruelty? No, I will not, I cannot do that. Rather would I let him live and die here, and then mason up his remains in the wall. What then will you do? For all your coaxing, he will not budge. Bribes he leaves under your own paperweight on your table; in short, it is quite plain that he prefers to cling to you.

Esse devaneio a respeito do que fazer com Bartleby termina com a lembrança da recusa de todos as pequenas somas de dinheiro (Bribes he leaves under your own paperweight on your table) que o personagem-narrador ofereceu ao escrevente a cada vez que pretendeu abandoná-lo, como um pequeno tributo para isentar-se de qualquer responsabilidade. O recurso não funcionou. Quando o velho advogado resolve mudar de escritório com o intuito de abandonar Bartleby,  o novo locatário vai procurá-lo para queixar-se de que o escrevente continuava assombrando o prédio. O velho advogado tentou, mais uma vez, fugir da responsabilidade:

"I am very sorry, sir," said I, with assumed tranquility, but an inward tremor, "but, really, the man you allude to is nothing to me—he is no relation or apprentice of mine, that you should hold me responsible for him."

Em outras palavras, a velha resposta de Caim.

O escrevente acabou preso sob a acusação de vadiagem e foi levado à casa de detenção de New York, conhecida como “The Tombs”. Quando visitado, Bartleby não deixou de reconhecer o velho advogado e expressar claramente sua recusa:

"I know you," he said, without looking round,—"and I want nothing to say to you."

Apesar do dinheiro oferecido para que um funcionário providenciasse boas refeições para Bartleby, aparentemente o escrevente preferia não comer e veio a morrer no pátio daquele prédio pseudo-egípcio segundo a moda das primeiras décadas do século XIX.  É nesse cenário egípcio que o vemos pela última vez, como um faraó ou conselheiro mumificado na sua imobilidade eterna:

The surrounding walls, of amazing thickness, kept off all sounds behind them. The Egyptian character of the masonry weighed upon me with its gloom. But a soft imprisoned turf grew under foot. The heart of the eternal pyramids, it seemed, wherein, by some strange magic, through the clefts, grass-seed, dropped by birds, had sprung.
Strangely huddled at the base of the wall, his knees drawn up, and lying on his side, his head touching the cold stones, I saw the wasted Bartleby. But nothing stirred. I paused; then went close up to him; stooped over, and saw that his dim eyes were open; otherwise he seemed profoundly sleeping.
Something prompted me to touch him. I felt his hand, when a tingling shiver ran up my arm and down my spine to my feet.
The round face of the grub-man peered upon me now. "His dinner is ready. Won't he dine to-day, either? Or does he live without dining?"
"Lives without dining," said I, and closed his eyes.
"Eh!—He's asleep, aint he?"
"With kings and counselors," murmured I.



IV

As palavras finais da narrativa são bastante famosas:

Ah Bartleby! Ah humanity!

É bastante claro que se trata de uma lamentação pela triste condição de Bartleby e da humanidade, mas na sua forma elíptica, a frase final deixa aberta qual seja a relação entre Bartleby e a humanidade. Embora a fórmula aparentemente devolva a Bartleby a condição humana negada várias vezes ao longo do relato, o caráter dual da fórmula admite também a leitura inversa: a humanidade é plena dos sofrimentos e misérias pelas quais Bartleby passou. Seja ao tomar o primeiro termo (Bartleby) como resumo metonímico do segundo (humanidade), seja como gradação em que o segundo amplia o alcance do primeiro, a fórmula escamoteia a esfera intermediária entre o indivíduo singular Bartleby e a espécie humana como um todo. Todo o espaço das convenções e das trocas sociais, ou seja, o espaço de Wall-Street, com o movimento intenso dos escritórios, com o deserto dos domingos, com a urbanização feita de paredes cegas, todo esse espaço social - de que o velho advogado é representante - é obliterado na exclamação patética do narrador. Isso mostra que ele está mais uma vez evadindo-se rumo ao conforto da piedade genérica e das exclamações perfunctórias.

O boato final – completamente destituído de fundamento - sobre o trabalho de Bartleby no departamento de correspondência devolvida (Dead Letter Office) é apenas o último exercício de imaginação tentando suprir a incapacidade de compreender Bartleby, fornecendo um contexto fantasioso para a esquisitice do personagem.

Yet here I hardly know whether I should divulge one little item of rumor, which came to my ear a few months after the scrivener's decease. Upon what basis it rested, I could never ascertain; and hence, how true it is I cannot now tell.
But inasmuch as this vague report has not been without certain strange suggestive interest to me, however sad, it may prove the same with some others; and so I will briefly mention it. The report was this: that Bartleby had been a subordinate clerk in the Dead Letter Office at Washington, from which he had been suddenly removed by a change in the administration. When I think over this rumor, I cannot adequately express the emotions which seize me. Dead letters! does it not sound like dead men?

O sentido e o interesse do rumor são construídos pela imaginação (But inasmuch as this vague report has not been without certain strange suggestive interest to me), uma vez que lhe falta qualquer base factual. Tudo se resolve por aproximações semânticas forçadas: Dead letters! does it not sound like dead men?

Trata-se do subterfúgio de alguém que não consegue tolerar a negatividade que entreviu em si mesmo e busca externalizá-la numa fábula ad hoc. Bartleby é o espectro que assombra um narrador cuja impotência, inseparável da sua teia social, pulsa da maneira mais dolorosa.

Ah velho advogado! Ah Wall-Street!




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Foto: detalhe da obra Regola Regolarsi (1979), de Alighiero Boetti  (Coleção Berardo, Lisboa)


terça-feira, 19 de março de 2013

Figuras do Negativo #2






Ensaio sobre The Call of Cthulhu



Escrito em 1926, o conto The Call of Cthulhu, de H.P. Lovecraft, narra as etapas de uma investigação que conduz o narrador a uma descoberta terrível que ameaça não apenas a sua vida, mas a própria ordem moral do mundo. 

Entre os documentos do falecido Professor Angell, especialista em línguas semíticas, o narrador encontrara uma placa de argila de feitura recente, coberta de hieróglifos estranhos, que trazia a figura de uma criatura monstruosa. Tratava-se de um trabalho de Henry Wilcox, um jovem artista local que havia procurado o Professor em busca de esclarecimento sobre a escrita que, em seus sonhos, aparecia acompanhada de um murmúrio incompreensível que repetia as palavras Cthulhu fhtagn e R’lyeh. O velho especialista se interessou pelo caso e descobriu que várias pessoas haviam tido sonhos semelhantes nos dias que se seguiram a um tremor de terra na região. 

O interesse do Professor Angell pelos sonhos bizarros do jovem artista era justificado. Vinte anos antes, quando participava de um congresso de arqueologia, os estudiosos presentes foram procurados por um investigador de polícia de New Orleans. O inspetor Legrasse contou que desbaratara um culto satânico praticado nos pântanos da Luisiana. Quando os policiais efetuaram a prisão dos satanistas, encontraram uma estatueta que representava uma criatura grotesca, com cabeça de lula e corpo de dragão. A base estava coberta de sinais que pareciam hieróglifos, razão pela qual o inspetor Legrasse queria consultar os especialistas do congresso de arqueologia. Nenhum deles, porém, sabia ler aqueles sinais ou estimar a proveniência ou a idade da estatueta, embora certamente fosse antiquíssima. Apenas o antropólogo William Webb se lembrou de ter visto algo parecido quando, numa viagem de pesquisa à Groenlândia, encontrara alguns esquimós que praticavam um ritual especialmente repugnante no qual repetiam o mesmo mantra entoado pelos adoradores do culto na Luisiana: Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn.

O Inspetor Legrasse conseguira saber algo sobre o culto dos pântanos graças às declarações de um dos adoradores presos.  O velho Castro contava que, num passado remotíssimo, chegou à Terra uma civilização vinda das estrelas. Eram os Grandes Anciães que fundaram a cidade de R’lyeh na qual Cthulhu era o sumo sacerdote.  Esses Grandes Anciães estavam agora dormindo e sua cidade jazia no fundo do oceano, mas Cthulhu continuava a comunicar-se com os homens através de sonhos. No momento certo, ele voltaria e os homens passariam a viver além do bem e do mal, matando livremente e subvertendo todas as regras. A frase recitada pelos seus adoradores dizia: “Na sua casa em R’lyeh, Cthulhu morto espera dormindo.”

A leitura das anotações do Professor Angell convenceu o narrador de que estava diante de um assunto digno de investigação científica, que lhe daria notoriedade no campo da antropologia.  Disposto a fazer alguma grande descoberta, o narrador entrevistou Henry Wilcox e visitou o Inspetor Legrasse, mas os resultados não avançaram muito. Quando já desistia da pesquisa, sua atenção foi casualmente atraída pelo fragmento de um jornal de Sidney que estampava a fotografia de uma estatueta grotesca acompanhada da notícia de que, num iate à deriva no Pacífico, haviam sido recolhidos um marinheiro norueguês semi-demente e o ídolo de um monstro com cabeça de lula.

Movido pela curiosidade, o narrador viajou para a Austrália, mas lá soube que o marinheiro Gustav Johansen, já recuperado, voltara para a Noruega. O narrador seguiu para Oslo. A esposa de Johansen lhe comunicou que o marido morrera recentemente, mas permitiu que o narrador levasse consigo as anotações privadas que ele fizera. Como o narrador descobriu, tratava-se de um depoimento muito mais esclarecedor do que as vagas informações fornecidas ao almirantado de Sidney.

Segundo Gustav Johansen, seu barco foi atacado pela tripulação enlouquecida de um iate malaio. Atingido, o barco de Johansen afundou, mas seus companheiros conseguiram tomar o iate e mataram todos os tripulantes numa luta violenta. Sob o comando de Johansen, a viagem prosseguiu até avistarem uma ilha não mapeada, que parecia ter emergido do leito do mar em consequência de um terremoto recente. A ilha estava coberta de construções antigas cuja geometria desafiava a compreensão humana. Ao desembarcarem, os marinheiros foram surpreendidos por um monstro gigantesco, de consistência gelatinosa e cheiro insuportável. Era Cthulhu que saía de seu sono.  Os companheiros de Johansen morreram, mas ele conseguiu voltar ao iate. Ao ver que era perseguido, investiu o barco contra a criatura com cabeça de lula. O monstro gelatinoso explodiu, mas seus restos se juntavam novamente à medida que o barco se afastava. Johansen foi resgatado. A ilha não foi vista novamente: aparentemente descera mais uma vez ao leito do oceano.

O narrador lamenta profundamente ter tomado conhecimento de todo esse horror. Muitos daqueles que souberam da existência de Cthulhu morreram. Talvez é o que lhe tenha acontecido, uma vez que, no começo do conto, os leitores são informados que a narração foi achada entre os papeis do falecido Francis Wayland Thurston, de Boston.


1.
Certos leitores desejam que os livros lhes forneçam uma mitologia cujos elementos canônicos possam ser enumerados com facilidade. Para tais leitores, o prazer da leitura está no reconhecimento e reafirmação dos elementos canônicos. Como as crianças que não se cansam de ouvir certas histórias que já sabem de cor, esses leitores jamais se cansam das aventuras de Ulisses, das desventuras do Quixote, das deduções de Sherlock Holmes, das andanças de Leopold Bloom. A matéria narrada constitui um mito que deve ser rememorado e comemorado, isto é, recordado e partilhado como se tivesse a mesma densidade das realidades vivas. A capacidade de experimentar essa “densidade” passa a ser vista como marca de pertencimento a um grupo. Os joycianos que celebram o Bloom’s Day ou os admiradores de Conan Doyle que procuram a casa (fictícia) de Holmes na Baker Street celebram seus mitos, ao mesmo tempo em que comemoram seu pertencimento a um grupo eleito.  Essa demanda de mitos comemoráveis dentro de uma comunidade restrita explica o entusiasmo duradouro pelos super-heróis, pelas sagas espaciais de Star Wars e Star Trek ou por certas narrativas fantásticas, como The Call of Cthulhu.

Esse modo de leitura é pautado pelo dever de fidelidade ao relato e pela intolerância quanto aos desvios. Como a criança que quer ouvir pela enésima vez a história dos três porquinhos, o fã não aceita versões diferentes. Para ele, há um relato canônico cuja verdade deve ser preservada da contaminação de elementos apócrifos. A leitura de fã é irrepreensível do ponto de vista do cuidado filológico: levantamento de fontes, cotejo das versões, escolha da versão canônica. O resultado desse labor são as grandes compilações enciclopédicas como a Memory Alpha que são objeto de consulta, estudo e deleite dos fãs de Star Trek.

A limitação mais óbvia da leitura de fã é o seu dogmatismo e sua timidez interpretativa. Trata-se de uma leitura que se limita a percorrer os marcos reconhecíveis para... confirmar mais uma vez sua posição no cânone. Não se trata da investigação de um terreno novo, mas da ronda rotineira por ruas bem conhecidas. Os fãs são os obsessivos-compulsivos do mundo da leitura: eles trilham circuitos fechados. Por isso, acredito que o molde de minha leitura não será do seu agrado.



2.

O conto de Lovecraft é dividido em três partes. Na primeira parte, tomamos conhecimento do conteúdo das anotações do Professor Angell a propósito dos sonhos estranhos de Henry Wilcox; na segunda, acompanhamos as descobertas do Inspetor Legrasse sobre o culto dos pântanos; na terceira, finalmente temos o depoimento de uma testemunha ocular do próprio monstro. 

Na esteira da pesquisa iniciada pelo Professor Angell, o trabalho do narrador consiste em coletar indícios e correlacioná-los para remontar à causa que produziu os efeitos a que os indícios se referem. É preciso vasculhar uma série desconexa de declarações e eventos em busca de evidências que permitam ordenar os acontecimentos. A cada etapa, o perímetro geográfico da investigação se amplia, as evidências se reforçam pela acumulação e o seu sentido se torna cada vez mais claro.

No entanto, o próprio narrador jamais vê ou ouve o monstro, nem sequer em sonhos. Todo o conhecimento que ele adquire vem da massa de evidências fornecidas pela investigação ou pelas experiências diretas de outrem: as anotações do Professor Angell, os sonhos de Henry Wilcox, o depoimento que o velho Castro fez ao Inspetor Legrasse, os rituais que Legrasse e o Webb presenciaram, as estatuetas guardadas pela polícia de New Orleans e pelo almirantado de Sidney, uma massa de notícias de jornal sobre eventos disparatados em vários lugares do mundo e, principalmente, o testemunho escrito de Gustav Johansen – o único que viu Cthulhu.

Tudo o que o narrador tem é Ciência, isto é, conhecimento obtido de maneira metódica e racional, por oposição à intuição do artista Wilcox, ao saber oral e “folclórico” do velho Castro, ao testemunho direto, mas emocionalmente comprometido de Johansen. 

Que o narrador tenha sido capaz de juntar as peças e vislumbrar o conjunto mostra bem o otimismo confiante de Lovecraft no poder da ciência e no seu progresso linear e acumulativo. Embora o conto tenha bastante blábláblá a respeito do caráter indevassável dos mistérios do universo (full of the one primal mystery through which not even thought can pass), o narrador não tem muita dificuldade em descobrir o que está acontecendo.  A realidade está ao alcance da ciência: ela consiste num conjunto de fatos que precisam ser correlacionados: embora não saibamos que figura o quebra-cabeça vai formar, é garantido que todas as peças vão se encaixar num quadro completo. Os fatos podem ser intrigantes tomados isoladamente, o conjunto deles pode causar horror, mas o sucesso do método científico que permite enxergar a totalidade não é questionado. 

A ciência é o caminho para a Verdade, mas, no conto, a Verdade é que a ordem humana é apenas uma crosta frágil e recente que vai ser varrida por forças primordiais muito mais poderosas, que podem reemergir de seu torpor a qualquer momento. É nisso que está o chamado “horror cósmico” do conto. A Verdade que é descoberta pela ciência se torna fonte de desespero e de desejo de anulação do conhecimento adquirido. Por sorte, pensa o narrador, a humanidade não é dotada para a ciência, isto é, a maioria das pessoas não tem capacidade de fazer correlações de modo metódico e racional. Por sorte também, as ciências ainda não foram unificadas para fornecer uma visão totalizante do universo. A ignorância é uma benção que poupa o mundo do desespero.

The most merciful thing in the world, I think, is the inability of the human mind to correlate all its contents. We live on a placid island of ignorance in the midst of black seas of infinity, and it was not meant that we should voyage far. The sciences, each straining in its own direction, have hitherto harmed us little; but some day the piecing together of dissociated knowledge will open up such terrifying vistas of reality, and of our frightful position therein, that we shall either go mad from the revelation or flee from the deadly light into the peace and safety of a new dark age.

O narrador experimenta de modo agudo a contradição entre a capacidade da ciência em decifrar a realidade e a impotência e ignorância geral da humanidade em relação à catástrofe iminente e inevitável. Portanto, no plano das considerações filosóficas, o conto retomaria alguns temas pascalianos: a vertigem do infinito e a condição do homem como caniço pensante, que tenta entender o universo no momento mesmo em que o universo o destrói.

Tenho a impressão, porém, de que a discussão sobre a ciência e a ignorância humana encobre questões bem mais interessantes no conto de Lovecraft.


3.

Uma das infelicidades quanto às interpretações do The Call of Cthulhu é que, tão logo afastamo-nos dos fãs empolgados com o ciclo mitológico dos Grandes Anciães  e com a posição exata da cidade de R’lyeh, somos conduzidos a certas leituras acadêmicas muito preocupadas em render tributo póstumo ao gênio de de H.P. Lovecraft. Esse tipo de leitura, praticado por S.T. Joshi, o premiado biógrafo do autor, tende a buscar a chave para a compreensão crítica dos contos de Lovecraft nos comentários que ele fez em sua vasta correspondência e em certos aspectos de sua existência. Um dos problemas dessa abordagem é aceitar a suposição de que as obras resultem das intenções que o artista expressou, muitas vezes a posteriori, através de cartas, de depoimentos, de referências autobiográficas. A obra criada seria iluminada pelo conhecimento da mente do criador. 

Estudiosos como Joshi compartilham a ideia bastante otimista de que podemos ter acesso à realidade (e assim entender o sentido das obras) através do acúmulo de evidências sobre o autor.  Para Joshi, as declarações de Lovecraft são esclarecedoras por si mesmas. Por exemplo, no ensaio “Notes on Writing Weird Fiction” (1933), Lovecraft afirma:

I choose weird stories because they suit my inclinations best – one of my strongest and most persistent wishes being to achieve momentarily, the illusion of some strange suspension or violation of the galling limitations of time, space, and natural law, which for ever imprison us and frustrate our curiosity about the infinite cosmic spaces beyond the radius of our sight and analysis. 

S.T. Joshi comenta:

It is important not to be led astray here. Lovecraft is not denouncing his materialism by seeking an imaginative escape from it; indeed, it is precisely because he believes that “time, space, and natural law” are uniform, and that the human mind cannot escape defeat or confound them, that he seeks an imaginative escape from them. (The Call of Cthulhu and other weird stories, Introduction, Penguin Books)

Joshi toma as declarações de Lovecraft pelo seu valor de face, como se elas se bastassem. Daí a recorrência de frases como “this statement is sufficient to account for the outré aspect of many of his alien creatures...” (idem, ibidem).

Aparentemente jamais passou pela cabeça de Joshi que uma obra literária ou plástica é mais a forma consolidada de um conjunto de tensões mudas do que a realização de uma intenção explicitável. 



4.

Numa carta a Samuel Loveman, Lovecraft explica que o elemento imaginativo de seus contos não deveria estar em contradição com o conhecimento científico; ele deveria ser uma espécie de “suplemento” imaginativo nas franjas da ciência:

The time has come when the normal revolt against time, space, and matter must assume a form of a form not overtly incompatible with what is known of reality – when it must be gratified by images forming supplements rather than contradictions of the visible and mensurable universe. And what, if not a form of non-supernatural cosmic art, is to pacify this sense of revolt – as well as gratify the cognate sense of curiosity? (citado por Joshi)

O que é interessante na declaração de Lovecraft não é tanto o respeito demonstrado pela ciência e a consequente necessidade de não contradizê-la. O que é interessante é a ideia de que a ficção fantástica deve fornecer gratificação para a “revolta normal contra o tempo, o espaço e a matéria” de uma forma que não seja “abertamente” anti-científica. 

Lovecraft está falando de usar a literatura para obter gratificações veladas para um sentimento de revolta contra a estrutura mesma da realidade (espaço, tempo e matéria), revolta que ele julga ser compartilhada por muitos seres humanos, a ponto de qualificá-la como “normal”. 

A imagem usual de H.P. Lovecraft é a de um amador curioso da astronomia, com um interesse enciclopédico pelos resultados das ciências.  Em The Call of Cthulhu, essa imagem parece explicar o discurso científico convencionalmente materialista e cético do narrador. No entanto, é difícil conciliar esse Lovecraft cientificista com o homem que escreveu: 

The most poignant sensations of my existence are those of 1896, when I discovered the Hellenic world, and of 1902, when I discovered the myriad suns and worlds of infinite space. Sometimes I think the latter event the greater, for the grandeur of that growing conception of the universe still excites a thrill hardly to be duplicated (citado por Joshi).

A astronomia aí não é a explicação físico-matemática do movimento dos corpos celestes, mas a contemplação estarrecida do infinito. Trata-se menos de espírito científico do que de um obscuro sentimento religioso. O que é a “revolta normal contra o tempo, o espaço e a matéria” senão o desejo de superar a finitude de nossa condição em busca de uma fusão com o infinito? Essa demanda de transcendência é justamente uma das características da religião e só pode ser expressa de maneira mítica ou alusiva.

Acredito que a popularidade de um conto como The Call of Cthulhu venha justamente do fato de que o cientificismo e as breves digressões filosóficas do narrador não conseguem encobrir o fundo mítico-religioso de origem cristã que permeia a narrativa.

O conto é literalmente um “apocalipse”, isto é, uma revelação. O narrador é um relutante São João em Patmos que, aos poucos, vai tomando notícia do horror à medida que os selos são rompidos (o primeiro era o fecho da caixa onde o Professor Angell guardou suas anotações). Há terremotos, aberrações, visões perturbadoras. Um  adorador anuncia que a besta vai inaugurar uma era além do bem e do mal.  E vemos a besta emergir das profundezas do mar.

Cthulhu é apenas outro nome do velho Satã, o adversário primordial mergulhado nas profundezas. No conto, várias expressões associam os seus adoradores ao satanismo ("a dark cult totally unknown to them, and infinitely more diabolic than even the blackest of the African voodoo circles";  “a curious form of devil-worship”; “diabolist Esquimaux”). Todo desespero do narrador vem da descoberta desse Mal ao qual nenhum Deus bondoso e justo poderá impor limites.  Este seria o verdadeiro “horror cósmico” em Lovecraft: Deus está morto, mas o Diabo não. 

I have looked upon all that the universe has to hold of horror, and even the skies of spring and the flowers of summer must ever afterward be poison to me…Loathsomeness waits and dreams in the deep, and decay spreads over the tottering cities of men.

A transcendência subsiste, mas de forma degradada, decaída,  como horror, perversidade e iminência de uma catástrofe. Assim é que Lovecraft gratifica de maneira velada uma fé religiosa que não tem mais objeto: imaginando um horror que habitaria clandestinamente as franjas da realidade conhecida. Um horror cuja descoberta gera o desejo de esquecimento, de ignorância e até de morte.

Death would be a boon if only it could blot out the memories.



5.

The Call of Cthulhu, apesar de sua pletora de referências geográficas e dos seus infinitos éons, não vai muito além da consciência bastante provinciana do narrador. Que se observe a maneira como ele descreve o jovem artista Henry Wilcox:

The first half of the principal manuscript told a very peculiar tale. It appears that on March 1st, 1925, a thin, dark young man of neurotic and excited aspect had called upon Professor Angell bearing the singular clay bas-relief, which was then exceedingly damp and fresh. His card bore the name of Henry Anthony Wilcox, and my uncle had recognised him as the youngest son of an excellent family slightly known to him, who had latterly been studying sculpture at the Rhode Island School of Design and living alone at the Fleur-de-Lys Building near that institution. Wilcox was a precocious youth of known genius but great eccentricity, and had from childhood excited attention through the strange stories and odd dreams he was in the habit of relating. He called himself “psychically hypersensitive”, but the staid folk of the ancient commercial city dismissed him as merely “queer”. Never mingling much with his kind, he had dropped gradually from social visibility, and was now known only to a small group of aesthetes from other towns. Even the Providence Art Club, anxious to preserve its conservatism, had found him quite hopeless.

Um rapaz de “excelente família” (com tudo o que isso significa numa pequena cidade), “precoce”, “excêntrico”, “hiper-sensível”, é desprezado pela academia local como caso perdido e tido como "esquisito" pela sociedade. Em outras palavras, trata-se da crônica da proscrição de um jovem supostamente homossexual, expressa em termos que ainda são correntes em certos meios sociais  conservadores.

Como conciliar o “horror cósmico” do conto com a escala provinciana e mesquinha de trechos como este? 

E o que fazer da aversão do narrador às vanguardas modernistas?

for although the vagaries of cubism and futurism are many and wild, they do not often reproduce that cryptic regularity which lurks in prehistoric writing.

though its impressionistic execution forbade a very clear idea of its nature.

Without knowing what futurism is like, Johansen achieved something very close to it when he spoke of the city.

E o preconceito racial do narrador?

the prisoners all proved to be men of a very low, mixed-blooded, and mentally aberrant type. Most were seamen, and a sprinkling of negroes and mulattoes, largely West Indians or Brava Portuguese from the Cape Verde Islands, gave a colouring of voodooism to the heterogeneous cult.

E a ambição acadêmica candidamente confessada?

for I felt sure that I was on the track of a very real, very secret, and very ancient religion whose discovery would make me an anthropologist of note. 

E a obstinação materialista com que descarta conclusões importantes que contrariam seu dogma?

My attitude was still one of absolute materialism, as I wish it still were, and I discounted with almost inexplicable perversity the coincidence of the dream notes and odd cuttings collected by Professor Angell.

Nem mesmo a revelação da existência de uma força primeva e devastadora que anulará a ordem humana é capaz de fazer o narrador deixar de lado suas preocupações com a crônica mundana da pequena Providence e seus preconceitos de raça e de classe social. 

Se, de um lado, a escala cósmica do conto é uma forma decaída de transcendência (o Mal Supremo não tem a contrapartida do Bem Supremo), também é uma capa que apenas recobre o provincianismo bastante tacanho do narrador. As referências enciclopédicas, a amplitude geográfica dos eventos e dos deslocamentos do narrador em nada alteram a sua condição de homem branco, professor em Boston, com opiniões conservadoras a respeito da arte e da sociedade. 

Mesmo a literatura de horror cósmico depende da existência desses solteirões com recursos para viajar a qualquer lugar e a qualquer momento. A possibilidade de experimentar o horror latente, o horror por antecipação, o horror como destino entrevisto constitui o sinal do privilégio social dos homens que dispõem de ócio. Por isso, a escala cósmica da literatura de Lovecraft não chega a ultrapassar as barreiras dos conflitos de classe e de raça na Nova Inglaterra da década de 1920 que marcam a consciência do narrador:

The professor had been stricken whilst returning from the Newport boat; falling suddenly, as witnesses said, after having been jostled by a nautical-looking negro who had come from one of the queer dark courts on the precipitous hillside which formed a short cut from the waterfront to the deceased’s home in Williams Street.

Quem deseja a volta de Cthulhu? O lumpesinato, os párias, os negros, os mestiços, os esquimós mais repulsivos, os malaios: a escória que se reúne em torno de um ídolo grotesco para cantar uma cacofonia incompreensível. Todos aqueles que querem subverter a boa ordem mantida pelas excelentes famílias brancas de Providence. 



6.
Lovecraft disse que os contos fantásticos deveriam constituir um suplemento e não uma contradição da realidade conhecida. Conforme indiquei, isso não significa que a literatura de Lovecraft se desenvolva às expensas da ciência (há apenas um cientificismo verbal nas suas narrativas e um bocado de divertissement enciclopédico). Acredito que seria mais correto dizer que a ficção fantástica de Lovecraft procura suprir uma necessidade de transcendência, pelo que se aproxima mais da religião e do mito do que da ciência.

Todavia, do ponto de vista estilístico, a prosa de Lovecraft funciona de fato como suplemento da realidade.  O escritor trata de qualificar o real, suplementando-o através de adjetivos. Em The Call of Cthulhu, a adjetivação é o recurso estilístico básico que suporta e suscita a experiência do horror.

Ugly roots and malignant hanging nooses of Spanish moss beset them, and now and then a pile of dank stones or fragment of a rotting wall intensified by its hint of morbid habitation a depression which every malformed tree and every fungous islet combined to create.

O recurso da adjetivação permite revestir a realidade com uma roupagem estranha, a qual - supostamente - não deveria alterar o aspecto "mensurável" das coisas. Mas, ao invés de reforçar o caráter real do mundo, o horror cósmico se torna a des-realização mais extrema: nada do que acontece ganha substância, tudo é apenas latência; as coisas se esgotam em seus adjetivos; os acontecimentos se dissolvem deixando apenas traços tênues. Os hieróglifos continuaram indecifrados e as estatuetas, cuidadosamente guardadas. Os sonhos vieram e se foram. A cidade de R’lyeh emergiu e depois submergiu. Quem viu Cthulhu ou soube da sua existência morreu. O mundo descrito por Lovecraft parece ter a mesma consistência gelatinosa do corpo de Cthulhu. 

Talvez o aspecto mais negativo da literatura de Lovecraft seja a sua incapacidade de experimentar a imanência do real. É isso que o leva a buscar o “suplemento” de uma transcendência abastardada, na forma de um maniqueísmo mutilado, para gratificar a “revolta normal contra o tempo, o espaço e a matéria”.

Lovecraft imaginava uma espécie de Providência negativa, ao mesmo tempo em que se apegava a todos os provincianos de sua Providence natal. 

Uma não existiria sem a outra.