quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A claraboia e o holofote #15





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


Seção II - Proletários e Comunistas



O Manifesto do Partido Comunista sofre de legibilidade ilusória. Do mesmo modo que algumas obras curtas e demasiado conhecidas – O Príncipe é outro exemplo -, ele foi resumido a umas poucas passagens antológicas, cuja interpretação se cristalizou em chavões dignos de serem recolhidos no dicionário de idées recues.  O maior sintoma da legibilidade ilusória é a forte impressão de atualidade que o Manifesto nos transmite. Tal impressão não é efeito de uma suposta verdade imediata do texto, mas do caráter formulaico que lhe foi associado, o qual dificulta e repele o distanciamento próprio da leitura. O que é atual não é o texto, inevitavelmente marcado pelo lugar e tempo da enunciação; atual é o efeito das forças econômicas, sociais e políticas que se apoderaram dos significantes e remanejaram os significados, num processo semelhante ao das conquistas territoriais. Um movimento deste tipo é o que vemos acontecer num artigo como Marx's intellectual legacy da revista The Economist (2002) em relação à alegada obscuridade de O Capital. Trata-se de uma estratégia que procura minar, de antemão, qualquer esforço de leitura.

O que me interessa na seção II não é a verdade do Manifesto nem a sua atualidade, mas as condições de sua legibilidade. O caráter instrumental, polêmico e imediato do Manifesto do Partido Comunista cobra um preço muito alto de seus leitores, mesmo que eles não se deem conta disso. O texto da seção II foi definitivamente rasurado pelos acontecimentos históricos subsequentes, desde a revolução de fevereiro de 1848 aos processos de Moscou – época em que se constituíram as peças da acusação movidas contra o comunismo, não só pelos liberais quanto por muitos marxistas.

Na impossibilidade de recuperar as condições da recepção original do Manifesto, acredito que a leitura da seção II, ou seja, o entendimento do “partido comunista” de 1848, será menos ingênua se acompanharmos a sombra que o texto projetou, razão pela qual quero revisar a história do marxismo nos noventa anos que se seguiram ao Manifesto. 

Trata-se do roteiro das vicissitudes do "partido comunista" de 1848, que seguirei neste meu folhetim filosófico:

(A) O abandono do “partido comunista de 1848”

a. O massacre de junho de 1848 e a repressão na década seguinte: o refluxo do movimento revolucionário.

b. As lições da Comuna de Paris: o proletariado não pode  tomar o poder pela conquista do Estado burguês existente. 

c. A fundação dos partidos social-democratas e a abertura da via legal e parlamentar. O programa gradualista de conquistas mínimas e sua teoria revisionista.

d. A partido social-democrata alemão adere ao Reich: o nascimento do "social-nacionalismo" prepara a traição de 4 de agosto de 1914.


(B) A refundação do “partido comunista" de 1848

a. A crítica da via parlamentar e a recuperação do “partido de 1848” pelos bolcheviques e pelos espartaquistas.

b. As polêmicas no âmbito da esquerda comunista e socialista a respeito da organização interna do partido; da sua relação com a classe operária e da supressão da propriedade privada.


(C) Nova crise do “partido comunista” de 1848

a. Na cadeia, Gramsci começa a reexaminar o partido de 1848 e sua refundação. 

b. No Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, os herdeiros de Lukács, à sombra do mal-estar da civilização, aderem à Kulturkritik. Renúncia definitiva ao “partido comunista” de 1848. 

c. No exílio, Trostski, profeta desarmado, examina a “atualidade” do Manifesto






terça-feira, 22 de outubro de 2013

A claraboia e o holofote #14





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


Seção II - Proletários e Comunistas



“Qual a relação dos comunistas com os proletários em geral?
Os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários.
Não tem interesses diferentes dos interesses do proletariado em geral.
Não proclamam princípios particulares, segundo os quais pretendem moldar o movimento operário.
Os comunistas se distinguem dos outros partidos somente em dois pontos: 1) Nas diversas lutas nacionais dos proletários, destacam e fazem prevalecer os interesses comuns dos proletários, independentemente da nacionalidade; 2) Nas diferentes fases de desenvolvimento por que passa a luta entre proletários e burgueses, representam, sempre e em toda parte, os interesses do movimento em seu conjunto.
Na prática, os comunistas constituem a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais; teoricamente tem sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, do curso e dos fins gerais do movimento proletário.
O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários: constituição do proletariado como classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado.
As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum, em ideias ou princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo.
São apenas a expressão geral das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos.”


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O problema

Durante a vida de Marx e Engels, os comunistas conheceram várias formas de associação. Antes de 1848, reuniam-se em pequenos grupos como a Liga dos Comunistas, para a qual foi escrito o Manifesto; nos anos de 1860, fundou-se a Associação Internacional dos Trabalhadores (a 1ª Internacional); na década seguinte, pouco depois da breve experiência revolucionária da Comuna de Paris, surgiram os partidos social-democratas da Áustria e da Alemanha; na velhice de Engels, organizou-se a Internacional dos partidos de esquerda, tendo à frente a poderosa social-democracia alemã (a 2ª Internacional).  

No entanto, embora o preâmbulo do Manifesto declare a necessidade de tornar públicos os objetivos dos comunistas como partido (“É tempo de os comunistas exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido ao conto do espectro do comunismo”), Marx e Engels jamais fundaram um partido comunista. Na verdade, não houve nenhuma associação que tivesse oficialmente esse nome até 1918, quando o Partido Operário Social-Democrata da Rússia (bolchevique) se tornou o Partido Comunista da Rússia. 

Por que Marx e Engels não fundaram um partido comunista? 

Descontadas as condições repressivas nos anos de 1850, que levaram ao refluxo da agitação revolucionária anterior, há várias razões pelas quais não houve um partido comunista no século XIX.

A primeira é que Marx e de Engels se inseriam nas associações existentes – fundadas por artesãos ou por trabalhadores -, procurando assumir posições de influência para dirigir e canalizar as forças de um movimento em curso. De acordo com a parte final da seção I, Marx e Engels se viam como ideólogos dissidentes da burguesia, que aportavam esclarecimento político à classe trabalhadora. Não poderiam se sobrepor ao movimento em andamento: como elementos provindos da burguesia, eles não deveriam usurpar as tarefas organizadoras do próprio proletariado. Ora, a fundação de um partido comunista seria justamente uma usurpação desse tipo.

A segunda razão é Marx e Engels não queriam ser confundidos com os inventores de doutrinas comunistas e de sistemas salvadores. É muito bem conhecido o fato de que Marx jamais quis ser marxista, isto é, um partidário de uma doutrina. Seu objetivo era ser um homem de ciência que desvenda a história. Um partido comunista fundado por Marx e Engels seria inevitavelmente visto como expressão voluntarista e subjetiva do ponto de vista particular de seus fundadores. E, como Marx viu muito bem na época da 1ª Internacional, o programa de uma associação ampla dos trabalhadores não poderia ser unicamente comunista: era preciso satisfazer as alas moderadas e, ao mesmo tempo, não exasperar os radicais blanquistas, proudhonianos e bakuninianos. Os comunistas eram apenas um grupo entre outros, sem massa suficiente para formar um partido à parte.

A terceira razão é que era indiferente que o proletariado se constituísse em partido ou em outras formas de associação, desde que se organizasse de forma revolucionária: essa era a preocupação prioritária de Marx e Engels. 

Todavia, às vésperas da agitação de 1848, havia ainda uma razão decisiva para que Marx e Engels não fundassem um partido comunista: esse partido já existia, ao menos do ponto de vista dos autores do Manifesto. O Manifesto do Partido Comunista seria a primeira exposição pública desse partido.

É claro que não se tratava de um partido de aparelho, capaz de mobilização de massa, como os partidos social-democratas no final do século, muito menos um partido de vanguarda revolucionária como o partido bolchevique. Tampouco Marx e Engels pensavam nos pequenos grupos conspiratórios carbonários, dos quais participavam Mazzini ou Auguste Blanqui, herdeiros do jacobinismo radical de Babeuf.

O que Marx e Engels chamavam de “partido comunista” era, na verdade, o movimento político que se desenvolvia como resultado do movimento proletário. O “partido comunista” de 1848 era simplesmente a fração mais consciente e revolucionária do proletariado internacional. As propostas do "partido comunista" expressavam o movimento histórico - espontâneo e necessário - do proletariado (tal como era elucidado pelos ideólogos dissidentes da burguesia). Mas, ao mesmo tempo que era produto do processo histórico, o "partido comunista" pretendia dirigir o proletariado para a realização desse processo histórico: a supressão da burguesia. Esse caráter revolucionário era essencial, pois definia o “partido comunista” de 1848 de três maneiras: 

- seus princípios eram os mesmo da única classe revolucionária: o proletariado internacional, tal como compreendidos pela sua fração mais consciente. Esses princípios eram expressão do processo histórico e não produto de deliberação ou invenção. 

- seu objetivo era a abolição da propriedade privada burguesa, isto é, do fundamento jurídico e econômico do modo de produção capitalista.

- seu método de ação era a promoção da luta de classes de maneira declarada: por isso rejeitava a política institucional burguesa de negociação parlamentar, assim como rejeitava as associações conspiratórias e insurrecionais, sem apoio das massas proletárias, uma vez que o partido consistiria justamente na organização dos trabalhadores como classe consciente da sua posição na luta de classes.

Esse “partido comunista” não era somente um reflexo do entusiasmo revolucionário de 1848, ele era a práxis que correspondia clara e diretamente à teoria da história como luta de classes (que é a premissa mesma do Manifesto). Acontece que os desenvolvimentos posteriores da teoria de Marx o levaram a relegar a luta de classe às obras conjunturais (como o 18 Brumário), enquanto as suas investigações teóricas se concentravam nas estruturas complexas e contraditórias do capital como Sujeito Automático. O resultado é que o nexo entre a teoria e a práxis, entre lógica e política (para usar a expressão de Ruy Fausto) ficou obscurecido pela hipertrofia teórica, que requer exegeses intermináveis e irreconciliáveis por parte dos especialistas em reconstruções de Marx. Como resultado, a discussão política nas obras conjunturais, nos artigos jornalísticos, nas cartas a Kugelmann e nas comunicações às associações de trabalhadores fazem o papel de pobres barracos provisórios ao lado da catedral gótica, que é Das Kapital, e do labirinto de Creta, que são os Grundrisse

Assim, apesar da sofisticação teórica posterior, a maior parte do debate político dentro do movimento comunista ficou preso às condições ainda rudimentares expostas no Manifesto do Partido Comunista. O que pretendo mostrar nos próximos capítulos deste folhetim filosófico é que as vicissitudes do comunismo tem suas raízes nas condições imaturas do “partido comunista” de 1848, cujos princípios, objetivos e métodos de ação foram abandonados pela esquerda, sem ter sido realmente superados por uma análise política à altura das conquistas teóricas de Marx. 







terça-feira, 15 de outubro de 2013

A claraboia e o holofote #13





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Carta a Neylor dos Santos Ferreira


Neylor,

Da última vez, eu lhe disse (A claraboia e o holofote #9) que o que mais me interessa em Marx é a tenacidade de seu alpinismo teórico. Na minha carta ao Murilo sobre a finalidade da filosofia (Para que serve a filosofia), eu defendi que a tarefa do filósofo consiste em subir a montanha para conseguir uma perspectiva mais ampla e uma compreensão maior do território. Às vezes eu uso a palavra “totalidade”, mas na boca de alguém como eu, cético por formação e por inclinação, trata-se apenas de um ideal regulador: o não se contentar com o fragmento, sem ter feito o esforço de alcançar a completude. Mas, voltando ao alpinismo, ocorre que qualquer tentativa de conquista do topo depende do reconhecimento atento das asperezas do terreno. Em vista disso é que escolhemos o percurso possível - adequadamente conhecido pela palavra grega “método” - que nunca é garantia de êxito nem tampouco atalho que nos permita falar das coisas sem a labuta de pensar nelas. 

Com Marx, todavia, a situação sempre foi mais complicada porque sua ambição era enorme: a conquista teórica da montanha do capital deveria ser, em si mesma, a ferramenta prática de transformação social. Seria como se Darwin, ao escrever The Ascent of Man, pretendesse modificar a própria espécie humana. 

A unidade entre teoria e prática é uma ambição que foi submetida a toda sorte de vexames desde 1848. Os êxitos políticos ou trabalhistas da Internacional social-democrata e da Internacional bolchevique foram obtidos por um empobrecimento teórico que é mais do que uma traição, ao passo que os esforços do marxismo crítico foram desbaratados pela repressão (Rosa Luxemburgo boiando no canal Landwehr; Antonio Gramsci fenecendo no cárcere de Turi) ou caíram na irrelevância do marxismo acadêmico, tão arguto na exegese dos textos quanto nulo no seu alcance político e social. 

É claro que isso não é exatamente culpa dos marxistas acadêmicos. Assim como o liberalismo britânico garante o direito de qualquer um discursar à vontade no speaker’s corner do Hyde Park ao preço de ser ouvido apenas por alguns excêntricos e transeuntes desocupados, as democracias liberais permitem que as universidades tenham liberdade de ensino e de pesquisa, ao custo de neutralizar os vínculos sociais de qualquer teoria crítica (é o conhecido regime de dedicação integral... trabalho social não conta no currículo Lattes).

Todavia, cada vez mais acredito que o problema já estava inscrito na obra teórica de Marx. Para começar, devemos admitir que a complexidade d’O Capital não é garantia de verdade no plano teórico, caso contrário a Suma Teológica seria, por igual motivo, prova da existência de Deus e da verdade da Igreja Católica. E mesmo supondo que a exposição de Marx seja uma descrição adequada do processo, eu me pergunto qual práxis poderia corresponder aos esquemas de reprodução ampliada? 

Só para ficar com a prata da casa uspiana, Ruy Fausto que, durante vinte anos, destrinchou os nexos entre a lógica dialética e a política em Marx, deixou de ser marxista no meio do caminho. José Arthur Giannotti, que andava por um caminho parecido (ou, na versão do Ruy, pelo mesmo caminho) passou a ser reserva intelectual do tucanato paulista. Paulo Arantes e Chico de Oliveira, que tiveram a teimosia de não recuar - admirável e espantosa nos atuais tempos líquidos -, estão mais ou menos marginalizados. Já de algum tempo, o Paulo é um marxista de pizzaria – o que não é nenhum demérito se a pizza for boa. 

Por que ainda vale a pena ler Marx?  Só posso falar por mim. Minha resposta é que eu sei bem que a montanha que ele tentou escalar não é imaginária: as ruínas geradas pela contradição em processo do capital estão bem diante de nossos olhos, ganhando volume e crescendo até ocultar o horizonte. Chegamos ao ponto de não vermos quase nada depois delas.

Então, para os covardes e fracos como eu, que nunca se arriscarão a subir a montanha, o negócio é estudar o percurso de quem teve coragem e tentar aprender alguma coisa do relato do alpinista maior, examinando os seus tropeços e passos em falso. Reafirmo o que já lhe disse: para os meus modestos propósitos, os erros de Marx são tão instrutivos quanto os seus acertos. 

É por isso, que eu exponho aqui minha leitura da seção propriamente política do Manifesto do Partido Comunista.  Depois dos lances audaciosos da primeira seção, com seus flashbacks vertiginosos, seus fantasmas e feiticeiros, agora vem a hora de trocar o panorama teórico pela moeda miúda e corrente da prática política imediata na agitada temporada de 1848. 

É importante ressaltar que esta minha leitura não está pronta. Não é a exposição de um percurso feito, como os capítulos fechados de uma tese universitária. A coisa está em movimento e eu mesmo estou aprendendo a ler o texto de Marx, depois de tê-lo relido tantas vezes. As intervenções e críticas serão bem vindas. Não sou marxista e estou longe da academia desde o século passado. Sou apenas um professor de cursinho que, nas horas vagas, lê e escreve para tentar entender de onde vem o nada que corrói tudo o que existe. 



Um grande abraço!







terça-feira, 8 de outubro de 2013

Aviso aos navegantes






O intermezzo italiano está encerrado 

O autor, devidamente refeito, retornará,  conforme o prometido , à leitura da seção II do Manifesto do Partido Comunista

Aqueles que acompanham minhas páginas vadias já perceberam que seu único motor é, digamos, a urgência do que já se foi. Longe de mim, no entanto, pretender redimir o passado. Os mortos tem o direito de permanecerem mortos. O que me apraz é compreender a gênese da ruína. 


Eis porque me interessa tanto fazer algumas considerações inatuais sobre essa coisa arruinada: o partido comunista do proletariado internacional.


Espero que os visitantes do antigo bloco comunista - russos, poloneses, ucranianos, tchecos, cazaques e sérvios - que semanalmente prestigiam este blog, e honram este autor com sua atenção, encontrem nas próximas semanas algumas ocasiões de riso e de lamento.


A todos, uma boa semana!




terça-feira, 1 de outubro de 2013

Il moto non è diverso dalla stasi: finale






O díptico de R O M A


Borromini


I

Em O Mal-estar da Civilização, Freud sustentou que a pulsão de agressividade era mantida sob controle ao ser dirigida para o domínio técnico sobre a natureza e ao ser introjetada - contra o próprio eu - na forma de sentimento de culpa. Essa seria a fonte principal do descontentamento com a civilização e, ao mesmo tempo, a maior ameaça contra ela, uma vez que a pulsão agressiva na forma de domínio técnico havia criado as condições para a aniquilação total da espécie humana e somente poderia ser contida por um acréscimo de repressão e, portanto, de insatisfação.

Na esteira de Nietzsche, Freud sugeriu que a hostilidade contra a civilização teria sua história marcada por dois grandes momentos: o surgimento do Cristianismo e a difusão do mito do bom selvagem na era moderna (que culmina em Rousseau).  A decepção generalizada com as promessas da religião e da tecnologia na passagem do século XIX para o século XX forneceu a configuração do mal-estar da civilização, com seu cortejo de ameaças reais e fantasmáticas, que nos é bem familiar.

A crise da civilização já teve, porém, outras configurações em que as contradições apareciam de maneira igualmente explícita e aguda. Foi o que ocorreu no século XVII, quando a ciência de Galileu se confrontou com o poder da igreja romana. É tentador ver aí o conflito exemplar entre a luz da ciência e as trevas da religião, mas isso seria escamotear o momento da contradição, reduzindo-a a um mero confronto em que um dos polos (o da ciência) estaria destinado, por alguma lei inexorável, a superar o outro (o da religião) num esquema positivista fácil. A verdade do conflito está no fato de que nem o papa Urbano VIII Barberini nem o Cardeal Bellarmino eram obscurantistas nem a ciência de Galileu era uma aventura desinteressada pelos domínios da natureza. Para sustentar essa ilusão seria preciso deixar de lado todos os lances de oportunismo exigidos de Galileu para sobreviver num ambiente em que tanto se competia por protetores ricos e poderosos, como o duque da Toscana ou algum cardeal papabile. 

O confronto de Galileu com a igreja romana não era uma luta do Bem contra o Mal, mas um momento tenso em que as forças contraditórias de uma civilização ficaram expostas. A pesquisa de Galileu e a estrutura da igreja de Roma eram aspectos contraditórios de uma realidade que não poderia ser cindida sem ser destruída. A ciência moderna era a irmã siamesa do Cristianismo. Mas o século XVII forneceu outros exemplos dessa tensão insolúvel: 

A pergunta sobre a eticidade da técnica, sobre o seu direito de colocar-se como modelo de comportamento humano, sobre sua capacidade de realizar o fim último da aventura humana, a salvação, apresenta-se no início do século XVII com o dualismo Caravaggio-Annibale Caracci e, pouco depois, com maior aspereza, com o dissídio entre Bernini e Borromini. Como o problema continua aberto e constitui, hoje, a espinha dorsal da angústia da “civilização tecnológica”, pode-se ver em que medida o século XVII, com suas contradições, foi o prólogo do drama histórico do mundo moderno.” (Giulio Carlo Argan, Imagem e Persuasão, p. 420).

Êxtase de Santa Teresa, de Bernini    foto:Ludmila Ciuffi
                      
                                                                               

Roma: Êxtase de Santa Teresa, de Bernini, Igreja de Santa Maria da Vitória


Roma: Igreja de Sant'Agnese in Agone, de Borromini

Roma: Basílica de San Giovanni in Laterano, reformada por Borromini


II


Do ponto de vista histórico e sociológico, José Antonio Maravall forneceu uma visão abrangente das tensões do século XVII em A Cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica, publicado em 1975.

O Barroco, do ponto de vista de Maravall, não é um estilo artístico, mas a estrutura social e histórica de uma época em que a burguesia se retrai diante de uma nobreza que reivindica um poder que não se limita ao exercício das armas, levando à concentração fundiária e à pauperização das massas rurais. A própria Igreja assimila “esses modos de comportamento, decantados dos interesses aristocráticos, modos que, provavelmente, formaram o quadro menos cristão da Igreja de Roma ao longo de toda a sua história.” (A Cultura do Barroco, p. 88). 

Desenvolveu-se então uma cultura conservadora e repressiva, que buscava a acomodação dos conflitos através da persuasão – por meio da retórica e das artes - dirigida  às classes sociais subalternas, especialmente as massas que se aglomeravam nas grandes cidades que se tornaram capitais (Roma, Paris, Madrid, entre outras), centros administrativos de onde emanavam o poder e a autoridade, mas cujas populações sofriam as consequências da urbanização: criminalidade, solidão, agitação em função do anonimato que a cidade oferece, relaxamento dos costumes. Sem meios de canalizar o descontentamento e o conflito por meio da crítica e da livre expressão, ganham corpo as tendências místicas e as crendices fantásticas, os processos de bruxaria se multiplicam por toda a Europa: “A paixão pela extravagância desenvolve-se monstruosamente em povos que não tem acesso a uma crítica razoável da vida social” (idem, p. 357), confirmando a oitava tese de Marx contra Feuerbach: “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem às doutrinas do misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis.” 

A conclusão de Maravall é que a crise do século XVII, que delineou a estrutura social e histórica que denominamos Barroco, é o produto de uma modernização conservadora: “Eis aí como a sociedade do século XVII, mordendo o próprio rabo, revela-nos a razão de sua própria crise: um processo de modernização, contraditoriamente montado para preservar as estruturas herdadas.” (idem, p. 405).


Roma: cúpula da basílica de Santo Ambrósio e São Carlos, de Pietro da Cortona (1596-1669), ao fundo a cúpula da basílica de São Pedro, de Michelangelo e Giacomo della Porta (1532-1602)

Roma: interior da Cúpula da Igreja de Gesù, de Giacomo Vignola (1507-1573)  foto: Ludmila Ciuffi



III


Maravall observa que “são homens tristes (...) esses que começam a ser vistos sobre o solo da Europa nos últimos lustros do século XVI, e que continuarão a ser encontrados até bem avançada a segunda metade do século seguinte.” (idem, p. 247). Um desses homens tristes foi o grande arquiteto Francesco Castello, dito Borromini, sobre o qual seu contemporâneo Filippo Baldinucci escreveu:

"Egli era stato solito di patir molto di umore malinconico, o, come dicevano alcuni dei suoi medesimi d'ipocondria, a cagione della quale infermità, congiunta alla continua speculazione nelle cose dell'arte sua, in processo di tempo egli si trovò sì profondato e fisso in un continuo pensare, che fuggiva al possibile la conversazione degli uomini standosene solo in casa, in nulla d'altro occupato, che nel continuo giro dei torbidi pensieri". (“Francesco Borromini” in Enciclopedia Italiana Treccani).

Nenhum artista da época sofreu tanto com os percalços dos juízos históricos como Borromini: há o homem amargurado que se ressentia com o sucesso do rival Bernini; há o alucinado que se comprazia em extravagâncias que repugnavam os árbitros do gosto neoclássico; há o gênio saturnino que queimou seus desenhos antes de suicidar-se; há o brilhante retórico que, segundo Paolo Borghesi "considera sua profissão um formidável instrumento de captação. Ele usa todos os meios para falar com seu interlocutor." (The Rome of Borromini, George Braziller, New York, 1968 p. VIII) e que quer libertar-se de "uma pureza autônoma que reduz as possibilidades comunicativas da arquitetura" (idem, p. 391); há o austero pesquisador das linhas curvas, das ilusões de perspectivas, da modelação dos espaços pela inflexão das superfícies, pelo uso dos elementos usualmente decorativos com finalidades narrativas e estruturais, que tanto impressiona arquitetos pós-modernos como Frank Gehry; enfim, o artista que teria definido a estética espacial do Barroco: “O espaço de Borromini é feito ‘artificialmente’ (...) Trata-se de um espaço contraído e adstringente, cheio de pontas, de arestas cortadas a faca, de estruturas dentadas, de forças contrapostas, de pressões externas: premente como o de Michelangelo, deformante como o de El Greco, mas ao mesmo tempo lúcido e desiludido como uma demonstração por absurdo.” (Giulio Carlo Argan, Imagem e Persuasão: ensaios sobre o Barroco, Companhia das Letras, 2004 p. 423)

Se na cultura do Barroco, segundo a lição de Maravall, o apelo à harmonia dos contrários é a máscara que procura ocultar as ameaças à ordem estabelecida, talvez seja o caso de ver na arquitetura de Borromini, com seu gosto pelas arestas e pelo espaço que se contrai, a própria exposição das tensões do mal-estar da civilização barroca.

Roma: torres e cúpula da Igreja de Sant'Agnese in Agone, de Borromini


IV


O mal-estar começa pela própria desconfiança de Borromini em relação a Roma, cuja mundanidade choca o ascetismo do arquiteto lombardo. Além disso, em Roma, era demasiado tentador para um artista “invocar o álibi da história antiga e da natureza universal” (Giulio Carlo Argan, op. cit., p. 422). A austeridade de Borromini é indissociável da sua pesquisa formal adversa aos cânones historicistas e naturalistas, que a tradição clássica e seus continuadores (como Bernini) endossavam. Como mostrou Argan, as soluções clássicas estavam vedadas a Borromini pelo seu próprio rigor: “... a lúcida e amarga constatação do fim do classicismo, a liberdade precária e ilusória que nasce da morte de uma cultura, da ruptura de uma tradição, esse sentimento de vazio, enfim, que é ao mesmo tempo tripúdio e angústia, ímpeto para o alto e vertigem de altura.” ( op. cit., p. 353)

Por essa consciência da crise da linguagem clássica, e evidentemente da promessa de conciliação dos conflitos que lhe era inerente, por meio do ideal da bela proporção natural, Borromini sempre foi fiel à sua admiração por Michelangelo, o grande artífice das forças em tensão explícita e da superação do passado, razão pela qual Borromini registrou, por intermédio de seu amigo e protetor Virgilio Spada:

Peço a meus leitores (...), se lhes acontecer de achar que me afasto dos desenhos tais como são feitos comumente, de lembrarem-se desta frase de Michelangelo, príncipe dos arquitetos: quem segue os outros não os ultrapassa jamais, e estou certo de que nunca teria me devotado a esta profissão se fosse para ser um simples copista, mesmo que eu saiba bem que quando se inventam coisas novas, não se pode colher os frutos destes trabalhos senão tarde, como aconteceu com Michelangelo. Quando ele renovou a arquitetura da grande basílica de São Pedro, ele foi vilipendiado por suas novas formas e novos ornamentos, que seus inimigos reprovavam. A tal ponto que mais de uma vez tentaram privá-lo do cargo de arquiteto de São Pedro, mas em vão. E o tempo mostrou claramente que tudo que ele fez é digno de ser imitado e admirado. Que Deus esteja convosco.” (citado por Étienne Barlier, Francesco Borromini: le mystère et l’éclat, Presses Polytechniques et Universitaires Romandes, Lausanne, 2009 p.15).


Em Borromini, a busca do novo não pode ser identificada como gosto de novidades numa sociedade repressiva como aquela que Maravall descreveu. No arquiteto italiano, trata-se da consciência de que as formas do passado perderam sua exemplaridade diante da caducidade permanente de todas as coisas. Elas são apenas recordações de um tempo que se desfez. O novo é o testemunho de que o que se foi está morto: “O caráter fúnebre que essa arquitetura conserva, mesmo quando é mais equilibrada e luminosa, tem um sentido quase moral de dança macabra.” (Giulio Carlo Argan, op. cit., p. 353)

Roma: Interior da Igreja de São Carlos das Quatro Fontes, de Borromini 

Preso ainda às formas morais e ascéticas assumidas por uma existência comprometida com o rigor estético de Michelangelo e com o rigor religioso do Concílio de Trento, movia-se uma inquietude e uma insatisfação permanentes, que se tornarão a marca da condição fáustica, familiar a todo mundo burguês desde o século XIX: a “modernidade” cuja tragédia e cuja comédia foram descritas por Freud, por Nietzsche e por Marx.


V


Jovem noviço em Roma, Guarino Guarini conheceu Borromini, cujas lições formais ele retomou na sua carreira de sacerdote, arquiteto, matemático e físico (a ciência e o Cristianismo eram irmãos siameses). Em Turim, ele foi encarregado da construção da Capela do Santo Sudário e do Palácio Carignano, perto do qual Nietzsche abraçou um cavalo aos prantos em janeiro de 1889. 

Turim: Palácio Carignano, de Guarino Guarini (1624-1683)

Eis-me de volta ao ponto de partida desta viagem. É justo. Foi aqui em Turim que Xavier de Maistre escreveu a sua Viagem ao redor de meu quarto, em 1794.  É o que eu pensava colhendo o chocolate no fundo da minha taça no Café Al Bicerin, depois de ter sentido o gelo na alma na Capela do Sudário e de ter visitado a casa de Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz. 

O percurso de nossa viagem nunca é maior do que o perímetro das nossas obsessões. Há muita coisa que não vi em Roma porque não podia enxergá-las. Talvez seja preciso multiplicar minhas obsessões para que os olhos possam ver o que não viram. Cada Borromini que eu deixei para a próxima visita, porque estava ocupado demais admirando Bernini, me pesa como uma culpa, mas sempre desejarei voltar para a ponte do Castelo de Sant’Angelo.

Então, a questão não é quão longe eu fui, mas sim se eu fui fiel à minha imobilidade, pois desejo muito que as palavras que Eugenio Montale dedicou à sua falecida esposa também possam valer para minha experiência:

Tu sola sapevi che il motto/ non è diverso dalla stasi./ che il vuoto è il pieno e il sereno/ è la più diffusa delle nubi./ Cosi meglio intendo il tuo lungo viaggio

Tu, apenas tu, sabias que o movimento/ Não difere da estase,/ Que o vazio é o pleno e o céu limpo/ A mais difusa das nuvens./ Dessa forma compreendo melhor tua longa viagem 
(Satura, Xenia I, 14 - tradução Geraldo Holanda Cavalcanti)

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Roma: Fonte da Basilica de Santa Sabina 


Giulio Carlo Argan, Imagem e Persuasão: ensaios sobre o Barroco, Companhia das Letras | Étienne Barlier, Francesco Borromini: le mystère et l’éclat, Presses Polytechniques et Universitaires Romandes | José Antonio Maravall, A Cultura do Barroco: análise de uma estrutura histórica, Edusp | Paolo Portoghesi, The Rome of Borromini, George Braziller | Enciclopedia Italiana Treccani