terça-feira, 25 de junho de 2013

A claraboia e o holofote #10





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Seção I – Burgueses e Proletários


5.  A luz fanada do holofote e a resiliência do capital

Uma dos grandes desafios teóricos que Marx enfrentou foi  integrar as análises precisas de processos presentes em esquemas de mudança histórica de longo prazo, cujas regularidades tendenciais permitissem antecipar o desenrolar dos acontecimentos. Muitas vezes, Marx não resistiu à tentação de dirigir um holofote para o futuro: “Mas quando o manto imperial de Napoleão cair finalmente sobre os ombros de Luís Bonaparte, a estátua de bronze de Napoleão ruirá do topo da Coluna Vendôme.” Os leitores de Marx conhecem de cor a passagem final do 18 Brumário e congratulam o autor pela profecia realizada. O problema para nós, herdeiros de Marx, é que a estátua de bronze derrubada em 1871 foi recolocada em 1875 e lá permanece até hoje. É isso que precisa ser explicado. A agudeza dialética na exposição das contradições (uma verdadeira claraboia que ilumina o presente) não parece muito acertada quando se trata da previsão do futuro. Sua ânsia de dar conta da totalidade do processo é, no mais das vezes, apenas uma ambição que esbarra na inelutável parcialidade da experiência histórica. 

No capítulo anterior, vimos um dos momentos felizes do Manifesto. Passo agora a uma das suas passagens mais problemáticas.


******


Vimos, portanto, que os meios de produção e de troca, sobre cuja base se ergue a burguesia, foram gerados no seio da sociedade feudal. Numa certa etapa do desenvolvimento desses meios de produção e de troca, as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava – a organização feudal da agricultura e da manufatura, em suma, o regime feudal da propriedade – deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno desenvolvimento. Tolhiam a produção em lugar de impulsioná-la. Transformaram-se em outros tantos grilhões quer era preciso despedaçar; e foram despedaçados.

Em seu lugar, surgiu a livre concorrência, com uma organização social e política apropriada, com a supremacia econômica e política da classe burguesa.

Assistimos hoje a um processo semelhante. A sociedade burguesa, com suas relações de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção, contra as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio.  Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só uma grande massa de produtos fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas. Uma epidemia, que em qualquer outra época teria parecido um paradoxo, desaba sobre a sociedade – a epidemia da superprodução. A sociedade vê-se subitamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea; como se a fome ou uma guerra de extermínio houvessem lhe cortado todos os meios de subsistência; o comércio e a indústria parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade possui civilização em excesso, meios de subsistência em excesso, indústria em excesso, comércio em excesso. As forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações burguesas de propriedade; pelo contrário, tornaram-se poderosas demais para estas condições, passam a ser tolhidas por elas; e assim que se libertam desses entraves, lançam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa. O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio. E de que maneira consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva isso? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evitá-las.

As armas que a burguesia utilizou para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia. 

******

Depois de haver composto um retrato hiperbólico das relações sociais e econômicas da sociedade dominada pelo capital - um mundo em que nada é sagrado e tudo o que é sólido desmancha no ar -, Marx integra a sua descrição da moderna sociedade burguesa no quadro do desenvolvimento histórico de longo prazo: a sociedade burguesa surge quando o desenvolvimento das forças produtivas, no seio do mundo feudal, rompe os limites impostos pelas relações de propriedade vigentes. 

Disso parece resultar uma regularidade do processo histórico: toda a vez que as forças produtivas atingem seu desenvolvimento pleno, elas passam a ser tolhidas pelas relações de propriedade que promoveram esse desenvolvimento.  

Se há uma contradição interna no sistema de produção e troca, essa contradição se localiza nas relações de propriedade, isto é, nas condições de realização do sistema. As relações de propriedade devem estimular as forças produtivas, mas, ao mesmo tempo, elas as regulam e limitam.  Quanto às forças produtivas, elas podem ser despertadas, estimuladas, multiplicadas, mas jamais são portadoras de contradições fatais.  As forças produtivas são sempre inocentes, como o devir nietzschiano ou a natureza naturante de Spinoza (como notou Toni Negri em A Anomalia Selvagem). Por isso mesmo, trata-se de um dos conceitos marxianos mais vagos e menos estudados.   

Marx alega que o modo de produção dominado pelo capital estimulou o desenvolvimento de forças produtivas tão colossais que elas já não podem mais ser controladas pelas relações de propriedade vigentes e, por isso, tendem a romper essas condições de regulação.  A revolta das forças produtivas contra as relações burguesas de propriedade aparece na forma de crises que destroem uma parte das mercadorias e das forças produtivas, aniquilando momentaneamente o comércio e a indústria. 

Embora discutível no plano da teoria econômica, a metáfora da “epidemia de superprodução” ao menos coloca em evidência que as crises econômicas não resultam da insuficiência das forças produtivas, mas das condições que as regulam, isto é, das relações burguesas de propriedade. Por isso, os meios de que a burguesia dispõe para enfrentar essas crises (destruição das forças produtivas e das mercadorias, conquista de novos mercados e exploração mais intensa dos mercados existentes) não resolvem a contradição entre as forças produtivas e as relações de propriedade. Pelo contrário, as soluções dadas para as “epidemias de superprodução” preparam novas crises e diminuem a capacidade de lidar com elas.

Assim, as forças produtivas que a burguesia suscitou para romper os limites do mundo feudal atingiram tal desenvolvimento que ameaçam romper os limites do mundo burguês. 

Minha questão é: isso é verdade? 



******

Digressão sobre os limites do capitalismo

É sabido que Marx e Engels erraram na sua estimativa dos limites do mundo burguês e precipitaram-se na declaração de que os coveiros do capital já estavam a postos. A verdade é que esses coveiros já foram enterrados há muito tempo, enquanto o capital continua sendo o íncubo dos povos.  Isso não quer dizer que o domínio do capital não tenha limites identificáveis. Tais limites são condicionados pela maneira como o capitalismo se apropria da riqueza. O sociólogo alemão Elmar Altvater identificou quatro formas de apropriação capitalista: valorização primária, produção de mais-valia absoluta, produção de mais-valia relativa e neo-imperialismo.

(1) A valorização primária consiste na apropriação de um território com vistas a transformar a natureza ou a força de trabalho em mercadorias num sistema de trocas monetárias. “No decorrer do século XIX, as últimas manchas brancas do mapa-múndi são colonizadas e incluídas nos impérios dominados pelas nações europeias. Mas a expansão no espaço não está concluída quando as áreas continentais são ocupadas e submetidas à valorização primária. São explorados, submetidos à valorização primária e transformados em mercadoria comercial e dinheiro o fundo dos mares, os continentes ártico e antártico, o mundo dos glaciares das cordilheiras, as florestas tropicais úmidas, o espaço ao redor da Terra, os nanoespaços moleculares dos genes. A valorização primária é um processo de transformação de bens (quase sempre públicos, isto é, acessíveis a todos) em mercadorias privadas, um processo duplo de desapropriação e apropriação privada.” (Elmar Altvater, O Fim do Capitalismo como o conhecemos, capítulo 3)

(2) A mais-valia absoluta é apropriada pelo aumento da jornada de trabalho, a intensificação do trabalho e o arrocho salarial, até o limite da sobrevivência do trabalhador.

(3) A produção de mais-valia relativa acontece mediante o aumento de produtividade pela racionalização do tempo de trabalho, como a que foi proposta por Taylor e tornou-se a base do fordismo (produção industrial em série, alto índice de produtividade e aumentos salariais que promovem consumo).  A aliança entre o fordismo e o Estado de Bem-estar Social constitui o quadro do capitalismo dos “Trinta anos gloriosos” do pós-guerra no países desenvolvido. 

“Depois da Segunda Guerra Mundial e sob as condições da concorrência sistêmica com o campo socialista, o projeto de um intervencionismo estatal de inspiração keynesiana passa a ser o fundamento da construção de um capitalismo nos termos do Estado de Bem-estar Social, que pode agora, à diferença de épocas históricas anteriores, confiar na ampla aceitação por parte da população. Nessa fase, o aumento da produtividade é elevado. Parte de seus benefícios é repassada aos trabalhadores ou conquistada por eles e suas organizações em conflitos salariais e trabalhistas. A lógica dessas lutas é em parte monetária – quer dizer, trata-se em primeira linha de obter aumentos salariais. Aumentos monetários dos rendimentos salariais são o veículo que permite aos trabalhadores a participação nas gratificações da sociedade e ao mesmo tempo fornecem a condição para que o conjunto das mercadorias coincida com uma demanda com poder aquisitivo suficiente. Mas essa lógica é complementada por exigências não monetárias de melhoria das condições de trabalho, de uma redução da jornada de trabalho, de mais possibilidades de participação em decisões tomadas nos planos da empresa e acima da empresa (cogestão)” (idem, ibidem).

(4) A apropriação neo-imperialista começa “quando as relações entre o fordismo e o Estado de Bem-estar social começam a se dissolver e a concorrência nos mercados globais de commodities se tornou mais acirrada. A liberalização dos mercados financeiros globais também produziu consequências radicais para o jogo da distribuição. Os juros reais e os rendimentos a serem gerados a partir das aplicações de capitais são forçados para cima. A produção de mais-valia relativa na indústria fordista não basta para realizar os rendimentos exigidos nos mercados financeiros globais.” 

A apropriação de mais-valia relativa, então, é complementada pelo deslocamento das fábricas para países pobres onde seja possível extrair mais-valia absoluta, que é transferida para os grandes centros da economia capitalista como remessas de lucro.


No entanto, a quarta forma da apropriação não é uma recaída nos primórdios do capitalismo, mas um método extremamente moderno. A produção de mais-valia absoluta pode ser aumentada com métodos técnicos sofisticados, mecanismos sociais e econômicos e intervenções políticas. (...) Essas inovações foram desenvolvidas com o fim de obter acesso ao excedente do trabalho social em qualquer lugar do mundo. Assim, por exemplo, os aplicadores de capital em países industrializados pensam apenas no rendimento que podem obter, não no processo de produção desse rendimento (...) Os truques de pilhagem entram cada vez mais no campo visual dos consultores financeiros e dos aplicadores” (idem, ibidem).




******

Ainda a digressão


Segundo Altvater, as crises mais graves dentro do sistema capitalista são as de transformação, em que uma forma de apropriação é substituída por outra (idem, capítulo 5). Isso aconteceu, por exemplo, quando a aliança entre fordismo e Estado de Bem-estar social entrou em crise na década de 1970 nos países desenvolvidos.  

As crises de transformação mostram os limites de certas formas de apropriação de riqueza, mas parecem não colocar em risco o próprio capitalismo. Todavia, Altvater argumenta que o capitalismo fordista reforçou a dependência mundial pelos combustíveis fósseis, que foi ainda mais agravada pelo atual capitalismo financeiro "virtual". 


A confluência do capitalismo com um regime energético fossilista data do início da Revolução Industrial e coloca limites à utopia de expansão infinita do capital:


- limites geológicos (a disponibilidade de petróleo no planeta);

- limites geopolíticos (o custo da disputa pelas reservas);


- limites econômicos (o custo de extração);  

- limites ecológicos (o custo dos prejuízos causados pelas emissões de gases  e pela destruição ambiental). 

Então é assim que o capitalismo vai morrer? Ele vai se tornar um fóssil como aqueles que explorou desde os primórdios da Revolução Industrial? Ou o capitalismo pode, em mais uma metamorfose, entrar em confluência com o uso de recursos renováveis em formas ainda não conhecidas de apropriação?  

Altvater julga que isso é pouco provável: “As energias renováveis são mais lentas que as energias fósseis (...) Também é mais difícil usar as energias renováveis independentemente do lugar da sua geração, pois a logística de transporte não pode ser organizada com tanta facilidade como no caso das fontes fósseis de energia. Por conseguinte, as energias renováveis exigem estruturas descentralizadas de geração e consumo de energia” (idem, capítulo 8).

Trata-se de uma afirmação bastante aceitável dada a nossa compreensão atual das energias renováveis, mas não é difícil imaginar que essa afirmação será ultrapassada por descobertas cientificas e desenvolvimentos tecnológicos futuros, cujas consequências sociais e históricas são necessariamente imprevisíveis. 

As notícias sobre a morte próxima do modelo fossilista parecem um bocado exageradas, especialmente quando sabemos que muitos países usam ou pretendem usar suas reservas de petróleo justamente para custear políticas de reforço dos direitos sociais em nível local ou nacional, reforçando o modelo fossilista em nível global, com todas as tensões que a dependência do "excremento do diabo" podem causar nas próximas décadas.

É o fossilismo com face humana, disposto a redimir os males do capital. Não se trata nesse caso de um conto da carochinha, mas de uma má piada dialética. 


A presidente da República, Dilma Rousseff, pediu nesta segunda-feira (24) que o Congresso Nacional acelere a aprovação do PL (Projeto de Lei) 5500/13, que destina 100% dos recursos dos royalties do petróleo para a educação do Brasil. A pedido da presidente, o texto tramita em caráter de "urgência constitucional" na Casa.

Para viabilizar a proposta e agilizar todo o processo que legaliza o pedido, a comissão especial que analisa o projeto marcou uma audiência pública para esta terça-feira (25) a partir das 14h30.

A manobra foi feita três dias depois de Dilma ir à TV, na última sexta-feira (21), quando prometeu que lutaria para reverter o dinheiro do petróleo para  a educação. O pedido também reflete a onda de protestos que se espalhou pelo País nas últimas duas semanas, cujas reivindicações vão do fim da corrupção até a melhoria dos serviços de saúde e educação.


******


De volta ao Manifesto


Marx nunca hesitou em lançar mão do fantástico ou do sobrenatural. Minha decisão de começar este folhetim filosófico veio de duas imagens célebres do Manifesto: o espectro que ronda a Europa e o feiticeiro  que perdeu o controle sobre as forças que invocou.


Normalmente essas imagens são lidas com complacência, como ilustrações excêntricas e curiosas que revelam um pouco do legado visionário e noturno que Marx herdou do Romantismo alemão. Em todo caso, as imagens são lidas como se fossem meros floreios verbais que podem ser retirados do texto sem maiores danos à compreensão.


O que estou propondo nessas páginas é que as imagens, metáforas e símiles de Marx devem ser levados a sério, como acontece como qualquer outro escritor. Essas imagens estruturam formas de pensar distintas daquelas que seguem a cadeia de razões e argumentos. 


Por isso, não me parece que a imagem do feitiço que se volta contra o feiticeiro seja apenas uma ilustração condescendente para facilitar   a compreensão das crises capitalistas. Acredito que as imagens fantásticas de Marx formam um modelo subjacente que interfere na maneira pela qual o processo social é pensado em termos teóricos e conceptuais. Este modelo subjacente, que eu associo à estrutura dos contos da carochinha, tem um potencial didático poderoso, mas sempre corre o risco de pender para a moral ingênua, na qual fatalmente os feiticeiros malévolos encontram sua nêmesis e os grilhões são partidos.




******


Mais sobre esse assunto nos próximos capítulos.










terça-feira, 18 de junho de 2013

A claraboia e o holofote #9






Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Seção I – Burgueses e Proletários

4.  A  explosão da granada reconstituída a partir dos estilhaços

O que vemos do capital são os estilhaços, não a própria granada, tampouco a dinâmica da explosão. 

Embora o marxismo afirme ter desbravado o continente da História, uma historiografia marxista dificilmente poderia aspirar àquela tranquila pesquisa de arquivo que constitui a rotina dos historiadores profissionais. A ciência da História marxista só pode ser uma arqueologia da modernidade, que reconstitui o processo explosivo/implosivo do capital a partir da interpretação das suas ruínas e de alguns vestígios nos documentos históricos. O capital é um processo, não uma coisa (David Harvey, Condição Pós-Moderna, capítulo 23). Isso torna extremamente complexa a tarefa de rastrear suas formas cambiantes. Apenas as modalidades marxistas vulgares (certamente as mais numerosas), acreditam ver o próprio capital, o capital como coisa, exatamente como certas pessoas veem fantasmas em casas velhas, ou como  Hegel via o Espírito do Mundo andando a cavalo em Jena. 

Dada a urgência revolucionária de 1848, Marx tinha que recorrer a uma transposição didática para dar conta em poucas páginas de um processo de meio milênio. Tal compressão temporal só poderia ser bem-sucedida se a narração resultante se fixasse na mente dos leitores pela sua própria aparência de naturalidade. Ora, a forma narrativa primordial é a do conto da carochinha, com sua estrutura tripartite: equilíbrio – desequilíbrio – equilíbrio final.  O propósito do Manifesto exigia uma comunicação rápida que poderia ser obtida por essa forma simples e arcaica, mas sumamente conhecida e aceita pela sua aparente naturalidade.

Na primeira seção do Manifesto, a história moderna se torna um conto da carochinha em que a burguesia é o personagem que destrói o equilíbrio do mundo feudal e, depois de muitas estripulias, é destruída pelo herói que traz o novo equilíbrio. Porquanto é dotada de poderes imensos para tudo criar e tudo destruir, a burguesia aparece como um personagem fantástico. 

Acredito ter mostrado como as páginas iniciais da primeira seção do Manifesto são vagas, imprecisas e até errôneas do ponto de vista do conhecimento histórico. Nada ali poderia servir de método historiográfico. Muitas vezes, as afirmações se atropelam numa precipitação de dissertação estudantil. Todavia, nada disso elimina a forte impressão que causa a narração do turbilhão mundial desencadeado pela burguesia. Marx se esmera literariamente na descrição do desequilíbrio, razão pela qual não chega a ser estranho que Marshall Berman tenha visto em Marx um artista modernista mais do que um analista da modernidade.

Todavia, o esforço literário de Marx e a audácia da sua transposição didática somente tem sentido se colocarem o leitor na trilha do processo tão elusivo do capital. Nos momentos em que isso acontece, o Manifesto ganha uma ondulação dialética que se aproxima da exposição “científica” d’O Capital.

Hoje eu quero comentar uma desses momentos felizes do Manifesto.


******


Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte.

Pela exploração do mercado mundial, a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela roubou da indústria a sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a ser destruídas diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas – indústrias que já não empregam matérias-primas nacionais, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem  não somente no próprio país mas em todas as partes do mundo. Ao invés das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas demandas, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e de climas os mais diversos. No lugar do antigo isolamento de regiões e nações auto-suficientes, desenvolvem-se um intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se patrimônio comum. A estreiteza e a unilateralidade nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das numerosas literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal.

Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga à capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de ruína total, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrangendo-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.

A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou os grandes centros urbanos, aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma grande parte da população da idiotia da vida rural. Do mesmo modo que subordinou o campo à cidade, os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados, subordina os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente.

A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária dessas transformações foi a centralização política. Províncias independentes, ligadas apenas por débeis laços federativos, possuindo interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras independentes foram reunidas em uma só nação, com um só governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária.

A burguesia, em seu domínio de classe de apenas um século, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química na indústria e na agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização de rios, populações inteiras brotando da terra como por encanto – que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?


******


A beleza e a concisão do argumento de Marx serão especialmente apreciadas por aqueles que, como eu, submeteram-se à disciplina da ordem das razões no serviço militar de Martial Guéroult e não resistem ao velho hábito de expor o movimento lógico de um texto clássico.

A exposição de Marx, à maneira de uma pequena sonata, organiza-se a partir do desenvolvimento de um tema principal, ao qual se contrapõe um tema secundário numa relação tensa que é solucionada na coda.

(A) Primeiro tema: a burguesia (que doravante chamaremos pelo seu apelativo próprio: o capital) instala-se por toda parte.

- O capital precisa ampliar incessantemente o espaço do mercado (por razões que o Marx de 1848 ainda não era capaz de explicar).

- Essa ampliação se dá pela criação de novas demandas (portanto, de novas mercadorias) e pela conquista de novos territórios fornecedores de matérias-primas e de consumidores.

- As cadeias que ligam a produção ao consumo se tornam cada vez mais longas: consumidores distantes consomem produtos feitos a partir de matérias-primas que provém de muitos lugares do globo.

- Essas cadeias produtivas longas criam sistemas de intercâmbio e de interdependência, no plano material e intelectual.

- As cadeias produtivas curtas e locais são rompidas: as indústrias nacionais são destruídas em toda parte. 

- Nenhuma região pode aspirar à autossuficiência. Todos os povos são obrigados a  participarem do mercado sob pena de perecerem diante dos canhões (reais e metafóricos) que acompanham as mercadorias de preços baixos.  

- O mundo se torna mercado mundial, isto é, o território que em que todos os povos se organizam segundo a lógica do capital (a essência do processo civilizatório eurocêntrico e burguês). 


(B) Segundo tema: a expansão do mercado recria novos sistemas hierárquicos.

- O movimento do capital produz concentração de riqueza (Marx ainda não era capaz de dar uma explicação disso na época em que escreveu o Manifesto).

- A concentração de riqueza acarreta aglomeração populacional e centralização do poder (uma vez que o Estado moderno é apenas o comitê executivo da burguesia, segundo a fórmula célebre e muito contestável do próprio Manifesto).

- Na escala local, o campo se submete à cidade. A diversidade e a dispersão regionais, bem como a autossuficiência local, são suprimidas pela configuração do Estado-nação: uma só nação, com um só governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária.

- Na escala mundial, o Oriente agrário se submete ao Ocidente industrial. Os povos bárbaros são submetidos aos povos civilizados (ou seja, orientados pela lógica do capital).


(C) Coda: Éloge de Saint-Simon

- O movimento do capital moderniza o planeta, através da aceleração do desenvolvimento tecnológico e científico da indústria. 

- Com isso, o movimento do capital revela a força produtiva do trabalho social.

- Através do movimento do capital, o trabalho social emerge como força social (que se colocará em oposição ao capital).


******


Não vemos o capital. Ele é um processo, não uma coisa. Podemos, no entanto, rastrear seu movimento pelos seus efeitos. Um deles é a territorialização. O capital se inscreve no tempo histórico e no espaço geográfico. O texto de Marx é uma exposição atilada e sucinta do modo pelo qual o capital delimita seu território na medida em que age sobre ele.

A territorialização do capital resulta de um movimento duplo, combinado e contraditório: de um lado, está a tendência centrífuga de expansão em busca de novos mercados; de outro lado, está a tendência centrípeta de acumulação de riqueza. Ao mesmo tempo que os mercados se expandem, as riquezas de acumulam nas mãos de certos grupos, de certas cidades, de certos países. 

Na sua territorialização, o capital busca mercados cada vez maiores, suprimindo a autossuficiência local e deslocando permanentemente suas fronteiras.  Mas as riquezas se acumulam e formam centros de poder que definem seus limites em relação a outros centros de poder.  O capital suprime as indústrias nacionais, mas cria novas nações.

Do ponto de vista geográfico, há uma solidariedade entre o deslocamento das fronteiras do capital e o estabelecimento de limites entre os Estados-nações. Justamente porque o capital não pode se expandir, sem ao mesmo tempo concentrar riqueza, a própria acumulação impõe barreiras ao fluxo desenfreado do capital. O livre comércio é um ideal impossível de ser realizado porque o movimento do capital recria, atrás de si, novos limites e novos centros administrativos que impõem regras para evitar que o capital acumulado se liquefaça. Cada agente do capital quer livre espaço para suas novas conquistas e exige proteção contra os outros agentes do capital. Por isso, o capital não pode prescindir de Estado. 

Da mesma maneira, o movimento do capital instaura, dentro e fora dos Estados-nações, uma oposição entre as regiões centrais (aquelas próximas aos núcleos de poder e de riqueza e, portanto, regulamentadas) e as regiões periféricas (as áreas em que o capital tem livre curso de conquista). Os monumentos de Bruxelas eram indissociáveis da pulsação do coração das trevas no Congo do rei Leopoldo II. Os exemplos recentes são ainda mais numerosos, mas não menos escabrosos, como sabem os bolivianos explorados nas sweatshops de São Paulo ou os operários da Apple chinesa.

O fato é que o capital constrói as capitais (tendência centrípeta) pelo mesmo processo em que que produz as periferias (tendência centrífuga). Nas primeiras, elevam-se os centros administrativos e financeiros: espaços hierárquicos e normativos, para os quais a arquitetura descobre sempre formas renovadas da imponência imperial. Nas bordas do sistema, oficinas imundas, trabalho infantil, condição servil, pobreza e violência cotidiana em quarteirões urbanos degradados ou em espaços ocupados de maneira precária como favelas ou cortiços. 

Para cada Brasília, várias candangolândias. Para cada Alphaville, várias omegavilles. 


******

Meu amigo Murilo,

Que Marx e Engels tenham sido capazes, há mais de 150 anos, de enunciar com tanta clareza e economia verbal um movimento cujos efeitos são tão notórios para nós, que vivemos a globalização neoliberal, é sinal do poder de uma imaginação fantasiosa alimentada pela observação da realidade social e movida por um impulso teórico poderoso que, naquele momento de urgência histórica, só poderia ganhar a forma de conto da carochinha. 

Definitivamente é um prazer ler o conto da carochinha do Manifesto Comunista neste momento em que pessoas jovens, como minha filha Beatriz, e adultos cansados, como eu e minha mulher, sentimos que é preciso romper a gaiola das “verdades objetivas” ditas por governantes desorientados, economistas fajutos e jornalistas inescrupulosos e desavergonhados. 

A festa de ontem foi boa.

Um grande abraço,

P.S. - A  obra que aparece na minha foto é da Ludmila. Chama-se justamente "Gaiola".


Na semana que vem, a continuação do meu folhetim filosófico.


domingo, 9 de junho de 2013

A claraboia e o holofote #8





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Excurso n.3 -


Contos da carochinha tem má reputação. Eles sempre são capturados em redes de oposição nas quais formam o par negativo da realidade, do fato, do esclarecimento, da visão adulta, do senso trágico da realidade, da ciência; enfim, da verdade. O conto da carochinha aparece sempre como fantasia, ficção, mistificação, infantilismo, visão ingênua do mundo, teoria primitiva: em suma, como mentira.

No entanto, numerosas vezes, o apelo à realidade e aos fatos contra a fantasia e a ficção foi feito pelas forças da reação e da opressão (não importa de qual lado do alinhamento político). Dentro de uma certa tradição marxista (aquela mais intimamente ligada ao bolchevismo), a dualidade realidade/fantasia ganhou a forma de oposição entre o “socialismo científico” (no singular) e os “socialismos utópicos” (no plural), lição ensinada em todas as cartilhas e catecismos comunistas. Neste caso, a questão nunca foi a cientificidade do socialismo, mas a imposição de um consenso definido pela cúpula da Internacional para combater as tendências críticas, desqualificando-as como dissidentes, renegadas ou utópicas. Lênin e seus lacaios fizeram muito para ampliar o léxico de insultos da esquerda contra a própria esquerda.

No quadro da 3ª Internacional, “socialismo científico” era simplesmente o “socialismo real”. A conotação sombria e inapelável que o termo ganhou tornou muito fácil a tarefa dos apologistas do mercado e dos próceres da reação: bastava argumentar que o chamado “socialismo real” era toda a realidade do socialismo, e que os outros socialismos podiam ser descartados por serem simplesmente utópicos, como a própria Academia de Moscou reconhecia...

No entanto, mesmo uma leitura distraída da terceira seção do Manifesto mostra que os alvos principais de Marx e Engels não eram os utópicos, mas sim o que eles chamavam de “socialismos reacionários” e “socialismos conservadores ou burgueses”. O Manifesto se mostra extremamente compreensivo quanto ao valor do “socialismo e comunismo crítico-utópicos”:

Os sistemas socialistas e comunistas propriamente ditos, os de Saint-Simon, Fourier, Owen etc., aparecem no primeiro período da luta entre o proletariado e a burguesia (...)

Os fundadores desses sistemas compreendem bem o antagonismo das classes, assim como a ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhe seja peculiar.

Como o desenvolvimento dos antagonismos de classes acompanha o desenvolvimento da indústria, não distinguem tampouco as condições materiais da emancipação do proletariado e põem-se à procura de uma ciência social, de leis sociais que permitam criar essas condições.

Substituem a atividade social por sua própria imaginação pessoal; as condições históricas da emancipação por condições fantásticas; a organização gradual e espontânea do proletariado em classe por uma organização da sociedade pré-fabricada por eles. 

(...)

Essa descrição fantástica da sociedade futura, feita numa época em que o proletariado ainda pouco desenvolvido encara sua própria posição de um modo fantástico, corresponde às primeiras aspirações instintivas dos operários a uma completa transformação da sociedade.

Mas as obras socialistas e comunistas encerram também elementos críticos. Atacam todas as bases da sociedade existente. Por isso forneceram em seu tempo materiais de grande valor para esclarecer os operários.

(...)

A importância do socialismo e do comunismo crítico-utópicos está na razão inversa do seu desenvolvimento histórico. À medida que a luta de classes se acentua e toma formas mais definidas, a fantástica pressa de abstrair-se dela, essa fantástica oposição que lhe é feita, perde qualquer valor prático, qualquer justificação teórica. Por isso, se em muitos aspectos os fundadores desses sistemas foram revolucionários, seus discípulos formam sempre seitas reacionárias. Aferram-se às velhas concepções de seus mestres apesar do desenvolvimento histórico contínuo do proletariado.
(Manifesto do Partido Comunista, seção III – Literatura Socialista e Comunista)



O socialismo e comunismo crítico-utópicos são apresentados como produto de um estágio em que o antagonismo de classes começava a tornar-se evidente. Mas justamente por causa do estado incipiente da luta de classes, Saint-Simon, Fourier e Owen procuravam uma ciência social capaz de criar condições para a emancipação do proletariado. 

Deveríamos então dizer que é o socialismo crítico-utópico que pretende ser científico. É ele que quer ser uma ciência da sociedade, capaz de organizá-la e abolir os antagonismos e o sofrimento da classe operária. O comunismo de Marx e Engels no Manifesto não precisava de uma ciência social, mas apenas de uma permanente vigilância das condições históricas. A superioridade da visão de Marx e Engels em relação a Saint-Simon e Fourier era, do ponto de vista dos próprios autores do Manifesto, apenas o resultado de viverem num momento supostamente mais maduro do antagonismo de classes e de consciência do proletariado. O comunismo de Marx não é uma ciência (isto é, um conjunto de teorias sobre a sociedade), mas sim o resultado da observação das forças em ação no momento. 

Os autores do Manifesto tratam de mostrar que, precisamente pelo fato de que as condições sociais estavam pouco desenvolvidas, a ciência social proposta pelos fundadores dos sistemas crítico-utópicos era fantasiosa. Não há uma ciência da sociedade (portanto da História) que possa estar além do próprio horizonte histórico em que se encontra. Tudo o que vai além da práxis concreta e presente ganha necessariamente a forma de fantasia e misticismo (eis o conteúdo da oitava tese contra Feuerbach). Não há holofotes que realmente iluminem o futuro, há apenas claraboias que clareiam o presente. Entretanto, o Manifesto reconhece o valor crítico da ciência social/fantasia de Saint-Simon, Fourier e Owen. É o elemento crítico que as torna cruciais para o desenvolvimento e esclarecimento do proletariado, mas esse elemento crítico é indissociável do caráter fantástico em que essas teorias se apresentam. Elas projetam “cientificamente” sociedades futuras em que os sofrimentos do presente sejam abolidos e é essa fantasia que dinamiza o movimento de emancipação.

Assim, o próprio Manifesto do Partido Comunista desfaz a oposição entre “socialismo científico” e “socialismo utópico”. A pretensão de ciência é meramente fantasia, mas a fantasia tem um núcleo de verdade como crítica que apreende, em negativo, o estágio atual do movimento histórico. Com isso, a simples oposição entre realidade e fantasia se desfaz na sua imbricação mútua.

Eu acredito que essa leitura que Marx e Engels faziam de Saint-Simon, Fourier e Owen pode hoje ser dirigida ao próprio Manifesto.

A forma narrativa da primeira seção (Burgueses e Proletários),  ao transformar a burguesia em personagem fantástica de um conto da carochinha, falseia a história do ponto de vista factual, mas tem vantagens didáticas para a compreensão das transformações da Idade Moderna.

A primeira vantagem está na própria economia expositiva: ao invés da curva fractal da história social e econômica moderna na sua factualidade, Marx nos oferece uma esquemática linha reta, que apreende de um só golpe todo o movimento histórico. Trata-se, portanto, de uma transposição didática especialmente audaciosa, porquanto abusa das generalizações e das personificações de forças abstratas (sobre a teoria da transposição didática, fiz alguns comentários em Três pensamentos no café da manhã).

O procedimento de Manifesto, porém, tem outra vantagem didática. Despojando a burguesia (isto é, o capital) das circunstâncias históricas específicas, os nexos lógicos do capital se evidenciam e a potência que lhe é própria se desnuda. O capital é uma força histórica, mas os efeitos que ele produz obliteram a compreensão plena da sua lógica. Ao invés da granada, vemos apenas a desordem e os danos de seus estilhaços.  A história moderna - no plano da sua factualidade - obscurece a efetividade do capital - no plano de seu movimento de longo prazo.  Por isso, sempre será possível para qualquer historiador não-marxista contestar a causalidade do capital. O Manifesto não resiste a uma leitura que exija respeito aos padrões historiográficos que se constituíram no século XIX e XX, em grande parte como resistência ao marxismo. Mas o conto da carochinha narrado no Manifesto permite vislumbrar – pela sua potência imaginativa – o painel mundial e a escala multissecular da ação da burguesia (isto é, do capital). Somente um lance audacioso de imaginação poderia romper com a visão paroquial oferecida pelas historiografias nacionais, diplomáticas ou políticas da época. 



No próximo capítulo deste folhetim, quero mostrar um exemplo dos ganhos interpretativos do Manifesto, ao abandonar a factualidade pontual em proveito das linhas gerais do conto da carochinha. 





domingo, 2 de junho de 2013

A claraboia e o holofote #7





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Excurso n.2 -

A burguesia do Manifesto é um personagem fantástico de conto da carochinha. Como tal, seu papel é instaurar o movimento que transforma o equilíbrio inicial e conduz ao equilíbrio final da narrativa.  Ela suprime o velho equilíbrio do mundo antigo e feudal, relativamente moroso e estável, em direção ao novo equilíbrio da sociedade sem classes. No entanto, ela mesma não pode ser um fator de equilíbrio, mas apenas de movimento. Sua lei é a suprema liberdade de ação e a mobilidade infinita: essa liberdade é um universal abstrato perpetuamente reivindicado pela burguesia, mas que só pode ser efetivado na forma de livre comércio, já que o único nexo que a burguesia conhece é o monetário, ao qual ela reduz todos os demais. O dinheiro é a aparência concreta dessa liberdade abstrata. Liberdade burguesa significa, em última instância, a liberdade de tudo comprar, uma vez que todas as coisas e todos os seres encontram sua equivalência no dinheiro. Somente quando tudo é equivalente (ao dinheiro) e nada é sagrado, é possível extrair as forças latentes do trabalho social e ordená-las segundo configurações que jamais tinham sido imaginadas por aqueles que ainda estavam presos pelos laços do sentimentalismo, do patriarcalismo e dos preconceitos religiosos. Mas essas configurações são sempre provisórias: eis aí o caráter fáustico da burguesia, motor imóvel que dinamiza a história moderna, mas que permanece inexplicado ao longo do Manifesto:

A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais.
(...)
A burguesia, em seu domínio de classe de apenas um século, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química na indústria e na agricultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização de rios, populações inteiras brotando da terra como por encanto – que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?

No Manifesto Comunista, a função narrativa da burguesia como personagem fantástico é  acelerar esse processo (A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário) a tal ponto que ela é engolida pelo turbilhão que ela mesmo gerou:

A sociedade burguesa, com suas relações de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou.

Isso abrirá caminho para a classe que enterrará a burguesia e abolirá a própria divisão das classes sociais. 


*******


Afirmar que a burguesia do Manifesto Comunista é um personagem fantástico não é o mesmo que dizer que a análise de Marx é uma fraude intelectual. O fantástico - como categoria literária - não é verdadeiro nem falso, exatamente porque se coloca para além dessa dicotomia:

Assim se explica a impressão que deixa a literatura fantástica: por um lado, ela representa a quintessência da literatura, na medida em que o questionamento do limite entre real e irreal, próprio de toda literatura, é seu centro explícito. 
(Tzvetan Todorov, “A Narrativa Fantástica” in As Estruturas Narrativas)

O personagem fantástico tem o poder de romper com o equilíbrio enrijecido que se manifesta como autoevidência do real.  Ao violar a realidade estabelecida e destruir sua autoevidência,  introduz a perigo, a ameaça, a subversão, a transformação. Ele é a negatividade plasmada na forma de um agente perturbador, ou seja, é a própria figura do negativo. Como mostrei na minha série de ensaios sobre as figuras do negativo, o Horla, Cthulhu e Bartleby rompem a tranquilidade burguesa complacente dos narradores, expondo a margem do abismo junto da qual os narradores caminhavam em seu sonambulismo.

A estrutura básica de toda narrativa fantástica, que é o conto da carochinha, promete um  novo equilíbrio que, em si mesmo, é fantástico, mas revela – como negativo da figura – as insuficiências do mundo vivido (por isso, a moral ingênua do conto da carochinha se opõe ao trágico da realidade). Isso é reconhecido pelo próprio Marx, falando dos socialistas e comunistas crítico-utópicos:

Essa descrição fantástica da sociedade futura, feita numa época em que o proletariado ainda pouco desenvolvido encara sua própria posição de um modo fantástico, corresponde às primeiras aspirações instintivas dos operários a uma completa transformação da sociedade.
Mas as obras socialistas e comunistas também encerram elementos críticos. Atacam todas as bases da sociedade existente. Por isso forneceram em seu tempo materiais de grande valor para esclarecer os operários. Suas proposições positivas sobre a sociedade futura, tais como a supressão do contraste entre a cidade e o campo, a abolição da família, do lucro privado e do trabalho assalariado, a proclamação da harmonia social e a transformação do Estado em simples administrador da produção – todas essas propostas apenas exprimem o desaparecimento do antagonismo entre as classes, antagonismo que mal começava e que esses autores somente conheceram em suas formas imprecisas. Assim, essas proposições tem ainda um sentido puramente utópico.
(Manifesto do Partido Comunista, seção – Literatura socialista e comunista)



*******



O preço que os marxistas não estão dispostos a pagar é o reconhecimento de que certas obras de Marx, entre as quais o Manifesto do Partido Comunista, não representam uma conquista da ciência materialista da História, mas sim exercícios de literatura fantástica, de imenso poder crítico.

Tenho a impressão de que muitas leituras ruins do Manifesto resultam da desconsideração da estrutura narrativa da primeira seção da obra. Esses equívocos podem ser, grosso modo, associadas a três posições de leitura, que ignoram ou recusam o caráter crítico-fantástico de certas construções de Marx:

a. Literal-cientificismo 

Trata-se da posição dos leitores que exigem que os textos de Marx sejam portadores literais da cientificidade reivindicada pelo autor.  Esses leitores se dividem entre os que consideram que as obras de Marx, em todo ou em parte, estão desatualizadas e oferecem pouca contribuição científica para a análise social hoje, ou aqueles que afirmam um valor de atualidade permanente para Marx. São os marxistas que gostariam de dizer que Marx é eterno, mas tem vergonha de dar bandeira de que são apenas uns crentes...

No conjunto da obra de Marx, o 18 Brumário de Luis Bonaparte ocupa um lugar especial, juntamente com O Capital e o Manifesto do Partido Comunista, este escrito em colaboração com Friedrich Engels. Nessas três obras encontram-se as contribuições fundamentais do marxismo, particularmente quanto à interpretação do capitalismo. Além disso, aí a dialética acha-se aplicada em seus desenvolvimentos mais originais. É nelas que a dialética marxista se revela em suas acepções realmente importantes, isto é, com teoria do conhecimento e como modo de ser do real.
(Octavio Ianni, Apresentação a 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, Paz e Terra)


b. Positivismo das lutas sociais

É a posição dos leitores interessados em extrair elementos críticos que possam orientar as atuais lutas por transformações sociais. Para esses marxistas, o processo social é movido não pela luta de classes (que responde por uma clivagem social profunda), mas sim pelas lutas de classe, entendidas como queda de braço entre as reivindicações dos oprimidos e as exigências das forças da ordem e do capital. Para eles, a dialética se reduz às trocas de porradas entre operário e proprietário. Cada vitória dos oprimidos instaura uma conquista social, que deve ser mantida contra os perigos de revanche dos opressores. Para esse tipo de marxista, as contradições internas só existem nos opressores, não nos oprimidos. Tal posição é positivista porque o processo histórico é interpretado como enumeração de fatos que se sucedem, por exemplo, os resultados das greves e das mobilizações sindicais em termos de conquistas ou retrocessos. A História é reduzida à emancipação da classe operária, que por sua vez é reduzida ao body count dos que caíram nas lutas passadas, para que seus corpos servissem de alicerce às conquistas gloriosas da legislação trabalhista.

Um exemplo desse tipo de positivismo das lutas sociais é a posição do sociólogo norte-americano James Petras 

Com o recuo da organização, da consciência de classe e o desaparecimento do espectro do comunismo, o capital voltou à sua “maneira normal” de maximizar a exploração e o lucro.
(James Petras, O Manifesto Comunistas: qual sua relevância hoje? In Manifesto Comunista, org. Osvaldo Coggiola, Boitempo, 1998):

Petras considera que o espectro do comunismo é um fato positivo, cujo desaparecimento minou as conquistas sociais que deram forma ao Estado de Bem-Estar, forma provisória e relativamente benigna de capitalismo, que agora pôde retornar ao seu curso normal e maléfico. Que Petras considere que o espectro do comunismo fosse uma força efetiva e favorável aos trabalhadores na luta de classes é sinal de uma leitura bastante equivocada do Manifesto, o qual se opõe, como vimos “ao conto da carochinha do fantasma do comunismo”. Mas, na visão de Petras, esse fantasma pesava efetivamente na balança da luta de classes.  

Petras parece aceitar aquela análise tradicional de que muitas conquistas da classe operária resultaram do medo de uma revolução comunista por parte das potências ocidentais, medo que colocava as organizações trabalhadores numa posição de força nas negociações com o patronato. No entanto, seria o caso também de lembrar que o medo de uma revolução comunista foi o motivo alegado para muitos movimentos de repressão das reivindicações sociais e políticas dos trabalhadores. O fantasma do comunismo justificou muita violência contra a classe trabalhadora, mas isso não impede que Petras sinta nostalgia do espectro.

É com essa perspectiva que Petras critica a primeira seção do Manifesto. Em linhas gerais, seu argumento é: se a descrição de Marx é correta, a burguesia é revolucionária e moldou o mundo à sua imagem e semelhança. Todavia, os burgueses são contra-revolucionários e o mundo de hoje não parece com a burguesia, porque há cada vez mais miséria e precarização do trabalho. Logo, a descrição de Marx é factualmente errônea e, além do mais enganosa. Um marxista interessado na vitória dos oprimidos nas lutas sociais não pode se guiar pelas análises do Manifesto:

A ruptura profunda entre a análise de Marx e Engels da expansão capitalista e os efeitos políticos e sociais dela é de vital importância para o momento atual. Os processos econômicos que eles discutem estão apresentando efeitos opostos: reação aguda, atomização do trabalho, estímulo à guerra étnica e corrosão de vastas faixas de produção econômica de toda a América Latina, da África, da ex-URSS e de outros países.
(...)

Assim, a centralidade da “tradição”, da cultura e da comunidade na definição da formação da consciência de classe é muito anterior à celebração ampla e acrítica de Marx e Engels do potencial revolucionário do desenvolvimento das forças produtivas. (...)
A globalização burguesa não criou um “mundo à imagem e semelhança da burguesia”, como os autores argumentaram. 

(...) Ao contrário do que era para Marx e Engels, hoje os capitalistas não “arregimentam os homens que manejarão as armas” que desferirão o golpe mortal ao capitalismo. Eles criam milhões de trabalhadores temporários, instáveis, amedrontados, amarrados ao nexo monetário. Para tornar-se um marxista no sentido de perceber os objetivos do Manifesto, deve-se transcender as falsas afirmações de Marx e Engels sobre o “papel revolucionário” da burguesia. 


c. Culturalismo

Em All that is solid melts into air, Marshall Berman considera que a descrição da burguesia no Manifesto Comunista é a chave para uma compreensão marxista da modernidade cultural marcada pelo niilismo:

Thus, any imaginable mode of human conduct becomes morally permissible the moment it becomes economically possible, becomes "valuable"; anything goes if it pays. This is what modern nihilism is all about. Dostoevsky, Nietzsche and their twentieth-century successors will ascribe this predicament to science, rationalism, the death of God. Marx would say that its basis is far more concrete and mundane: it is build into the banal everyday workings of the bourgeois economic order - an order that equates our human value with our market price, no more, no less, and that forces us to expand ourselves in pushing our price up as far as we can make it go.
(Marshall Berman, All that is solid melts into air, capítulo 2 , seção 3)

Não deixa de ser interessante a perspectiva de que o niilismo que preocupava os modernistas é um epifenômeno das relações do capital e, que por trás de toda a baboseira sobre a morte de Deus, o que está em ação são os negócios do JP Morgan. Saber golpear a lengalenga abstrata do idealismo é um dos méritos inesquecíveis de Marx (um exemplo famoso é a fórmula cômico-crítica “liberdade, igualdade e Bentham”).

Todavia, não é essa a interpretação que Marshall Berman vai desenvolver. Ele leva demasiado a sério o niilismo dos modernos e consegue ler no Manifesto a promessa de que a vitória do proletariado libertará o mundo dos horrores do niilismo burguês. 

Finally, our skeptical doubts (…) must lead us to question one of the primary promises in Marx's work; the promise that communism, while upholding and actually deepening the freedoms that capitalism has brought us, will free us from the horrors of bourgeois nihilism. 
(op. cit. cap 2, seção 3)

O niilismo, na visão de Berman, é o horizonte inescapável da humanidade. O advento de uma sociedade comunista, ao invés de suprimir as relações sociais que instauram o mundo niilista burguês, suscitaria talvez formas de niilismo ainda mais deletérias e ilimitadas. 

If bourgeois society is really the maelstrom Marx thinks it is, how can he expect all its currents to flow only one way, toward peaceful harmony and integration? Even if a triumphant communism should someday flow through the floodgates the free trade opens up, who knows what dreadful impulses might flow in along it, or in its wake, or impacted inside? It is easy to imagine how a society committed to the free development of each and all might develop its own distinctive varieties of nihilism. Indeed, a communist nihilism might turn out to be far more explosive and disintegrative than its bourgeois precursors - though also more daring and original - because, while capitalism cuts the infinite possibilities of modern life with the limites of the bottom line, Marx's communism might launch the liberated self into immense unknown space with no limits at all.
(op. cit. cap 2, seção 3)

Talvez seja o caso de dizer que o niilismo de Berman tem propriedades espectrais que já foram bastante exploradas nos ensaios que escrevi sobre as figuras do negativo (ubiquidade da ameaça, indeterminação histórico-geográfica, insuperabilidade do medo). Que Berman tenha encontrado apoio para a sua leitura da modernidade na descrição da burguesia no Manifesto é sinal de que ele também leu como realidade histórica a verdade ficcional do personagem fantástico. 

Ele está realmente com medo de que Cthulhu se levante do fundo do Oceano Pacífico.