terça-feira, 24 de setembro de 2013

Il moto non è diverso dalla stasi #9





O díptico de R O M A


Freud


Embora fascinado por Roma, Sigmund Freud não visitou a cidade em nenhuma das cinco viagens que fez à Itália entre 1895 e 1898.

“Durante minha última viagem italiana, que me levou além do lago Trasímeno, depois de ter avistado o Tibre e, com relutância, haver recuado a uns oitenta quilômetros de Roma, eu descobri de maneira cabal o quanto meu anelo pela Cidade Eterna foi reforçado pelas impressões de minha infância. Eu acabara de planejar uma viagem a Nápoles via Roma para o ano seguinte quando me ocorreu esta frase, que eu devo ter lido num dos nossos clássicos alemães: “A questão é qual dos dois, depois de ter resolvido chegar a Roma, andou de um lado a outro do quarto com mais impaciência: o diretor-assistente Winckelmann ou o grande general Aníbal.” Eu mesmo andei no passo de Aníbal. Como ele, eu estava destinado a nunca avistar Roma, também ele foi para a Campania quando todos o esperavam em Roma. Aníbal, com o qual eu tinha essa semelhança, fora meu herói preferido durante os anos do Ginásio; como tantos garotos de minha idade, minhas simpatias nas guerras púnicas iam para os cartagineses, não para os romanos. E mais: quando eu finalmente me dei conta das consequências de pertencer a uma raça estranha, e ter sido forçado pelo anti-semitismo de meus colegas a fincar o pé, a figura do comandante semita assumiu proporções ainda maiores na minha imaginação.  Aníbal e Roma simbolizavam, aos meus olhos juvenis, a luta entre a tenacidade judaica e a organização da igreja católica.  O significado que o movimento anti-semita assumiu desde então para a nossa vida emocional ajudou a fixar os pensamentos e impressões daqueles dias distantes. Assim, o desejo de ir a Roma se tornara, em meus sonhos, um disfarce e um símbolo para numerosos desejos ternamente acalentados, que só poderiam ser satisfeitos se eu trabalhasse com a tenacidade e a teimosia do general cartaginês, muito embora a realização por vezes me parecesse tão remota quanto o duradouro desejo de Anibal de entrar em Roma.”
(The Interpretation of Dreams in The Major Works of Sigmund Freud, Britannica Great Books, p. 218)  

A história dessa inibição - finalmente vencida-, da intensa paixão arqueológica que manteve vida afora, assim como do desconforto que sempre lhe causou a Roma cristã deu substância e sustento a muitos estudos daquela disciplina curiosa que é a Freudologia, para a qual todo e qualquer incidente da vida de Freud tem um valor transcendental para a constituição da Psicanálise (Renato Mezan, “Seis autores em busca de um personagem” in A Vingança da Esfinge). Por isso, não vou me deter em teses curiosas, como a de Paul C. Vitz a respeito do cristianismo inconsciente de Freud, incutido talvez pela babá tcheca que lhe deu os rudimentos de catecismo (Sigmund Freud’s Christian Unconscious). 
Uma explicação de melhor cepa é a que vem da história social da cultura praticada por Carl Schorske ("Política e Parricídio em A Interpretação dos Sonhos de Freud" in Viena fin-de-siècle )

Monumento a Vittorio Emanuele visto da Coluna de Trajano

Na sua juventude, Freud estava dividido entre duas vocações: a política e a ciência. Seu herói era Aníbal, o grande general semita, que jurara ao pai derrotar o poder de Roma. A admiração de Freud se estendia às figuras modernas de Aníbal, como Garibaldi, que defendera – em 1849 - a efêmera república romana de Mazzini, desafiando o poder do Papa e dos Habsburgos. No entanto, as simpatias liberais-radicais de Freud foram duramente confrontadas, no final do século, com a crise do sistema representativo liberal e a ascensão política de notórios anti-semitas, como Karl Lueger, que se tornara prefeito de Viena, a despeito da oposição do próprio Imperador.

Freud se concentrou, então, na atividade científica, esperando fazer alguma descoberta fundamental que lhe desse reconhecimento. A paixão política, assim reprimida, passou a manifestar-se nos sonhos que Freud analisou no magnum opus que então elaborava -  A Interpretação dos Sonhos -, sonhos nos quais ele era acossado pelo fantasma do pai, que morrera em 1896, e pelo destino de Aníbal – fadado a nunca pisar em Roma. 

Schorske sustenta que Freud conseguiu romper o seu compromisso com o juramento de Aníbal ao dar uma interpretação despolitizada ao conteúdo manifesto de seus sonhos, conduzindo-os ao plano não-histórico da vivência infantil do complexo de Édipo. O político, que atua na transformação do presente, cedeu lugar ao cientista, que escava as profundezas em busca do remoto e do universal. 

Por isso, quando Freud finalmente entrou em Roma em 1901, aos 45 anos de idade, ele não chegou como Aníbal, o conquistador, mas como Winckelmann, o erudito arqueólogo que recalcou suas convicções protestantes para ocupar, junto ao Vaticano, um cargo que lhe permitisse entregar-se à sua paixão.  

Édipo e a Esfinge   Museu do Vaticano   foto: Ludmila Ciuffi

Nesse ponto, o leitor esperaria a conclusão de que, não menos do que a Paris de Henrique IV, Roma bem valia uma missa, mas no Inconsciente os pensamentos jamais tem bordas tão cortantes quanto na trama dialética de compensações imaginada por Carl Schorske. A história, na verdade, não acaba com uma vitória de Freud sobre o seu complexo de Aníbal e a consequente superação da fobia romana. Pelos anos seguintes, Roma continuou servindo de máscara e símbolo para as ansiedades e desejos de Freud. De outro como, como entender as visitas diárias à igreja de San Pietro in Vincoli, nos anos de 1912 e 1913, para observar e fazer medições minuciosas do Moisés esculpido por Michelangelo para a tumba de Júlio II ? 

Moisés, de Michelangelo Igreja de San Pietro in Vincoli

A obsessão resultou num curioso opúsculo, O Moisés de Michelangelo, editado em 1914, no qual Freud dava razão ao estudioso que afirmou que “o grande segredo do efeito produzido pelo Moisés está no contraste artístico entre o fogo interior e a calma exterior de sua atitude.” (The Moses of Michelangelo, The Standard Edition, vol. XIII, p. 221). Na interpretação de Freud, o Moisés de Michelangelo observa a idolatria do povo hebreu, que adora o bezerro de ouro, mas contém a sua fúria no momento de quebrar as Tábuas da Lei:

“O Moisés que reconstituímos não levantará num salto nem lançará as Tábuas longe de si. O que vemos diante de nós não é o começo de uma ação violenta, mas os vestígios de um movimento que já havia começado. Em seu primeiro acesso de fúria, Moises desejava entrar em ação, surgir de repente, vingar-se e esquecer as Tábuas, mas ele sobrepujou a tentação, e permanecerá sentado e calmo, na sua ira congelada e na sua dor que se mistura ao desprezo. Ele não irá jogar fora as Tábuas para que eles se quebrem nas pedras, pois é justamente em respeito a elas que ele controlou sua raiva. Para preservá-las, é que ele manteve controlada sua paixão. Ao ceder à sua raiva e indignação, ele negligenciara as Tábuas e retirou a mão que as sustentava. Elas começaram a deslizar e estavam sujeitas ao perigo de quebrarem. Isso o trouxe de volta a si. Ele se lembrou de sua missão e em nome dela renunciou a ser indulgente com seus sentimentos. Sua mão retornou e salvou as Tábuas sem apoio antes que elas caíssem no chão. É nessa atitude que Michelangelo o retratou como o guardião da tumba.” (idem, p. 229-230)

Michelangelo teria logrado apresentar, de maneira dramática e grandiosa, a liderança de Moisés, mas ao preço de  contradizer o texto bíblico (Êxodo, 32, 19: “Quando Moisés voltou ao acampamento, viu o bezerro e a dança, então sua ira ardeu e ele arremessou as tábuas da lei, quebrando-as em pedaços aos pés da montanha”). 

Como acontece muitas vezes, o intérprete também dá azo à interpretação. Desde muito cedo, percebeu-se que o opúsculo revelava pouco sobre a obra de arte em questão, mas era bastante eloquente sobre o estado de ânimo de Freud naquele momento em que enfrentava os dolorosos sinais de afastamento de Jung, o sucessor ungido. Como líder do movimento psicanalítico, Freud se via como aquele Moisés que, diante da apostasia do povo eleito, se detém ante o passo extremo, e preserva as Tábuas da Lei tão preciosas.

Podemos supor, por outro lado, que Freud jamais resolveu a tensão entre Aníbal, o semita, e Roma, como símbolo da organização católica.  Na visão de Freud, Moisés, o hebreu, reteve as Tábuas da Lei e lhes foi fiel, ao passo que Michelangelo, o católico, jogou às favas o texto bíblico para produzir a sua escultura (e justamente para a tumba de um papa!), heresia que ele não deixa de admirar, certamente porque o conflito entre a inquietude revolucionária e o conservadorismo de guardião do conhecimento sagrado estava mais vivo do que nunca em Freud. 


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Moisés, de Michelangelo Igreja de San Pietro in Vincoli  foto: Ludmila Ciuffi


Resta ainda uma outra aparição de Roma na obra de Freud, a mais curiosa e certamente a mais bela. Em O Mal-estar da civilização (1930), para explicar a maneira como as memórias são preservadas no Inconsciente, ele imagina uma Roma em que todas as camadas históricas estivessem presentes ao mesmo tempo e pudessem ser vistas uma a uma, apenas mudando-se o foco do olhar. 

“Façamos agora a fantástica suposição de que Roma não fosse um lugar onde morassem pessoas, mas uma entidade mental com um passado histórico igualmente longo e variado; ou seja, na qual nada do que já foi construído tivesse desaparecido, e todos os estágios iniciais do desenvolvimento tivessem sobrevivido ao lado dos recentes. Isso significaria que em Roma os palácios dos Césares estariam de pé no Palatino e que a Septizonium de Sétimo Severo estaria ainda erguida na sua antiga altura; que as belas estátuas ainda estariam na colunata do Castelo de Sant’Angelo, tal como estavam até o cerco dos Godos, e assim por diante. Mas ainda: onde se encontra o palácio Caffarelli se ergueria, sem que este fosse removido, o tempo de Júpiter Capitolino, não apenas na sua forma final, como o viram os romanos do tempo dos Césares, mas também na sua aparência antiga, quando ainda tinha um desenho etrusco e era adornado por antefixas de terracota. Onde o Coliseu agora está, poderíamos admirar ao mesmo tempo a Domus Aurea de Nero; na Praça do Panteão encontraríamos não apenas o Panteão de hoje, legado por Adriano, mas também o edifício original de Agripa; certamente, o mesmo chão suporta a Igreja de Santa Maria sopra Minerva e o velho tempo sobre o qual ela foi construída. O observador teria que, simplesmente, trocar o foco de seus olhos, ou mudar de posição, de maneira a obter a visão de uma ou de outra.” (Civilizations and its discontents, p.769-770)

Igreja de Santa Maria sopra Minerva

Essa Roma histórico-sipnótica parece uma daquelas cidades fabulosas das quais Marco Polo fala ao grande Cã em Le Città Invisibili, de Ítalo Calvino.  No entanto, de maneira quase inexplicável, Freud logo descarta a sua elaborada fantasia por ser uma imagem inadequada da maneira como o Inconsciente preserva as memórias.

Do ponto de vista da estratégia geral do texto, parece estranho que tanto espaço tenha sido dado a um exemplo supostamente impróprio. Por que Freud o formulou com tanta riqueza de detalhes? Por que o exemplo de Roma seria importante numa obra destinada a entender as ansiedades da vida civilizada? 

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O Vaticano

Na sua obra anterior – O Futuro de uma Ilusão (1927) –, Freud argumentou que o caminho das religiões para a felicidade consiste na degradação do valor da vida, na circunscrição das escolhas individuais e na promoção de uma visão de mundo distorcida e ilusória, que intimida o exercício da inteligência. O custo deste método é o infantilismo e a ilusão de massa, que pode salvar muitas pessoas da neurose, mas não cumpre a promessa de conduzi-las à felicidade. Em O Mal-estar da Civilização, Freud vai além e procura explicar por qual razão a felicidade parece tão difícil de ser alcançada. 

É óbvio para qualquer observador lúcido que as possibilidades de felicidade são limitadas pela nossa própria constituição, vulnerável a todos os sofrimentos: aqueles que vem de nosso próprio corpo, destinado à decadência e à morte (acompanhadas pelo inevitável cortejo de dores e ansiedades); os causados pelas forças ameaçadoras e destrutivas do mundo exterior; e aqueles provenientes da nossa relação com outros seres humanos.  Todos os métodos - religiosos ou mundanos, práticos ou reflexivos, ingênuos ou sofisticados - para fugir do sofrimento e buscar o prazer estão condenados a resultados insatisfatórios.

Para muitas pessoas, porém, a culpa das nossas misérias não estaria na natureza humana, mas na vida civilizada que nos foi imposta.  A palavra “civilização” (Kultur) descreve o conjunto de realizações e instituições que diferenciam a vida humana da dos animais, que protegem o homem da natureza e regulam as relações humanas no plano social. Entre os aspectos que compõem a civilização estão o desenvolvimento técnico, os ideais de beleza, limpeza, ordem; a atividade mental superior (religião, filosofia, ciência), a dimensão política, ética e legal pela qual as relações humanas são reguladas. Apesar de ser inegável que a civilização forneça os meios para mitigar muitos sofrimentos e proteger a espécie humana de várias ameaças, muitos acreditam que seríamos mais felizes se voltássemos às condições primitivas.

Embora a história desse hostilidade para com a civilização seja incerta, Freud acredita que ela teve três grandes momentos: o primeiro, com o advento do Cristianismo, hostil à civilização romana; o segundo com a constituição do mito do bom selvagem, a partir do século XVI; mais recentemente, com a crescente decepção com as promessas não cumpridas pelo domínio técnico sobre a natureza.

Uma das fontes da hostilidade contra a civilização provém da insatisfação causada pelas restrições à liberdade. Os objetivos da civilização só podem ser alcançados pela renúncia coletiva à livre gratificação dos desejos individuais. Uma vez que a liberdade individual não é um benefício concedido pela civilização, os movimentos de demanda de liberdade podem se tornar forças de transformação política, quando dirigidos contra certas formas de organização social, ou forças regressivas que trabalham contra os fundamentos da civilização. 

A repressão da libido é outra fonte de hostilidade. Assim como ocorre na maturação do indivíduo, o processo civilizatório se desenvolve pela renúncia à gratificação das pulsões. Com o progresso da civilização, a libido, que foi a base da união do casal e da formação da família, passa a ser inibida em suas finalidades para que possa realizar o objetivo de unir cada vez mais indivíduos com base na amizade e na identificação coletiva, e não mais do amor sexual. Assim, se a libido concorre para cumprir os ditamos da civilização, também é reprimida por ela, o que constitui uma das causas do sofrimentos ligados à civilização.
  
Há, finalmente, uma terceira e mais profunda fonte de hostilidade à civilização. Trata-se da tendência agressiva ou pulsão de destruição. A história da civilização seria a história da luta entre as pulsões de vida e de morte.

A pulsão de destruição ameaça perpetuamente desintegrar a civilização, que é muito frágil, já que os interesses em comum dos seres humanos são insuficientes para mantê-los unidos. A civilização está a serviço de Eros, a pulsão libidinal que procura juntar os seres humanos em unidades cada vez maiores. Por isso, ela impõe reforços para barrar as manifestações de agressividade, desde o sistema destinado a promover a identificação entre os seres humanos com base no amor inibido em sua finalidade, até o mandamento supremo de amar o próximo como a si mesmo, uma exigência absurda, que vai contra todas as tendências naturais do ser humano.

Do ponto de vista social, a pulsão agressiva pode ser controlada até um certo ponto. Quando inibida em sua finalidade e dirigida a objetos, a pulsão de destruição é compelida a satisfazer as necessidades de controle técnico sobre a natureza. 

Na formação do indivíduo, a pulsão destrutiva é neutralizada quando introjetada e dirigida ao ego na forma de um superego que, como consciência moral, exercita contra o ego a agressividade que o ego teria dirigido contra os outros. A civilização controla a pulsão destrutiva enfraquecendo-a e mantendo-a como uma instituição que vigia a mente, como uma guarnição numa cidade conquistada. A tensão entre o superego e o ego é o sentimento de culpa, que se manifesta como necessidade de punição.

O sentimento de culpa pode provir do temor da autoridade ou do temor em relação ao superego. O primeiro nos compele simplesmente a renunciar à satisfação de nossos desejos, a fim de obtermos em troca o amor da autoridade; o segundo é diferente: Auma vez que o desejo persiste e ele não pode ser escondido do superego, a renúncia à gratificação perde seu efeito absolvente. O superego nos condena pela mera existência dos desejos que não foram satisfeitos. Assim a restrição virtuosa não é mais recompensada: a sensação de perda do amor da autoridade e a necessidade de punição são internalizadas.

O preço da civilização é pago pelo crescimento do sentimento de culpa. Esse sentimento permanece em grande parte inconsciente, expressando-se na forma de desconforto, ansiedade e descontentamento. As mais altas exigências éticas da civilização, como o mandamento da amar ao próximo, tornam-se exigências do superego contra a agressividade humana.  Essas exigências são impossíveis de realizar: qualquer um que queira obedecê-las de maneira estrita se colocará em posição desvantajosa em relação às outras pessoas.  A civilização, como o superego, não dá importância a isso e trata de reforçar suas exigências. O resultado é que a defesa contra a pulsão agressiva causa tanto sofrimento quanto a própria agressão. 

Sem chances de alcançar a felicidade e diante do aumento constante das forças repressivas, que despertam cada vez mais ressentimento contra a civilização, a questão decisiva, segundo Freud, é saber  se o processo civilizatório terá sucesso em controlar os desarranjos da vida social causados pela pulsão de agressão, num momento em que os seres humanos dispõem de controle técnico que permite aniquilar toda a vida no planeta.

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entrada do Museu de Arte Moderna de Roma  foto: Ludmila Ciuffi


Em Totem e Tabu (1913), Freud havia proposto a cena hipotética da passagem da natureza para a cultura: a horda primitiva era liderada por um pai tirânico, que monopolizava as mulheres. Os filhos se uniram para matá-lo, mas o sentimento de culpa resultante do ato (os filhos também amavam o pai), levou à primeira ordenação social: a interdição do incesto. A antiguidade do crime pré-histórico seria o fundamento psicológico universal da civilização e da psique individual, assim como a garantia da homologia entre os processos filogenéticos (expressos no desenvolvimento da civilização) e os processos ontogenéticos (expressos no desenvolvimento do indivíduo). EO Mal-estar da Civilização, ao analisar o crescente sentimento de culpa relacionado ao processo civilizatório,  Freud recorreu mais uma vez à hipótese da morte do pai primitivo. Mas o próprio Freud percebeu que a extensa discussão sobre o sentimento de culpa perturbava a economia do texto.

Parece-me que o verdadeiro núcleo da questão de Freud não era o processo civilizatório em si mesmo. Talvez por isso, a questão do sentimento de culpa parecesse um tanto deslocada. O problema real era a forma que o processo civilizatório assumia naquele período turbulento da Europa: uma conjugação perigosa de racionalidade técnica, de economia desregulamentada e de "narcisismo das pequenas diferenças" (que alimentava as rivalidades nacionais e o anti-semitismo), sem que houvesse qualquer instituição capaz de fazer contrapeso a essas forças destrutivas, a não ser o costumeiro e inócuo idealismo dos pacifistas e dos socialistas. 

Freud era um cientista que renunciou à vocação política, mas nunca deixou de afligir-se com as desventuras de seu tempo. Também era um pensador burguês para o qual a história só poderia decorrer do confronto de forças não-históricas: Eros e Thánatos.  A Roma de Freud era uma projeção desse confronto, naquela distância segura em que a história se desfaz em alegoria e advertência moral das eras que se foram. 

Roma é a cidade cuja história mítica começa num fratricídio, torna-se um império belicoso que domina a Europa, mas termina como sede da religião do amor fraterno, calcada na promessa impossível de redimir o sentimento universal de culpa. Assim reduzida, essa trajetória forneceria um modelo conveniente - e exemplar - do processo civilizatório para Freud,  razão pela qual ele se esmerou tanto na descrição de uma Roma em que todas as camadas estivessem simultaneamente à mostra. 

Fonte das Náiades à frente da Igreja de Santa Maria degli Angeli , na antiga Terma de Diocleciano  
 foto: Ludmila Ciuffi

Sob o efeito da fascinação de Roma, Freud deu pouco espaço para um dos destinos da pulsão agressiva que é o domínio técnico sobre a natureza, mas a verdade é que, mais do que o legado clássico ou cristão de Roma, a racionalidade técnica se tornara desde a Revolução Industrial a força propulsora da civilização ocidental. Portanto, o problema não estava mais na oposição entre o Templo de Minerva e a Basílica de Santa Maria, mas sim no sistema fordista, que não tinha opositores.

(Mesmo com as limitações inevitáveis, o livro de Freud corresponde de maneira intrínseca ao drama do nosso tempo, até pelos sinais ominosos que acompanharam sua elaboração: Freud colocou o ponto final do livro quando veraneava em Berchtesgaden, onde Hitler estabeleceria pouco depois sua residência alpina, a Berghof. O mal-estar na civilização foi para a impressão uma semana depois do crash da Bolsa de Nova York em 1929).



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Quando trinta anos depois de Freud, Herbert Marcuse decidiu retomar as teses d’O Mal-estar da Civilização à luz das transformações históricas trazidas pela 2ª Guerra Mundial e pela ascensão dos Estados Unidos da América, a questão da técnica estava no primeiro plano de sua análise.  No momento em que escrevo essas palavras, a dimensão catastrófica assumida pela "convergência trinitária de racionalidade técnica, capitalismo e regime fossilista de energia" (Elmar Altvater) deve nos fazer levar a sério essas linhas: 

“As técnicas proveem as próprias bases do progresso; a racionalidade tecnológica estabelece o padrão mental e comportamental para o desempenho produtivo, e o poder sobre a natureza tornou-se praticamente idêntico à civilização. A destrutividade sublimada nessas atividades estará suficientemente sublimada e desviada, de modo a assegurar o trabalho de Eros? Ao que parece, a destrutividade socialmente útil é menos sublimada do que a libido socialmente útil. Certo, o desvio da destrutividade do ego para o mundo externo garantiu o progresso da civilização.  Contudo, a destruição extrovertida não deixa de ser destruição: os seus objetos são, na maioria dos casos, concreta e violentamente acometidos, privados de sua forma e reconstruídos só depois da destruição parcial; as unidades são divididas à força, e as suas partes componentes compulsoriamente redistribuídas. A natureza é literalmente 'violada'. Somente em certas categorias de agressividade sublimada (como na prática cirúrgica) tal violação fortalece diretamente a vida do objeto. A destrutividade, em extensão e intenção, parece ser mais diretamente satisfeita na civilização do que a libido.

(...) o fato da destruição da vida (humana e animal) ter progredido com o progresso da civilização, a crueldade, o ódio e o extermínio científico do homem terem aumentado em relação à possibilidade real de eliminação da opressão – essa característica dos estágios mais recentes da civilização industrial possuiria raízes instintivas que perpetuam a destrutividade para além dos limites de toda a racionalidade. Portanto, o crescente domínio da natureza, com a crescente produtividade do trabalho, desenvolveria e supriria as necessidades humanas somente como um subproduto; a riqueza e os conhecimentos culturais crescentes forneceriam o material para destruição progressiva e a necessidade de uma cada vez maior repressão instintiva.” (Herbert Marcuse, Eros e Civilização, p. 90).

Em outras palavras, quanto mais tecnologia, mais superego será necessário para controlar os impulsos destrutivos do homem.



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Instalação do artista israelense Shay Frisch  Museu de Arte Moderna de Roma


Na Roma sinóptica de Freud existe a tentação de saltar sobre os séculos e alcançar aquilo que, em períodos mais felizes da filosofia, era chamado de infinito atual. A simultaneidade amansa a violência das contradições num conjunto sem aparas. Ela esconjura as ruínas. O grande pensador burguês Sigmund Freud deixava de lado o fato de que as camadas de sua amada Roma não eram apenas contraditórias ao longo do tempo, mas já eram contraditórias no momento mesmo em que cada uma existiu. Aníbal nunca foi a única ameaça à cidade em que milhares se aglomeravam nas vielas infectas do bairro de Suburra, mais ou menos onde hoje se ergue a igreja de San Pietro in Vincoli, que visitei mais por respeito a Freud do que por admiração pelo Moisés esculpido por Michelangelo.


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Via dei Fori Imperiali
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Carl Schorske, Viena fin-de-siècle, Companhia das Letras/Editora da Unicamp | Sigmund Freud, The Interpretations of Dreams; Civilization and its discontents, Britannica Great Books | Sigmund Freud, Totem and Taboo; The Moses of Michelangelo, The Standard Edition of  the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, volume XIII | Peter Gay, Freud: uma vida para o nosso tempo, Companhia das Letras | Herbert Marcuse, Eros e Civilização, Zahar Editores | Renato Mezan, Freud: pensador da cultura, Brasiliense | Renato Mezan, A Vingança da Esfinge, Casa do Psicólogo | Paul C. Vitz, Sigmund Freud’s Christian Unconscious, The Guilford Press



terça-feira, 10 de setembro de 2013

Il moto non è diverso dalla stasi #8





SIENA




Entre dois acidentes

Os habitantes da pequena cidade toscana de Castiglione della Pescaia se orgulham da beleza de Roccamare, cujas praias banhadas pelo Tirreno atraíram celebridades como Sophia Loren, Claudia Cardinale e Monica Bellucci. Ítalo Calvino também gostava do lugar. Desde 1973, sempre passava as suas férias estivais na casa que lá mandou construir.

No seu último verão em Roccamare, Calvino sofreu um AVC enquanto trabalhava na série de conferências que faria em Harvard. Foi levado para Siena, a cerca de cem quilômetros, onde foi internado no hospital Santa Maria della Scala. Na noite de 18 para 19 de setembro de 1985, Ítalo Calvino morreu de uma hemorragia cerebral. O corpo do escritor foi sepultado no cemitério de Castiglione. 

Calvino nunca teve ligação com Siena, onde acidentalmente morreu, nem com Havana, onde acidentalmente nasceu em 1923. Entre esses dois acidentes, com aquela adequação irônica que é a marca do puro acaso, transcorreu toda a vida do homem que escreveu O Castelo dos Destinos Cruzados.

O hospital Santa Maria della Scala, um dos mais antigos da Europa, foi desativado no final da década de 80. Nos anos seguintes, cedeu lugar a um complexo de museus. Quando conheci Siena, lá se expunham os trabalhos de Milo Manara. A Madona da Catedral era comicamente afrontada pelo cartaz de uma ninfeta lasciva, saída de alguma HQ erótica do artista.

(Das razões para se amar a Itália, o gosto nacional pela blasfêmia não é a menor.)

Catedral de Santa Maria della Scala


Escadaria de acesso ao Batistério São João


Pia Batismal do Batistério de Siena: Banquete de Herodes, de Donatello  foto: Ludmila Ciuffi




O imperador e o crustáceo 

Embora Calvino não tenha escrito a sexta conferência, a série destinada às Norton lectures de Harvad foi publicada com o título de Seis Propostas para o Próximo Milênio.  

O título vago, que mais parecia o programa salvacionista de alguma organização não-governamental, levava a tentação de ler as conferências à luz da demanda por pregação parenética, que já se anunciava no final da década de 80.  Daí que a obra tenha feito sucesso entre os demi-savants, que avançavam sobre as Seis Propostas como se fossem uma variante do Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, de André Comte-Sponville.  

A verdade, porém, é que qualquer leitura desse tipo daria com os burros n’água se fosse além da mera escansão dos títulos das conferências (Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade). Ao invés de normas de conduta prêt-à-porter, Calvino descrevia os valores que orientavam a sua prática textual e sua ligação com a tradição literária. Se há uma proposta, é a de mostrar que a literatura pode e deve continuar relevante no futuro, porque ela dispõe de recursos específicos que não podem ser destruídos pela avalanche de meios áudio-visuais.
 

Calvino não perde tempo com diagnósticos da pós-modernidade, nem com definições acadêmicas dos valores que escolheu, tampouco procura rastrear a sua genealogia. Ao invés de uma dissertação que desdobra os conceitos em suas implicações, Calvino procede por associação de ideias e por colagem intertextual. Se com isso as conferências perdem profundidade e poder elucidativo, ganham incomparável alcance e força sugestiva.

O que interessa a Ítalo Calvino não é a crítica ou a história literária, mas a força que dá vida à literatura, razão pela qual, movido por um certeiro sentimento de dialética, ele defende que os valores se sustentam num equilíbrio de opostos, tenso e difícil, alcançado por alguns textos exemplares.


Essa dialética é especialmente interessante na segunda conferência, dedicada às formas literárias da rapidez.  Ítalo Calvino  conta uma história brevíssima - a lenda de um anel mágico, que tinha o poder de despertar a paixão de Carlos Magno - como exemplo de rapidez narrativa que suprime os elementos desnecessários ao desenrolar dos acontecimentos; em seguida, Calvino fala da rapidez do pensamento imaginativo que salta sobre os passos lógicos, e da rapidez das formas literárias curtas e concisas. A conferência termina com outra narração brevíssima:

Um artista chinês foi solicitado a desenhar um caranguejo. Ele respondeu que levaria cinco anos e precisaria de uma casa com doze empregados. Quando o prazo terminou, ele ainda não havia começado o desenho, então pediu mais cinco anos. Ao final de dez anos, o artista pegou o pincel e, num único gesto rápido, desenhou o caranguejo mais perfeito que já se viu. 


Festina lente, diz o adágio latino que o Ítalo Calvino adotou como lema. As Seis propostas para o próximo milênio são, elas mesmas, exemplos dessa aliança tensa entre a lentidão de Vulcano, o coxo, e a velocidade de Mercúrio, de pés alados. O rigor do pensamento e paciência da crafstmanship devem se consumar na concisão das formas breves e na presteza de uma imaginação que avança por meio de paradoxos, associando as coisas mais heteróclitas: o anel de Carlos Magno e o caranguejo chinês. 


Igreja de Santa Maria dei Servi     foto: Ludmila Ciuffi


Uma cidade visível

"De uma cidade, não aprecie as sete ou as setenta e sete maravilhas, mas sim a resposta que dá a uma pergunta sua." 
(Ítalo Calvino, Le città invisibili)

fachada do Duomo    foto: Ludmila Ciuffi


Quando o Sol é generoso – e ele sempre nos acompanhou -, Siena vibra com tons terrosos e quentes. A gente, discreta e ordeira, responde com gentileza ao sorriso do estrangeiro. Será por isso que James Boswell se apaixonou por todas as mulheres quando passou por aqui em 1765?

As ruas são antigas, mas não nostálgicas. Nostalgia do quê? Nada se perdeu, tudo está completo. As cruezas da história não deixaram cicatrizes ressentidas. A Madona da Maestà  continua a nos olhar régia e plácida. É certo que ela não nos dispensa carinhos de mãe, mas a quietude assim concedida pela graça de Duccio é bem que não tem preço.


Se subimos, lenta e custosamente, as escadas do Facciatone, do alto - mais do que do Campanário florentino de Giotto -, alcançamos a cidade toda com a rapidez de quem voa, até a imaginação se perder no horizonte esfumado pelo véu de neblina que a tarde lança sobre a beleza pudica das colinas.



A cidade vista do Facciatone

Quem perderia tempo com melancolias, tomando sol no Campo? Não há outra praça como esta. Sem bandeiras nem estátuas de heróis. Somente o espaço,  igual a uma mão aberta, que nos convida àquela liberdade orgulhosa de quem goza dos benefícios do bom governo. Não é à toa que os cavalos correm por aqui em agosto, quando o sol bate em brasa. 

Il Campo    foto: Ludmila Ciuffi


Siena nada nos nega. 

É certo que as quitandas vendem uvas italianas importadas do Peru, mas o vinho, brunello ou rosso, chega de Montalcino e o pan forte é uma alegria que nos vem da própria cidade. 

Tinha razão Richard Wagner quando pensou que o Duomo de Siena seria o cenário perfeito para o palácio do Graal no Parsifal

O púlpito de Nicola Pisano, a cúpula e a nave central do Duomo

Pavimento do Duomo   História de Judite  (século XV)  foto: Ludmila Ciuffi

A casa de Santa Catarina estava fechada, mas o caminho da basílica de São Domingos era rico e a natureza fazia milagres por si mesma.  


 O Duomo visto do caminho de São Domingos   foto: Ludmila Ciuffi



Siena nada nos nega. 

A verdade é que falta nossa casa, mas Siena é tão gentil que partimos, saciados e contentes com a resposta da cidade à nossa pergunta.


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Poço do Palácio Chigi-Saracini   foto: Ludmila Ciuffi


Attilio  Brilli, Il Viaggio in Italia: storia di una grande tradizione culturale, Il Mulino | Ítalo Calvino, Lezioni americane: sei proposte per il prossimo millennio, Mondadori | Ítalo Calvino, Le città invisibili, Mondadori 




quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Il moto non è diverso dalla stasi #7





FLORENÇA


Um florentino exilado

Em agosto de 1512, os aliados da família Medici, apoiados pelas tropas do Papa Júlio II, obrigaram o gonfaloneiro Soderini a renunciar. Niccollò Machiavelli, chanceler da Segunda Chancelaria e secretário do Conselho dos Dez, manteve a esperança de que pudesse permanecer no novo governo. Vã esperança. No dia 7 de novembro, ele foi cassado e removido dos seus cargos.


Da maneira mais lacônica, o ex-chanceler chamava esse período de “post res perditas”. Retirou-se para a sua quinta em Sant’Andrea in Percussina, não muito longe de Florença, levando uma vida cuja rotina descreveu em um trecho célebre:


"De manhã me levanto com a aurora, e me vou por uma das áreas que mandei desmatar em meu bosque, onde permaneço por duas horas a revisar o trabalho do dia anterior e a conversar com os lenhadores que sempre tem alguma encrenca pelas mãos, ou entre eles e os vizinhos... Saindo da mata, vou a uma fonte, e dali a um aviário meu. Carrego um livro, Dante ou Petrarca, ou um desses poetas menores, como Tibulo, Ovídio, e similares; leio daquelas suas paixões, de seus amores e lembro-me dos meus; delicio-me por algum tempo com essa ideia. Dirijo-me depois à taverna, junto à estrada: falo com os que passam, pergunto pelas novidades em seus povoados, ouço diversas coisas e observo os diversos gostos e as diversas fantasias das pessoas. Enquanto isso, chega a hora do almoço e com minha gente como os alimentos que este sitio pobre, este magro patrimônio oferece. Depois de comer, volto à taverna onde habitualmente encontro o taverneiro, o açougueiro, um moleiro e dois padeiros. Com eles me entretenho o restante do dia jogando cricca, e triquetraque, e depois vem mil discussões e infinitos desaforos com palavras injuriosas; e na maior parte do tempo briga-se por um vintém, e nossa gritaria se ouve nada menos que até em San Casciano. Assim, em meio a esses piolhos, extraio o meu cérebro do mofo, e alivio a malvadez desta minha sorte, contente que ela me tenha rebaixado desta maneira porque um dia poderá se envergonhar de ter feito isto.


Quando a noite vem, volto para casa e entro no meu escritório e, na entrada, tiro a roupa cotidiana cheia de lama e sujeira e ponho roupas simples e adequadas; e, vestido convenientemente, entro em antigas cortes de antigos homens, onde, recebido amavelmente, me nutro do alimento que é solum meu e para o qual nasci; onde não me envergonho de falar com eles, de perguntar a respeito das razões de suas ações, e eles, por bondade, me respondem; não sinto, por quatro horas, tédio algum, esqueço toda preocupação, não temo a pobreza, não fico acabrunhado com a morte: transporto-me inteiramente para eles. E como diz Dante que não se faz ciência sem reter  o que se entendeu, anotei o que pela conversação deles retive ser essencial e compus De Principatibus..."


O chanceler perdera, para nunca mais recuperá-los, seus cargos e honrarias, porém o ócio das horas vespertinas de cricca e de troca de impropérios, em Sant’Andrea in Percussina,  deu a Machiavelli, uma vez retirado dos negócios de Estado, a ocasião para pensar neles à luz da sua grande experiência e da sabedoria dos antigos, exercitando sua pena profícua não mais em cartas sigilosas e relatórios para o Conselho, mas nas obras de fôlego que ainda hoje fazem a honra de seu nome e  nas quais outros exilados encontraram alívio e substância para seus próprios pensamentos naquele regime noturno de conversação que é uma das mais elevadas alegrias do espírito.



Catedral de Santa Maria dei Fiore


Ponte Vecchio e os Uffizi



Um exilado em Florença

Andrei Tarkovski, guiado pelo roteirista Tonino Guerra, passou boa parte do ano de 1979 procurando locações na Itália para o seu próximo filme, que ganharia o título de Nostalghia, mas ainda era conhecido pelo nome provisório de O fim do mundo.


Em maio de 1980, o roteiro já estava pronto, mas Tarkovski  ainda enfrentaria dois anos de provações no labirinto de burocracia e de má vontade construído pelas autoridades soviéticas da era Brezhnev, cada vez mais embaraçadas com o misticismo do diretor russo, amplamente admirado na Europa Ocidental.


No dia 7 de março de 1982, finalmente Tarkovski saiu do seu apartamento na rua Mosfilms nº 1, 13º andar e dirigiu-se ao aeroporto de Moscou para pegar o avião para Roma. No entanto, os problemas não estavam resolvidos. A notícia da morte de Anatoli Solonitsyn, o ator favorito do diretor, com o qual fizera Andrei Rublev (1966) e Stalker (1979), obrigou Tarkovski a encontrar rapidamente alguém que pudesse interpretar o protagonista. A convite do diretor, Oleg Jankosvki aceitou o papel. As filmagens de Nostalghia começaram no outono de 1982.



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Nostalghia é um filme sobre o exílio como distância física e como uma cisão interior que consome o exilado. A estrutura dramática é simples: Andrei, Eugenia e Domenico vivem, cada um à sua maneira, uma forma de exílio. Andrei (Oleg Jankosvkiestá longe de seu país; Eugenia (Domiziana Giordano) procura uma felicidade que lhe escapa; Domenico (Erland Josephson) está apartado da sociedade por sua loucura.


Na Itália, Andrei procurava documentos para escrever a biografia de um servo russo que, no século XVIII, havia sido enviado a Bolonha para estudar música, mas, impelido pela nostalgia, voltara para a servidão na terra natal.  Assim como o músico russo, Andrei também padece de uma dolorosa nostalgia, que paralisa sua pesquisa e leva-o a devaneios em que vê a esposa e os filhos. Apesar disso, não lhes telefona nem apressa o momento da volta. De algum modo, ele está preso à Itália, embora lhe pareça impossível que italianos e russos compreendam uns aos outros. A sua intérprete italiana Eugenia é prova dessa incompreensão. Eugenia está apaixonada por Andrei, mas não o entende e se exaspera. Da sua parte, Andrei acredita ingenuamente que a distância e a incompreensão são causadas pelas barreiras nacionais.


No hotel em que estão, em Bagno Vignoni, Andrei e Eugenia conhecem Domenico, um professor de matemática que ganhou fama de louco por ter aprisionado a família por sete anos a fim de salvá-la do fim do mundo. Andrei visita Domenico, que lhe explica que ele havia sido egoísta ao tentar salvar apenas sua família; era preciso salvar todo mundo, conduzindo os seres humanos à unidade primordial. Seu argumento é simples: uma gota de azeite mais uma gota de azeite fazem uma gota maior, não duas gotas (1 + 1 = 1). Se há separação entre os homens, ela não vem apenas das barreiras impostas pelos Estados. Os seres humanos estão apartados de si mesmos e exilados da natureza. 


Quando se despedem, Domenico pede a Andrei que atravesse a piscina termal de Bagno Vignoni com uma vela acesa, como rito expiatório. Andrei volta para o hotel, sentindo que havia encontrado em Domenico alguém com quem podia se entender. Ao saber disso, Eugenia fica ultrajada. Como mulher moderna e independente que é, nada importa mais do que alcançar a felicidade através da competência profissional e do quantum de amor que ela puder obter com seus atrativos físicos. A renúncia e o sacrifício de si não tem sentido algum para Eugênia. Aos seus olhos, Andrei é um tipo de santo, um asceta que lhe causa fascinação e repulsa. Ela decide ir embora, certa de que vai encontrar um homem melhor.


Dias depois, Andrei liga para Eugenia para despedir-se: finalmente iria voltar para casa. Ela lhe conta que vivia agora com um homem rico e de estirpe. Avisa ainda que Domenico estava também em Roma e, há três dias, discursava em praça pública.  Ao saber disso, Andrei resolve adiar sua viagem para atender ao pedido de Domenico: atravessar a piscina termal de Santa Catarina com uma vela acesa.


No Campidoglio, sobre a estátua de Marco Aurélio, Domenico ateia fogo em si mesmo ao fim do seu longo discurso.  Em Bagno Vignoni, com muita dificuldade, Andrei consegue fazer a travessia para depositar a vela acesa do outro lado da piscina, porém seu coração não resiste e ele morre. 


A imagem final, em sépia, mostra Andrei placidamente reclinado diante da sua casa russa, cercada pelas ruínas de uma grande igreja italiana. A terra natal e a terra de exílio se reconciliaram, ao menos no plano onírico.


O filme é dedicado à falecida mãe de Tarkovski.



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Em 1983, o filme foi exibido em Cannes. Tudo indica que as autoridades soviéticas queriam impedir que o diretor ganhasse a Palma de Ouro. Para isso, o cineasta soviético Sergei Bondarchuk foi incluído como membro do júri para sabotar as chances de Tarkovski. O vencedor da Palma de Ouro foi A Balada de Narayama, de Shohei Imamura. Naquele ano, concorriam Carmen, de Carlos Saura, O Ano em que vivemos em Perigo, de Peter Weir, O Rei da Comédia, de Scorsese, Monty Python e o Sentido da Vida, de Terry Gilliam entre outros.


Para corrigir a intervenção escandalosa do governo soviético na escolha do prêmio máximo, foi especialmente instituído para a ocasião o Grande Prêmio do Cinema de Criação, atribuído ex aequo para Robert Bresson e para Andrei Tarkovski. 


(Orson Welles, que ignorou Bresson durante a cerimônia, mostrou entusiasmo ao entregar o prêmio ao diretor russo em 17 de maio de 1983.)


No dia 10 de julho do ano seguinte, profundamente ofendido com a intromissão soviética, Tarkovski declarou que não voltaria para a URSS. Ele e sua esposa Larissa ficariam na Itália, embora o filho caçula ainda estivesse em Moscou.


A prefeitura de Florença ofereceu ao diretor russo um velho palácio na via San Niccollò, 91.  Tarkosvski passou pouco tempo ali, pois logo partiu para a Suécia, onde filmou O Sacrifício. Durante os trabalhos de edição do filme, sentiu fortes dores no peito; os exames revelaram um câncer pulmonar. Por insistência da esposa, foi tratar-se com um famoso oncologista francês. O tratamento não teve êxito. Andrei Tarkovski foi enterrado em Paris em dezembro de 1986.



Via San Niccollò, 91, Florença



Via San Niccollò, Florença


Via di Belvedere, Florença



Os louros da Piazzale Michelangelo

No momento em que finalmente pisei em Florença pela primeira vez, Maquiavel havia sido cassado há quinhentos anos e já não jogava cricca com o moleiro, o padeiro e o açougueiro do vilarejo. Ao menos quando passamos perto de San Casciano, não ouvimos gritos nem injúrias. Outros florentinos com quem mantive conversas noturnas estavam recolhidos a seus aposentos no panteão da basílica de Santa Croce. Parecia que eu tinha chegado tarde demais à festa. Ao menos eram os oitenta anos do nascimento de Tarkovski, que morrera em Paris, quando Ludmila e eu começávamos a namorar. Convenientemente também era o ano da Rússia na Itália, e o Batistério de Florença expunha um ícone de Andrei Rublev.


Embora, nos meses precedentes, eu pensasse muito a respeito daquele atordoamento de embriaguez suscitado por tantos pináculos da arte ocidental espremidos numas poucas centenas de metros quadrados - comoção que alguns alienistas zombeteiros batizaram de síndrome de Stendhal -, tudo o que tive ao desembarcar em Florença na estação Campo de Marte foi o dissabor de saber que Ludmila e Ivan não haviam conseguido descer a tempo e estavam a caminho de Roma, enquanto Beatriz e eu, com as malas que pudemos resgatar, olhávamos atônitos o Freccia que sumia no horizonte. Desolados, tentávamos nos consolar enquanto seguíamos para o hotel arrastando a bagagem pela calamidade das calçadas, entre a água das sarjetas e as fezes caninas. Isso também é Florença.


Quando Ludmila e Ivan finalmente entraram no saguão do hotel, duas horas e meia depois,  vindos da aventura romana e da travessia da cidade desde a estação de Santa Maria Novella, tivemos que comer uns sanduíches ruins e caríssimos perto de Santa Croce.  A cidade não se tornou melhor nos dias seguintes. Restou-me o consolo de margear o Arno no fim de tarde, voltando para o hotel, sonhando que as colinas toscanas aninhavam alguma cidade de Minas Gerais, para onde pudéssemos fugir.


A sereia florentina, que fala pelos guias turísticos, dá vislumbres de obra-primas insuperáveis e, para os mais impressionáveis, acena com uma versão romântica da transcendência: a promessa de participação extática no gênio.  Todavia, a grandeza e a banalidade nunca estão muito longe uma da outra. Sempre me espanta que a condição comezinha em que arrastamos nossas vidas, o verdadeiro barro de que somos feitos, possa produzir, de tempos em tempos, obras de uma potência que não parece ser da nossa espécie, como o Perseu, de Cellini, para não falar do Davi, diante do qual a humanidade se reduz a uma situação constrangedora de pequenez e fraqueza; por força desse contraste, é cômico ver os turistas disputarem, como pombos, as migalhas de arte que se desprendem das esculturas da Loggia dei Lanzi.


A fim de entender Florença, sem sofrê-la, o melhor é subir com calma o caminho da Piazzale Michelangelo, colhendo folhas de louro, duras, enervadas e aromáticas, que bem servirão, não para coroas de herói, mas para o nosso feijãozinho brasileiro. Ou passear no cemitério atrás de São Miniato, depois de conversar com um certo monge de Ferrara, de fala mansa, que fica na lojinha do mosteiro à tarde. Os biscoitos são bons e podem ser comidos devagar enquanto se desce o caminho que passa pela muralha, em direção à rua de San Niccollò, onde, no número 91, Andrei Tarkovski viveu seu curto exílio florentino.


Certamente os mortos de Florença não ressuscitarão, mas nas ruas de Oltrarno, depois de tomarmos um cappuccino, na manhã fria, junto ao trabalhador que pede uma grappa para esquentar o peito, é bem possível que o Davi, descido do pedestal, se junte a nós, que desistimos de ser os turistas do ideal. E se o Davi se puser de cócoras, podemos até lhe mostrar as folhas de louro que colhemos para o nosso feijãozinho brasileiro, agora que, depois de tanto tempo longe de casa, bate forte nossa nostalgia.



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Cripta de Santa Maria Novella


Loggia dei Lanzi   foto: Ludmila Ciuffi

Perseu, de Cellini,  Loggia dei Lanzi foto: Ludmila Ciuffi






Roberto Ridolfi, Biografia de Nicolau Maquiavel, editora Musa, 2003 | John Gianvito (ed), Andrei Tarkovsky: Interviews, University Press of Mississippi, 2006 | Sean Martin, Andrei Tarkovsky, Oldcastle Books, 2011| Shusei Nishi, Tarkovsky and his Time: Hidden truth of life Alt-arts LLC, 2011 | Aleksandr Sokurov, Melancolia de Moscou, 1987 | Andrei Tarkovski, Nostalghia, 1983 | Andrei Tarkovsky interviewed by Maurizio Porro 1983 Andrei Tarkovsky interviewed by Natalia Aspesi 1983 | Tarkovsky talks to Gideon Bachman, on Nostalghia 1983