domingo, 28 de dezembro de 2014

A claraboia e o holofote #28 (VII)


 





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Lenin 

7.  A ruptura com a social-democracia



Durante toda a série de cisões e reaproximações entre bolcheviques e mencheviques a partir de 1903, o que estava em jogo era a linha política que a social-democracia russa deveria adotar. Para Lenin, o bolchevismo era a forma adequada e necessária da social-democracia revolucionária nas condições especiais da Rússia. Porém, justamente por levar em conta a situação russa, os bolcheviques dificilmente poderiam ser marxistas ortodoxos à maneira de Kautsky, razão pela qual, embora Lenin sempre apelasse para a autoridade última de Marx e Engels, a prática política bolchevique também incorporava o jacobinismo típico dos segmentos médios radicais, além de jamais ter rompido totalmente com os populistascomo se vê pelo entusiástico elogio de Lenin ao movimento narodnik "Terra e Liberdade":

"A história do movimento revolucionário é tão mal conhecida entre nós que toda a ideia de uma organização de combate centralizada que declara uma guerra decidida ao czarismo é considerada como dentro do espírito de ‘A Vontade do Povo’. Mas a magnífica organização dos revolucionários da década de 70, que a todos nós deve servir como modelo, foi criada, não pelos partidários de ‘A Vontade do Povo’, mas pelos de ‘Terra e Liberdade’, que se cindiram em seguidores de ‘A Partilha Negra’ e de ‘A Vontade do Povo’. Por isso é absurdo, histórica e logicamente, ver numa organização revolucionária de combate alguma coisa especificamente própria de ‘A Vontade do Povo’, porque toda tendência revolucionária, se pensa realmente numa luta séria, não pode prescindir de semelhante organização revolucionária. O erro dos partidários de ‘A Vontade do Povo’ não foi o de procurar integrar todos os descontentes na sua organização e orientá-lo para uma luta decidida contra a autocracia. Pelo contrário, isto constitui o seu grande mérito histórico. O seu erro consistiu em se ter baseado numa teoria que, na realidade, não era de modo algum uma teoria revolucionária, e de não ter sabido, ou não ter podido, estabelecer uma ligação firme entre o seu movimento e a luta de classes no seio da sociedade capitalista em desenvolvimento. E só a mais grosseira incompreensão do marxismo (ou a sua ‘compreensão’ no sentido do ‘struvismo’) pôde levar à opinião de que o aparecimento de um movimento espontâneo de massas nos exime da obrigação de criar uma organização de revolucionários tão boa quanto ‘Terra e Liberdade’, ou até incomparavelmente melhor. Esse movimento, pelo contrário, impõe-nos precisamente esta obrigação, porque a luta espontânea do proletariado não se transformará na sua verdadeira ‘luta de classe’ enquanto não for dirigido por uma forte organização de revolucionário.
(Que Fazer?, Obras Escolhidas tomo 1, p. 174)

Por maiores que fossem as divergências entre Lenin e os outros social-democratas dentro e fora da Rússia (como se vê nas críticas  que Rosa Luxemburg lhe dirigiu em Questões de organização da social-democracia russa), Lenin se considerava um social-democrata autêntico, sempre em luta contra os desvios oportunistas. Todavia, essa situação mudou em agosto de 1914, quando os deputados do SPD no Reichstag votaram pela concessão de créditos de guerra a pedido do Kaiser. Isso significava o rompimento do internacionalismo operário, que constituía o núcleo mesmo dos esforços de três gerações de socialistas desde a publicação do Manifesto do Partido Comunista ("Proletários do mundo todo, uni-vos"). Ao receber a notícia do que tinham feito os camaradas alemães, Lenin ficou inicialmente incrédulo, mas depois declarou: "A partir de hoje não sou mais um social-democrata, eu sou um comunista." (Volkogonov, Lenin, a new biography, p.79).

Essa afirmação não era um blefe - Lenin não costumava brincar com as palavras -, mas tal rompimento beirava o impensável. Para um marxista nascido na década de 70, a social-democracia, por mais desgastada que estivesse, não era uma simples opção, mas a matriz de todas as opções disponíveis no horizonte político da esquerda. Uma coisa era atacar esta ou aquela corrente oportunista; outra, bem diferente, era cortar os laços com a social-democracia. Longe de ser uma alternativa constituída, o "comunismo" evocava um radicalismo que, no momento, só poderia ser um salto no escuro; mesmo assim, Lenin iniciou os preparativos para esse salto.

Durante algum tempo, nada mudou para os bolcheviques, que haviam se organizado como partido independente no Congresso de Praga de 1912. Os seis deputados bolcheviques na Duma sentavam-se pacificamente ao lado de sete deputados mencheviques, formando um único bloco parlamentar social-democrata. O partido só sentiria a onda de choque em 1917, quando Lenin proferiu suas famosas Teses de Abril no Palácio Táuride, diante de uma plateia estupefata. Esse momento, porém, ainda estava distante. Por ora, exilado em Zurique,  Lenin mergulhou no estudo da Ciência da Lógica, de Hegel, da qual tomou numerosas notas, cuja relevância e relação com os seus escritos políticos  permanece controversa. De qualquer modo, a temporada de estudos em nada arrefeceu a sua militância. Tanto nas suas intervenções nas conferências socialistas de Zimmerwald (1915) e de Kienthal (1916), quanto nos seus numerosos artigos, Lenin cumpriu com persistência e obstinação o que considerava a tarefa mais importante naquele momento:

"Sobre a social-democracia recai antes de mais nada o dever de revelar o verdadeiro significado dessa guerra e desmascarar implacavelmente a mentira, os sofismas e as frases patrióticas difundidas pelas classes dominantes, pelos latifundiários e pela burguesia em defesa da guerra.
(A Guerra e a Social-Democracia da Rússia, Obras Escolhidas, tomo 1, p.559).

Lenin ainda falava como social-democrata e enunciava as tarefas e deveres da social-democracia, mas cada um de seus escritos de setembro de 14 até o final de 16 insistia na falência da social-democracia e no fim da 2ª Internacional.


Nas suas linha gerais, o argumento de Lenin era este:


1. Os social-chauvinistas, isto é, os social-democratas que justificam seu apoio à guerra em nome do patriotismo e da defesa nacional estão iludidos.


1.1. Os interesses legítimos da classe operária somente poderão ser satisfeitos pelo internacionalismo socialista.
"O movimento socialista não pode triunfar na velha moldura da pátria. Ele cria formas novas e superiores de sociedade humana, nas quais as necessidades legítimas e as aspirações progressistas da classe operária de cada nacionalidade serão satisfeitas, pela primeira vez, pela unidade internacional, desde que as divisões nacionais existentes sejam removidas."
(The Position and Tasks of the Socialist International)
 
 
1.2. A guerra de 14 não é uma guerra patriótica de defesa, mas uma partilha forçada de mercados por parte das grandes potências.
"O capital tornou-se internacional e monopolista. O mundo está repartido entre um punhado de grandes potências, isto é, de potências que prosperam na grande pilhagem e opressão das nações. As quatro grandes potências da Europa, Inglaterra, França, Rússia e Alemanha, com uma população de 250 a 300 milhões de habitantes e com uma superfície de aproximadamente 7 milhões de quilômetros quadrados possuem colônias com uma população de quase quinhentos milhões (494,5 milhões), com uma superfície de 64,6 milhões de quilômetros quadrados, isto é, metade do globo terrestre (133 milhões de quilômetros quadrados sem a região polar). Acrescentai a isso três Estados asiáticos, a China, a Turquia e a Pérsia, que são agora despedaçados pelos salteadores que fazem uma ‘guerra libertadora’, precisamente o Japão, a Rússia, a Inglaterra e a França. Aqueles três Estados asiáticos, que podem chamar-se semicolônias (de fato eles são agora colônias em nove décimos), têm 360 milhões de habitantes e 14,5 milhões de quilômetros quadrados de superfície (isto é, 1,5 mais do que a superfície de toda a Europa).
Além disso, a Inglaterra, a França e a Alemanha investiram no estrangeiro um capital não inferior a 70 bilhões de rublos. Para receber o rendimentozinho ‘legítimo’ desta agradável soma – um rendimentozinho superior a 3 bilhões de rublos anuais – atuam os comitês nacionais de milionários, chamados governos, dotados de exércitos e de marinhas de guerra, que ‘instalam’ nas colônias e semicolônias os filhinhos e os irmãozinhos do ‘senhor milhões’ na qualidade de vice-reis, cônsules, embaixadores, funcionários de toda a espécie, padres e outros sanguessugas.
Assim está organizada, na época do mais elevado desenvolvimento do capitalismo, a pilhagem de aproximadamente um bilhão de habitantes da terra por um punhado de grandes potências. E no capitalismo é impossível qualquer outra forma de organização. Renunciar às colônias, às ‘esferas de influência’, à exportação de capitais? (...)"
(Sobre a palavra de ordem dos Estados Unidos da Europa, Obras Escolhidas, tomo 1, pp.570-571)


1.3. A guerra, isto é, a partilha dos mercados pelo uso da força, está indissoluvelmente ligada aos interesses capitalistas: seja por causa do desenvolvimento capitalista desigual, seja por causa da necessidade de reestabelecer as crises criadas pela "anarquia da produção".
"No capitalismo é impossível outra base, outro princípio de partilha que não seja a força. (...) O capitalismo é a propriedade privada dos meios de produção e a anarquia da produção. Preconizar a ‘justa’ partilha do rendimento nesta base é proudhonismo, estupidez de pequeno-burguês e filisteu. Não se pode partilhar de outra maneira que não seja ‘segundo a força’. E a força muda no curso do desenvolvimento econômico. Depois de 1871, a Alemanha fortaleceu-se umas 3 ou 4 vezes mais rapidamente do que a Inglaterra e a França, o Japão umas 10 vezes mais rapidamente do que a Rússia. Para comprovar a verdadeira força do Estado capitalista, não há nem pode haver outro meio que não seja a guerra. A guerra não está em contradição com as bases da propriedade privada, mas é um desenvolvimento direto e inevitável destas bases. No capitalismo é impossível o crescimento uniforme do desenvolvimento econômico das diferentes economias e dos diferentes Estados. No capitalismo, são impossíveis outros meios de reestabelecimento de tempos em tempos do equilíbrio alterado que não sejam as crises na indústria e as guerras na política"
(Sobre a palavra de ordem dos Estados Unidos da Europa, Obras Escolhidas, tomo 1, pp.570-571)


1.4. No Congresso de Sttutgart em 1907, os social-democratas aprovaram uma resolução que foi confirmada em Basileia cinco anos depois. Essa resolução continha uma emenda proposta por Lenin, Martov e Rosa Luxemburg, de acordo com a qual era preciso fazer todo esforço para evitar a guerra, mas "se, apesar disso, a guerra for deflagrada é dever deles [dos movimentos operários] intervir em favor do seu rápido término, empregando toda a sua força para utilizar a crise econômica e política criada pela guerra para levantar as massas e, desse modo, acelerar a derrubada do domínio da classe capitalista."
"A burguesia engana as massas quando disfarça a rapina imperialista com a velha ideologia da ‘guerra nacional’. Essa impostura é desmascarada pelo proletariado, que propôs o lema de transformar a guerra imperialista em guerra civil. Esse era o lema das resoluções de Stuttgart e Basileia, que tinham em mente não a guerra em geral, mas precisamente a guerra atual e falaram, não em ‘defesa da pátria’, mas em ‘acelerar a queda do capitalismo’, em utilizar a crise criada pela guerra para este propósito, e do exemplo fornecido pela Comuna de Paris, que era um caso de guerra de nações transformado em guerra civil.
(The Position and Tasks of the Socialist International)


1.4.1. Dada essa resolução, os social-democratas não devem acreditar que o pacifismo é uma opção aceitável.
"Recusa em servir nas forças militares, greves contra a guerra, etc. são meros despropósitos, o sonho covarde e mesquinho de uma luta desarmada contra a burguesia armada, o clamor vão pela destruição do capitalismo sem uma desesperada guerra civil ou uma série de guerras. Abaixo o farisaísmo piegas e os apelos vazios pela ‘paz a qualquer preço’!"
(The Position and Tasks of the Socialist International)


2. É um dever transformar a guerra imperialista em guerra civil revolucionária.
"A transformação da atual guerra imperialista em guerra civil é a única palavra de ordem proletária justa, indicada pela experiência da Comuna [de Paris], apontada pela resolução de Basileia (1912) e decorrente de todas as condições da guerra entre os países da burgueses altamente desenvolvidos. Por muito grandes que pareçam ser as dificuldades de tal transformação neste ou naquele momento, os socialistas nunca renunciarão ao trabalho preparatório sistemático, persistente, contínuo nesta direção, já que a guerra se tornou um fato.
Só nesta via o proletariado poderá escapar à sua dependência da burguesia chauvinista e, de uma ou de outra forma, mais ou menos rapidamente, dar passos decisivos na vida da verdadeira liberdade dos povos e na via para o socialismo."

(A Guerra e a Social-Democracia na Rússia, Obras Escolhidas, tomo 1, p. 564)  

 
 
 
2.1. No entanto, a 2ª Internacional foi corroída pelo oportunismo e não está à altura dessa tarefa.
"Defesa da colaboração de classe; abandono da ideia de revolução socialista e dos métodos revolucionários de luta; adaptação ao nacionalismo burguês; esquecimento do fato de que os limites das nações e países são historicamente transitórios; transformação da legalidade burguesa em fetiche; renúncia à perspectiva de classe e à luta de classe, por medo de repelir as "grandes massas da população" (isto é, a pequena-burguesia) – tais são, sem dúvida, as fundações ideológicas do oportunismo. E é de tal solo que se formou a atual mentalidade chauvinista e patriótica da maioria dos líderes da 2ª Internacional. Observadores dos mais diversos pontos de vista já tinham notado há tempos que o oportunismo predominava na liderança da 2ª Internacional. A guerra apenas revelou, de maneira rápida e evidente, a verdadeira medida deste predomínio."
(The Position and Tasks of the Socialist International)


3. É preciso fundar a 3ª Internacional.
"O colapso da Internacional é um fato. (…) A tentativa de Kaustsky de encobrir este colapso é um subterfúgio covarde. O colapso da Internacional é claramente o colapso do oportunismo, que agora está cativo da burguesia. (...)
A 2ª Internacional está morta, vencida pelo oportunismo. Abaixo o oportunismo e viva a 3ª Internacional, expurgada não somente dos vira-casacas, mas também do oportunismo.
A 2ª Internacional teve sua parte no trabalho útil de preparação prévia, organizando as massas durante o período longo e ‘pacífico’ da mais brutal escravidão capitalista e do mais rápido progresso capitalista durante o último terço do século XIX e o começo do XX. Cabe à 3ª Internacional a tarefa de organizar as forças do proletariado para a ataque aos governos capitalistas, para a guerra civil contra a burguesia de todos os países, pela tomada do poder político, pelo triunfo do socialismo."
(The Position and Tasks of the Socialist International)

***

A linha argumentativa de Lenin era clara, mas continha vários pressupostos que exigiam legitimação teórica e documentação empírica: era verdade que o capitalismo havia entrado numa nova fase, monopolista e financeira? O imperialismo tinha um nexo orgânico com o capitalismo? A guerra entre os países capitalistas era o resultado inevitável do imperialismo? O imperialismo havia mudado as condições do internacionalismo operário?  A social-democracia era realmente incapaz de defender a causa do proletariado?

Essas eram as questões às quais Lenin procurou dar resposta no seu trabalho mais influente: O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo.

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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein



Ernst Bloch



Из искры возгорится пламя






sábado, 20 de dezembro de 2014

A claraboia e o holofote #28 (VI)








Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Lenin 

6.  O bolchevismo: uma antologia breve



“The development of Bolshevism is a much more complex and intriguing topic than most of its historians, in either East or West, have yet recognized.”

Robert Service


Desde há muito tempo, o bolchevismo aparece dotado daquela atualidade persistente que constitui o apanágio dos conceitos-de-guerra. Daí que, como outros conceitos-de-guerra, a exemplo do fascismo, o bolchevismo tenha que ser periodicamente esconjurado, declarado morto, enterrado e novamente temido, num ritual previsível e cansativo.

Se os conceitos-de-guerra são resistentes às tentativas de esclarecimento é porque eles não são estruturas intelectuais de compreensão dos fenômenos, passíveis de correção ou refutação, mas clusters de paixões políticas conflitantes e extremamente reativas, que persistem como fantasmas. Todavia, apesar das velhotas assustadas, da sanha dos plumitivos de direita, ou dos tipos que se acham inteligentes quando "descobrem", com a certeza invejável que é privilégio dos tolos, outro complô vermelho; apesar de todo essas reações, cabe ao analista de boa-fé tentar identificar o conteúdo de verdade que subjaz ao som e à fúria, nem que seja para reconhecer o quão pobre e informe ele era.

Esta breve antologia não pretende mais do que expor a desavença dos juízos sobre o bolchevismo no campo mesmo dos seus militantes e dos acadêmicos que se ocupam do assunto. Quisera eu que isso servisse para incutir modéstia e prudência nos esquerdistas de pouca leitura e nos neoconservadores de menos leitura ainda, todos eles mui dados às fulminações ineptas e às diatribes infundadas. Todavia, é melhor não esperar tanto das vespas ou das pedras. 

Se, ao final, o leitor de boa vontade - o único que desejo junto a mim - se sentir perplexo e desorientado, o Sobrinho de Enesidemo se dará por satisfeito por ter levado água ao moinho do tio. 




1. A palavra do líder: 
o que são os bolcheviques e o que exigem do proletariado

Lenin, Duas táticas da social-democracia na revolução democrática, 1905 (Obras Escolhidas, tomo 1, pp. 413; 459)

Os jacobinos da social-democracia moderna – os bolcheviques, os vperiodistas, congressistas ou proletaristas – não sei já como dizer – querem elevar, com as suas palavras de ordem, a pequena burguesia revolucionária e republicana e, sobretudo, o campesinato até o nível do espírito democrático consequente do proletariado, que conserva completamente a sua individualidade como classe. Querem que o povo, isto é, o proletariado e o campesinato, ajuste contas com a monarquia e com a aristocracia “à maneira plebeia”, aniquilando implacavelmente os inimigos da liberdade, esmagando pela força a sua resistência, sem fazer nenhuma concessão à herança maldita do regime de servidão, do asiatismo, da degradação do homem.
Isto não significa de modo algum que pretendamos imitar obrigatoriamente os jacobinos de 1793, adotar as suas concepções, o seu programa, as suas palavras de ordem, os seus métodos de ação. Nada disso. Não temos um programa velho, mas um novo: o programa do Partido Operário Social-Democrata da Rússia. Temos uma palavra de ordem nova: a ditadura democrática do proletariado e do campesinato. Teremos também, se vivermos até à vitória autêntica da revolução, novos métodos de ação, que corresponderão ao caráter e aos fins do partido da classe operária, que aspira à revolução socialista completa. Com esta comparação queremos unicamente esclarecer que os representantes da classe avançada do século XX, o proletariado, isto é, os social-democratas, se dividem também nas duas alas (oportunista e revolucionária) em que se dividiam os representantes da classe avançada do século XVIII, a burguesia, isto é, os girondinos e os jacobinos.


***

A revolução no nosso país é de todo o povo, diz a social-democracia ao proletariado. Por isso tu deves, como a classe mais avançada e a única revolucionária até o fim, esforçar-te não só por participar nela da maneira mais enérgica, mas também por desempenhar nela um papel dirigente. Por isso, tu não deves encerrar-te num quadro estreitamente concebido da luta de classe, como um movimento sobretudo sindical, mas, pelo contrário, deves esforçar-te por ampliar este quadro e o conteúdo da tua luta de classes até abarcar neste quadro não só todas as tarefas da atual revolução democrática russa de todo o povo mas também as tarefas da futura revolução socialista. Por isso, sem ignorar o movimento sindical, deves na época da revolução trazer para primeiro plano as tarefas da insurreição armada, da criação de um exército revolucionário e de um governo revolucionário, como únicas vias para a vitória completa do povo sobre o czarismo, para a conquista da república democrática e da verdadeira liberdade política.



2. A  versão oficial do apparatchik:
a história do partido bolchevique como cristalização progressiva e contínua da consciência de classe do proletariado

Gregory Zinoviev, History of the Bolshevik Party (Lecture One), 1923


Nem a classe operária nem o partido dos operários nascem de repente. A classe operária toma forma gradualmente ao longo de décadas: a população rural inunda as cidades, uma parte se fixa lá, outra parte volta para casa; ela fica cozinhando nos caldeirões das cidades industriais, criando a classe operária com sua psicologia característica. De maneira parecida, um partido da classe operária somente toma forma ao longo de anos e décadas. Certos grupos consideraram subjetivamente que estavam defendendo os operários, como por exemplo os mencheviques fizeram na primeira revolução. Mas só aos poucos, à medida que a história suscita todos esses problemas que eu tentei esboçar para vocês, isto é, os problemas fundamentais que separam as pessoas em lados diferentes, transformando os amigos em inimigos, colocando-os em lados opostos das barricadas e produzindo a guerra civil – somente então a estratificação, cristalização, cisão e reunificação começam, e somente então um partido definido toma forma. (...)
Tudo o que dissemos acima é necessário para uma atitude consciente quanto à história de nosso partido. Sua criação, seu “processo de formação”, ou, para usar termos filosóficos, toda a sua pré-história e seus primeiros capítulos que levaram muitos anos, nada é senão uma gradual cristalização do partido dos operários no seio da classe operária. Portanto, quando falamos do 25º aniversário de nosso partido isto deve ser compreendido com certas restrições, como veremos por meio de alguns exemplos.
A Liga dos Operários do Norte da Rússia, fundada com a assistência de Plekhanov e organizada sob a liderança de Khalturin, um marceneiro, e Obnorsky, um montador, deve ser considerada a primeira célula de um partido operário. Ela nasceu no final de 1877 ou mesmo em 1878 em São Petersburgo e foi a primeira a defender a ideia de uma luta política da classe operária. Esta organização, naturalmente, ainda não era marxista. Exatos 45 anos se passaram desde 1878 e não seria forçar demais começar a contar a cronologia de nosso partido a partir da formação da Liga dos Operários do Norte da Rússia.
O Grupo de Emancipação do Trabalho foi fundado em 1883. Foi formado numa época em que uma geração de revolucionários, tendo à frente Plekhanov e Axelrod, que tinha sobrevivido à miséria do movimento narodniki, rompeu com o populismo e reconheceu a necessidade de construir um partido com base na classe operária. Este grupo expôs pela primeira vez, em 1885, um programa preliminar do Partido Social Democrata, constituindo assim a primeira organização marxista na história do nosso movimento revolucionário, o que lhe dá todo direito de ser o ponto de partida cronológico do nosso partido. Neste caso, poderíamos dizer que estamos celebrando seu 40º aniversário.
Poderíamos considerar como terceira data o Primeiro Congresso do Partido, que aconteceu em Minsk em 14 de março de 1898, e se o tomarmos como nosso ponto de partida, então podemos celebrar nosso 25º aniversário. Todavia, deve-se notar que essa data é acidental. O congresso praticamente não teve consequências. A organização formada em Minsk foi desfeita cerca de 24 horas depois do congresso, praticamente todos os seus participantes foram presos enquanto quase todo o Comitê Central de nosso partido caiu nas garras dos gendarmes e não teria condições de realizar nem a centésima parte do programa do partido.
Mais tarde se seguiu o nosso Segundo Congresso, que aconteceu em 1903, começando em Bruxelas e terminando em Londres. Fundamentalmente esse é que foi o nosso primeiro congresso e poderíamos dizer com razão que, neste caso, estamos celebrando o 20º aniversário do nosso partido. Então em Londres, em 1905, teve lugar o Terceiro Congresso de nosso partido, um congresso genuíno do nosso partido bolchevique, já que os mencheviques não estavam presentes. (Este foi o ponto de cisão com eles). Este congresso pode ser considerado como o primeiro, pois ele elaborou as táticas dos bolcheviques às vésperas da primeira revolução, a de 1905.  Neste caso, poderíamos celebrar o 18º anversário da fundação do nosso partido. E finalmente poderíamos dizer que devemos contar a história do nosso partido a partir do momento da ruptura completa com os mencheviques, que aconteceu em 1912, quando começamos a ressuscitar nosso partido depois do prolongado período de contra-revolução, a partir do recrudescimento precipitado pela greve [das minas] de Lena com os eventos que se seguiram [o massacre dos trabalhadores].
Foi na conferência russa em Praga, onde tampouco nenhum menchevique estava presente, que nós dissemos que o velho Comitê Central não mais existia e que estávamos construindo o partido novamente. Falando de maneira rigorosa, foi aí que as fundações de nosso partido foram assentadas após a derrota de 1905 e depois da fase de contra-revolução pela qual ele passou.
Indo mais adiante neste caminho, poderíamos dizer que a ruptura completa com os mencheviques não veio em 1912, mas em 1917. E isso é correto porque depois da revolução de fevereiro e depois da derrubada do Czarismo, nesse mesmo salão fez-se uma tentativa de marcar um congresso unificado da social-democracia para o qual todos foram convidados, ocasião em que  Lenin enunciou suas celebradas teses que entraram na história do socialismo internacional, as teses sobre o poder do Soviete. Até o último instante todos pensavam que, depois da queda do Czarismo, a social-democracia conseguiria se unificar e que os bolcheviques se fundiriam com os mencheviques.
E como ponto final, poder-se-ia dizer que somente no Sétimo Congresso em 1918, depois da paz de Brest, quando decidimos rebatizar o partido como Partido Comunista Russo é que ele foi finalmente formado.



3. A origem da cisão entre bolcheviques e mencheviques de um ponto de vista trotskista


Alan Woods, Bolshevism: The Road to Revolution, Part 1 The Birth of Russian Marxism

[O Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo de 1903]

O grupo Iskra tinha, em teoria, uma clara maioria de 33 votos. Os oponentes declarados de Iskra tinham 8 votos – três dos Economistas e cinco do Bund. Os votos restantes eram dos elementos indecisos e oscilantes, os quais Lenin chamou mais tarde o “centro” ou o “pântano”. No princípio, tudo parecia estar fluindo bem do lado dos Iskraitas. Havia uma unanimidade sobre todas as questões políticas no campo de Iskra. Porém subitamente tudo começou a mudar. Durante a 22ª sessão, quando o Congresso já transcorria há duas semanas, as diferenças entre Lenin e Martov vieram à tona. A cristalização das duas tendências no campo de Iskra mal podia ser prevista. Houvera tensões, naturalmente, mas nada que parecesse justificar uma cisão. Num certo número de questões secundárias (o papel do Comitê Organizador, o grupo Bor’ba, Yuzhny Rabochii), ficou evidente que alguns dos membros de Iskra tinham votado com a ala direita e o “pântano”. Mas tudo isso parecia ser mera anedota. Em todas as questões importantes, o campo de Iskra se manteve unido, mas subitamente a unidade foi quebrada por um choque aberto entre Lenin e Martov a respeito de uma questão de organização.
A primeira cláusula das regras do partido lidava com a questão: Quem é um membro? No esboço de Lenin lia-se: ‘Um membro do POSDR é aquele que aceita o seu programa e apoia o Partido tanto financeiramente quanto pessoalmente, tomando parte em uma das suas organizações.” Martov se opôs a esta cláusula e avançou como alternativa que o membro era alguém que aceitava o programa, que apoiava o Partido financeiramente e "dava ao partido sua cooperação pessoal regular sob a direção de uma das organizações do partido". Pelo visto, havia apenas uma ligeira diferença entre as duas fórmulas. De fato, o significado real das diferenças somente se tornou claro mais tarde. "As diferenças ainda eram intangíveis", lembrava-se Trotsky, "as pessoas estavam meramente tateando e trabalhando com coisas impalpáveis". Mas por trás da proposta de Martov havia uma certa "brandura", uma atitude conciliatória que equivalia a esfumar as diferenças entre membros e simpatizantes, entre ativistas revolucionários e companheiros de viagem. No momento em que todas as energias de Iskra deveriam ter sido concentradas no combate do velho amorfismo anarquista e da mentalidade de círculo, a posição de Martov representava um grande passo para trás. Não admira que isso tenha levado a uma luta azeda no campo de Iskra, dentro e fora do Congresso. Nos meses e anos seguintes ao Congresso, uma mitologia inteira foi construída a respeito desse incidente. Alega-se que Lenin defendia o centralismo democrático e um partido pequeno e conspiratório, enquanto o objetivo de Martov seria um partido democrático de base ampla, que permitisse a participação dos trabalhadores. Ambas as ideias são completamente falsas.
“Falando sério, vamos pegar o exemplo de um professor que se considera um social-democrata e que se declara como tal. Se nós adotarmos a fórmula de Lenin, jogaremos fora toda uma ala  daqueles que, mesmo não podendo ser admitidos numa organização, ainda assim são membros... Devemos tomar cuidado para não deixar de fora das fileiras do partido as pessoas que, de modo consciente, embora não muito ativo, associam-se ao partido.”
A classe operária e suas organizações não existem num vazio, mas estão cercadas pelas outras classes e grupos sociais. A pressão das outras classes, da opinião pública burguesa, e especialmente a pressão das camadas intermediárias, da classe média e dos intelectuais que cercam as organizações operárias está sempre presente. As demandas dessas camadas para que os operáriso adaptem seus programas, métodos e estruturas organizacionais para se adequar aos interesses e preconceitos da pequena burguesia são uma pressão constante. Um longo período de coexistência muito próxima entre a classe média radicalizada na figura dos marxistas legais deixou sua marca na consciência dos membros mais velhos do Grupo de Emancipação do Trabalho. Eles se moviam entre estratos sociais divorciados da classe trabalhadora, formavam amizades pessoais com o professores universitários quase-marxistas radicais, advogados e doutores que os ajudavam com doações financeiras e palavras de encorajamento, mas que não estavam preparados para sujar as mãos com o trabalho prático revolucionário. “Eu apoio os objetivos de vocês, mas seria inconveniente e arriscado aparecer abertamente com um socialista. Pense no meu emprego, na minha posição, na minha carreira” etc. Inconscientemente, ou talvez semi-conscientemente, Axelrod, Zasulich e Martov estavam agindo como porta-vozes desse estrato social, como correia de transmissão das pressões das outras classes sobre o partido operário.
Quão significativas pudessem ser as consequências da cisão de 1903 no futuro, as diferenças que tinham emergido no Congresso ainda não estavam desenvolvidas. A asserção de que no Segundo Congresso, bolchevismo e menchevismo já existiam como tendências políticas é totalmente sem fundamento. Em todas as questões políticas havia uma virtual unanimidade dentro da tendência de Iskra.
O que estava por trás da cisão de 1903 era a dificuldade de ultrapassar a fase inicial de pequeno cículo. Cada período de transição de um estágio do desenvolvimento do partido para outro inevitavelmente causava um certo nível de atrito interno. Já comentamos os desgastes e tensões envolvidas na transição anterior da propaganda para a agitação. Agora os mesmos problemas ocorriam, mas com resultados muito mais sérios. O objetivo principal da tendência marxista representada por Iskra era tirar o partido do período embriônico de círculo e assentar  fundações sólidas para um partido operário marxista forte e unido na Rússia. Contudo, mesmo antes do Congresso, Martov começara a expressar dúvidas e vacilações quanto a ser desejável agendar um congresso do partido como um todo. Não seria melhor fazer um congresso da tendência de Iskra? As hesitações refletiam o conservadorismo, a rotinização e o medo dos veteranos de começar a caminhar numa nova direção.




4. Tentativas de definir o que é bolchevismo

Tom Bottomore, Dicionário do Pensamento Marxista

A posição bolchevique fundamentava-se numa estratégia política que demandava o primado do engajamento ativo na prática política, com o partido marxista como a “vanguarda” ou direção da classe operária. O partido devia compor-se de marxistas militantes, atuantes, dedicados à “revolução socialista”: os simpatizantes da ideia socialista e os membros não-atuantes deveriam ser excluídos da condição de membros. O partido tinha a tarefa de dar direção à luta revolucionária contra a burguesia (e os outros grupos dominantes opressores, como a autocracia); tinha também o importante papel de levar às massas a teoria marxista e a experiência revolucionárias. Para os bolcheviques, as massas não chegam espontaneamente a uma perspectiva política fundada na consciência de classe. Trata-se de um partido de “tipo novo”, no qual a decisão baseia-se no princípio do centralismo democrático. Os membros participam da formulação da política a ser adotada e da escolha da direção, mas a execução dessa política deve ser disciplinada, e a lealdade à direção é exigida. Só pela execução centralizada da linha política e pela fidelidade inabalável à liderança pode o partido constituir-se numa arma eficiente do proletariado no seu processo de luta revolucionária contra a burguesia. Lenin tinha em mente um modelo de organização partidária adequado às opressivas condições políticas da Rússia czarista, ao passo que os outros bolcheviques, que viviam em sociedades mais liberais, deram mais ênfase ao elemento democrático.
(David Lane)



G. Bensussan, G. Labica, Dictionnaire Critique du Marxisme

Desde a sua origem, o bolchevismo se apresenta como uma teoria da política proletária. 
(...)
O bolchevismo foi o fautor da revolução ou o bolchevismo foi levado pelo curso dos acontecimentos? As duas interpretações simétricas pecam por mecanicismo. De 1903 até o começo dos anos 20, o bolchevismo é a única força política capaz de entendimento dos momentos históricos. O caminho leninista feito de “análise concreta de situações concretas”, do estudo das contradições em suas especificidades, funda uma prática flexível e retificável em conexão com a elaboração teórica. Se, em 1917, os bolcheviques formam uma autêntica vanguarda, é porque formulam palavras de ordem traduzindo as aspirações das massas e constroem uma aliança de classes dinâmica por meio dos compromissos necessários à superação das contradições que poderiam retardá-la (o Decreto sobre a Terra é a expressão de um compromisso: os bolcheviques renunciam a seu programa agrário e adotam o "mandato camponês" votado pelo Congresso dos Sovietes camponeses). Eles "trazem ao movimento que suscitaram, pela própria ação de Lenin, uma coordenação geral e uma orientação que tornam explícito o que era ao mesmo tempo incoerente e convergente: a vontade de derrubar o regime"(Marc Ferro). As crises do partido bolchevique exprimem sua aptidão a retificar as análises e diretrizes para dar conta do novo. Elas manifestam sua vitalidade e a qualidade da relação teoria/prática que está em obra em sua práxis.
(...)
Sob muitos aspectos, o bolchevismo é um fenômeno russo. Da Rússia autocrática e camponesa procedem sua organização, sua prática de alianças, a subordinação dos sindicatos ao partido, as modalidades de conquista e de exercício do poder. Durante a vida de Lenin, os bolcheviques estavam conscientes desta especificidade.
(...)
Nisso se constitui atualidade do bolchevismo: a Revolução não é submissão às leis da História nem realização da Utopia.”
 (Jean-Marc Gayman)


N. Bobbio, N. Matteucci, G. Pasquino, Dicionário de Política

Em 1903 Lenin não tinha certamente elaborado a estratégia política que devia concretizar-se na Revolução de Outubro. Todavia, a importância prioritária por ele atribuída desde o início ao problema organizativo — a formação de um partido homogêneo, centralizado e altamente disciplinado — se tornou, desde aquele momento, uma característica específica do bolchevismo; característica que se tornou, como provam os fatos, essencial não somente para sobreviver nas condições da clandestinidade, mas também para equipar-se de instrumentos de ação, intervenção e mobilização operária — o partido por muito tempo foi formado especialmente por intelectuais e pequenos-burgueses — e para permitir, enfim, aquela profunda ligação entre a organização e o movimento espontâneo das massas que se realizou quando este explodiu quase inesperadamente, em fevereiro de 1917, derrubando o czarismo. Ter-se-ia, dessa forma, em grandes linhas, realizado o plano que Lenin tinha traçado no início do século: um partido depositário da consciência de classe, capaz de proporcionar programas, estratégias, táticas e instrumentos organizativos a um proletariado destinado sozinho a gastar suas energias em ações reivindicativas ou em revoltas sem resultados políticos.
Sob certo ponto de vista, o bolchevismo pode ser efetivamente considerado aquilo que foi definido na historiografia oficial e, em grande parte, hagiográfica da União Soviética: uma aplicação criativa do marxismo às condições específicas de um país atrasado. A saber, um país em que ao proletariado cabia o papel que alhures tinha sido desempenhado pela burguesia; e em que precisava omitir algumas fases intermediárias que no Ocidente tinham sido marcadas pela revolução liberal. Por outro lado, o bolchevismo aparece como a corrente social-democrática que mais diretamente se relaciona com a tradição russa do populismo utopista e do jacobinismo conspirador, colocando-se num campo estranho à teoria política do marxismo.
(Lisa Foa)


E. Acton, V. Cherniaev, W. G. Rosenberg, Critical Companion to the Russian Revolution 1914-1921 (pp. 235; 238; 241)

[antes de 1917]
A organização do partido não era não diferente dos outros partidos. O partido bolchevique era um partido de massa. Os membros comuns do partido elegiam seus comitês locais; conferências locais do partido mandavam delegados para as assembleias em Petrogrado, onde as políticas eram debatidas e os corpos centrais do partido eram eleitos. Estes corpos centrais do partido forneciam um jornal central, um conjunto de diretrizes e todo o pessoal disponível. Os bolcheviques chamavam isto de "centralismo democrático". Mas quão democrático e quão centralista era na realidade? No geral, havia amplo espaço para discussão no nivel local.

[depois de 1917]
A tomada do poder permitiu a Lenin, junto a seu aliado Trostky, dar uma outra guinada decisiva na política do partido. Contra todas as expectativas, eles recusaram admitir os mencheviques e os Socialistas Revolucionários no novo governo soviético. Isto foi discutido no Comitê Central do Partido Bolchevique e, depois de algumas semanas de incertezas, a vontade de Lenin e Trotsky prevaleceu.
(...)
Esta combinação de situação, acidente e ideologia também teve um efeito nos arranjos inter-instituicionais feitos dentro do Estado soviético. Inicialmente a maioria dos líderes centrais bolcheviques tinha como garantido que o controle sobre o Estado seria assegurado pelo estabelecimento de grandes linhas políticas no partido e pela indicação de representantes do partido dentro das principais instituições estatais. A liderança não esperava a confusão que haveria entre as instituições. Na segunda metade de 1918 e no primeiro trimestre de 1919 foi decidido que o papel de agente estatal supremo teria que ser imposto, e do ponto de vista bolchevique o agente mais confiável para tal era o próprio partido bolchevique. Na prática, o partido se tornou sumo executante da autoridade do Estado.  Seus órgãos no nível central e local se tornaram os órgãos executivos mais elevados.
Isto não ocorreu com base em algum plano prévio; pelo contrário, nem O Estado e a Revolução, de Lenin (1917-18) nem o vários escritos programáticos de Buhkarin mencionaram esse tópico das relações entre partido e governo. E a forma específica que o partido-Estado soviético assumiu foi inventada com uma grande porção de improvisação. Mas as ações ex tempore foram seguramente empreendidas dentro das moldura dos principios gerais e inclinações do partido bolchevique. Nisso a ideologia exerceu o seu papel.
(...)
Os bolcheviques nas organizações militares e civis do partido ainda acreditavam que a sua luta levaria afinal à transformação das sociedades ao redor do globo. Não haveria mais opressão nem exploração. O comunismo estava ao alcance das mãos. Animados com sua vitória na guerra civil, os líderes bolcheviques assumiram que os métodos que eles tinham ou introduzido ou reforçado durante os anos de conflito militar – métodos de organização autoritária no partido, Estado e sociedade – ofereciam os meios mais confiáveis de realizar o que os velhos bolcheviques objetivavam no tempo de paz. Seja de maneira deliberada ou não, os objetivos em si mesmo sofreram mudanças. Não havia mais muito equilíbrio entre a revolução vinda de cima e a revolução vinda de baixo. O que se perdia com este tipo de pensamento era qualquer forma de compromisso sério com a auto-administração popular autônoma que aparecia nos pronunciamentos dos bolcheviques em 1917. Tal utopismo jamais tinha sido isento de fortes elementos de autoritarismo, mas ao final da guerra civil as premissas autoritárias faziam parte do núcleo incontestável do bolchevismo.
O utopismo mesmo não desapareceu; ele essencialmente se tornou autoritário também.
(Robert Service)


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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein



Ernst Bloch



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