quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A claraboia e o holofote #20





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A Comuna de Paris (parte 2)




1. O embaraço dos historiadores


A Comuna foi efêmera; suas realizações, poucas e o massacre final obliterou tudo o mais. No entanto, ela desafia qualquer esforço de neutralidade e revolve as paixões políticas da mesma maneira que os acontecimentos e personagens do 1793 francês.

O assunto é embaraçoso principalmente para os historiadores que trabalham com sínteses de amplo alcance, pois não é possível ignorar a Comuna, dada a poderosa memória que ela gerou, mas é muito difícil inseri-la nos processos que moldaram a França, a Europa, o mundo e o século. 

Uma passagem de Robert Schnerb (1900-1962), historiador afinado com os métodos quantitativos da escola dos Annales e com a melhor historiografia política francesa - a de Albert Mathiez e de George Lefrebvre -, constitui um exemplo de como "neutralizar" um evento através da perspectiva histórica. No alentado volume que escreveu sobre o século XIX para a História Geral das Civilizações, dirigida por Maurice Crouzet, Schnerb resume num breve parágrafo o que foi a Comuna. As poucas palavras com que o historiador se despachou do assunto testemunham não apenas que a historiografia francesa de meados do século XX recusava cada vez mais os eventos em proveito das estruturas (fazendo desaparecer o horizonte revolucionário e sua miríade de incidentes), mas também sinalizam a tentativa de esconjurar o caráter irruptivo e ativo da Comuna: ela seria somente uma reação em que a espontaneidade popular se combinou com o programa da Primeira Internacional num momento de desespero:


A Comuna? Um levante espontâneo de citadinos exasperados com os sofrimentos de um longo assédio, o espetáculo da derrota e da capitulação e a vitória eleitoral de notáveis “rurais”. Nem por isso deixa de assumir o aspecto do poder proletário: poder precário, é verdade, bloqueado numa grande cidade isolada e no extremo de seus recursos, mas que, a despeito de suas divisões, adota a bandeira vermelha, decreta a separação das Igrejas e do Estado, abole o trabalho noturno nas padarias, encoraja a organização de “associações solidárias de capital coletivo inalienável”, propõe um programa federalista e internacionalista cuja inspiração as duas tendências principais da Internacional podem reivindicar. Esmagada após um combate ainda mais atroz do que em 1848, tem uma repercussão profunda. Mas sua derrota acelera a ruína da Primeira Internacional e Thiers extrai daí o corolário: “Não se fala mais do socialismo e se faz bem. Estamos livres dele.”


(Robert Schnerb, O século XIX O apogeu da Civilização Europeia, História Geral das Civilizações, dirigida por Maurice Crouzet, volume 13, Difel, 1958 p. 259)


Se as sínteses gerais podem reduzir a Comuna a um parêntese histórico, isso não é permitido àqueles que se dedicam a estudar Paris, os primeiros anos da Terceira República ou os movimentos revolucionários europeus do século XIX. Nesse caso, a neutralidade é impossível pois o alinhamento político do historiador é um componente evidente de sua abordagem. 


Alfred Fierro (nascido em 1941), grande especialista na história de Paris, sempre se dedicou aos  documentos antigos e aos arquivos que os preservam. É bastante compreensível que, apaixonado pela organização e pela continuidade, Fierro se filie ao ponto de vista conservador segundo o qual a Comuna foi tão-somente espírito de facção, insensatez anárquica e destruição criminosa:


Entre os oitenta e dois eleitos, a Internacional dispunha de trinta e dois representantes, depois quarenta e dois por causa das eleições complementares. Ela domina a Comuna, mas está dividida em blanquistas, proudhonianos, “jacobinos”, republicanos românticos inclassificáveis e exaltados como Flourens, Delescluze, Pyat. Os imbecis (Félix Pyat) estão ao lado dos iluminados (Babick, “filho de Deus”, adepto da religião “fusionista” que reunia hinduísmo, islamismo e cristianismo), dos maníacos perigosos (Rigault) e dos loucos mansos (Allix, inventor de um sistema telegráfico baseado na cópula dos caracóis). Esta Comuna heteróclita vai se dilacerar vorazmente e as querelas pessoais irão sobreviver à derrota.

Os conflitos permanentes entre o Comitê Central e a Comuna teriam bastado para paralisar sua ação mesmo se seus membros tivessem sido competentes. (...) A apocalíptica “semana sangrenta” é o resultado lógico dessa total incúria. A execução pelos communards de uma centena de reféns, de clérigos, dos quais sobretudo o arcebispo Monsenhor Darboy, o incêndio, pelas pétroleuses, do Palácio das Tulherias, do ministério das Finanças, da prefeitura de polícia, do Hôtel de Ville, da Assistência Pública, dos Arquivos da Cidade e do Departamento, da Direção de Artilharia, do Conselho de Estado  e do Tribunal de Contas (quai d’Orsay), da manufatura dos Gobelins, dos entrepostos e docas de La Villete etc, os massacres perpetrados pelos soldados de Versalhes, tudo isto constitui o resultado e a última, mas desastrosa, manifestação do romantismo revolucionário da pequena burguesia francesa dos quais os últimos representantes são Victor Hugo e Jules Vallès. Este pensamento confuso e trapalhão que reinou na França de 1815 a 1871 se encarna na Comuna, a respeito da qual Camille Pelletan, socialista que testemunhou os acontecimentos, pôde dizer: "Ficaríamos muito embaraçados se tentássemos dizer a quem Paris obedeceu nos meses de abril e de maio de 1871”.

(Alfred Fierro, Histoire et Dictionnaire de Paris, Robert Lafont, 2001 pp. 203-204)


A esquerda comunista - desde o próprio Marx - costuma avançar rapidamente para o necrológio da Comuna, tida, no geral, como uma experiência prematura e equivocada, mas da qual se podem extrair lições preciosas para as futuras revoluções sociais. A propósito disso, que se leiam as palavras do historiador marxista Eric Hobsbawn (1917-2012) na sua conhecida síntese histórica do longo século XIX:


Como tantas coisas na história revolucionária do período, a Comuna de Paris foi importante menos pelo que realizou do que pelo que antecipou; ela foi mais formidável como símbolo do que como fato. Sua história real foi recoberta pelo mito extremamente poderoso que ela gerou na própria França e (por meio de Marx) no movimento socialista internacional; um mito que reverbera até os dias de hoje na República Popular de China. Ela foi extraordinária, heroica, dramática e trágica, mas em termos fatuais não passou de um efêmero (e malfadado, na opinião dos mais sérios observadores) governo insurrecional dos trabalhadores numa única cidade, cuja maior realização foi a de ser realmente um governo, mesmo que tenha durado menos de dois meses. Lenin, depois de Outubro de 1917, contaria os dias até o momento em que poderia dizer em triunfo: nós duramos mais do que a Comuna. Contudo os historiadores deveriam resistir à tentação de diminui-la retrospectivamente. Se ela não ameaçou seriamente a ordem burguesa, causou pavor pela sua mera existência. 
(...)
Quem sabe quantos communards foram assassinados durante a luta? Milhares foram massacrados depois da luta: o governo de Versalhes admitiu 17000, mas esse número pode ser no máximo metade da verdade. Mais de 43000 foram feitos prisioneiros, 10000 sentenciados, dos quais quase a metade foi mandada para o exílio penal na Nova Caledônia, o resto para a prisão. Esta foi a vingança das “pessoas respeitáveis”. Daí por diante um rio de sangue correu entre os trabalhadores de Paris e seus superiores. Também a partir daí os revolucionários sociais aprenderam o que os espera caso não consigam manter o poder.

(E.J. Hobsbawn, The Age of Capital 1848-1875, Abacus, 1977  pp. 200-202)

O que é comum aos historiadores, não importa a sua cor política, é o seu desconforto diante da Comuna de Paris. Esse desconforto se expressa em termos que sempre  a situam fora do cânone dos processos históricos que moldaram o século XIX e parte do século XX, como a consolidação da França republicana, o avanço do movimento operário, o crescimento da social-democracia ou a escalada imperialista e armamentista das potências europeias.

A Comuna é vista como ponto final desastroso do arco revolucionário jacobino-romântico-comunista ou como antecipação desastrosa do soviete. De qualquer modo, é o desastre que prevalece: o amontoado de mortos – não importa o seu número exato – constitui uma advertência. Nisso, os historiadores de direita ou de esquerda dão razão à Thiers: “O solo está juncado de cadáveres. Esse espetáculo pavoroso servirá de lição.

Não se deve esquecer que Thiers também era historiador.



2. As vozes da Comuna


Da minha parte, arrisco a opinião de que os historiadores sentem falta de líderes carismáticos. A Comuna não teve um Robespierre, um Danton ou um Marat, não teve nem mesmo um Lamartine... Os homens de 1871 foram demasiado prosaicos. Talvez o caráter verdadeiramente coletivo da Comuna, talvez a brevidade da sua existência tenha impedido o surgimento daqueles protagonistas convencionais que garantem a audiência das narrativas históricas.

Se, como quer Alfred Fierro, a Comuna deu voz e expressão a algumas figuras espantosas pela inépcia e pela bizarrice, dificilmente isso poderia constituir uma objeção séria, uma vez que figuras de mesmo jaez também estavam presentes no séquito de Luís Felipe ou de Napoleão III, para não mencionar os ministérios e assembleias da Terceira e da Quarta República... Mesmo nesse aspecto os homens da Comuna foram demasiado prosaicos.

Tanto quanto a ausência de líderes, talvez cause assombro a colossal loquacidade da Comuna. A participação das massas populares, a liberdade de expressão, a urgência dos acontecimentos, o calor das paixões políticas, a ausência de um centro ideológico, tudo incentivou a multiplicação de jornais, folhetos, cartazes, cartas, diários e memórias que formam um cipoal cerrado de discursos a desafiar o  ânimo e a paciência dos investigadores. 

Tal multiplicidade de vozes levou o historiador Jacques Rougerie (nascido em 1932) a publicar, por ocasião do centenário da Comuna, o livro Paris Libre 1871, uma coletânea de textos “communeux” (o autor recusa o termo pejorativo “communards”). Um deles tem importância especial: a Declaração ao Povo Francês, cujo propósito era definir os objetivos e a natureza da Comuna.  Apresentado ao conselho no 19 de abril de 1871, o texto foi aprovado de modo quase unânime, com apenas um voto contrário.  (Nessa altura, nem é preciso sublinhar que os muitos e desencontrados pontos de vista nunca fizeram da Comuna um lugar de consensos fáceis.)

No meio das muitas vozes da Comuna, foi essa que decidi transcrever por completo:



Declaração ao Povo Francês

Comuna de Paris

Programa

No conflito doloroso e terrível que mais uma vez ameaça Paris com o horrores do cerco e do bombardeamento, que faz correr o sangue francês, não poupando nem nossos irmãos, nem nossas mulheres, nem nossos filhos exterminados pelos obuses e pelas metralhas, é necessário que a opinião pública não se divida, que a consciência nacional não seja confundida.

É preciso que Paris e o pais inteiro saibam qual é a natureza, a razão, o propósito da revolução que se fez; é justo, enfim, que a responsabilidade pelo luto, pelo sofrimento e pela infelicidade dos quais nós somos vítimas recaiam sobre aqueles que, depois de terem traído a França e entregue Paris ao estrangeiro, buscaram com uma obstinação cega e cruel a ruína da grande cidade, a fim de enterrar no desastre da República e da Liberdade o duplo testemunho da sua traição e do seu crime. 

A Comuna tem o dever de afirmar e de definir as aspirações e desejos da população de Paris; de definir o caráter do movimento de 18 de março, incompreendido, desconhecido e caluniado pelos políticos que tomam assento em Versalhes.

Outra vez Paris trabalha e sofre pela França toda, preparando-lhe por meio de seus combates e de seus sacrifícios, a regeneração intelectual, moral, administrativa e econômica, a glória e a prosperidade.

O que Paris exige?

O reconhecimento e a consolidação da República, única forma de governo compatível com os direitos do povo e com o desenvolvimento regular e livre da sociedade.

A autonomia absoluta da Comuna estendida a todas as localidades da França, assegurando a cada pessoa a integralidade de seus direitos e a todos os franceses o pleno exercício de suas faculdades e de suas aptidões, como homem, cidadão e produtor. A autonomia da Comuna não terá por limites senão o direito de autonomia igual para todos as outras comunas que aderirem ao contrato, cuja associação deve assegurar a unidade francesa.

Os direitos inerentes à Comuna são:

O voto do orçamento comunal, receitas e despesas; a fixação e a repartição do imposto, a direção dos serviços locais, a organização de sua magistratura, da polícia interior e do ensino; a administração dos bem pertencentes à Comuna.

A escolha por eleição ou por concurso, com a responsabilidade e o direito permanente de controle e de revogação, dos magistrados e funcionários comunais de todas as ordens. A garantia absoluta da liberdade individual e da liberdade de consciência.

A intervenção permanente dos cidadãos nos negócios comunais pela livre manifestação de suas ideias, a livre defesa de seus interesses; garantias dadas a essas manifestações pela Comuna, única encarregada de vigiar e assegurar o livre e justo exercício do direito de reunião e de publicidade.

A organização da defesa urbana e da Guarda nacional, que elege seus chefes e vela sozinha pela manutenção da ordem na cidade.

Paris não quer nada mais a título de garantias locais, contanto que encontre a realização e a prática dos mesmos princípios práticos na grande administração central, delegação das comunas federadas. 

Mas, em favor da sua autonomia, e aproveitando da sua liberdade de ação, ela se reserva o direito de efetuar à sua maneira as reformas administrativas e econômicas que sua população exige, de criar instituições próprias para desenvolver e propagar a instrução, a produção, a troca e o crédito, para universalizar o poder e a propriedade, segundo as necessidades do momento, o desejo dos interessados e os dados fornecidos pela experiência.

Nossos inimigos se enganam ou enganam o país quando acusam Paris de querer impor sua vontade ou sua supremacia ao restante da nação e de pretender uma ditadura que seria um verdadeiro atentado contra a independência e a soberania das outras comunas.

Eles se enganam ou enganam o país, quando acusam Paris de procurar a destruição da unidade francesa constituída pela Revolução sob as aclamações de nossos pais, que vieram à festa da Federação de todos os pontos da velha França.

A unidade, tal como nos foi imposta até hoje pelo Império, a monarquia e o parlamentarismo, é apenas centralização despótica, sem inteligência, arbitraria ou onerosa.

A unidade política, tal como a quer Paris, é a associação voluntária de todas as iniciativas locais, o concurso espontâneo e livre de todas as energias individuais em vista de um objetivo comum, o bem-estar e a segurança de todos. A Revolução comunal, iniciada pela iniciativa popular no 18 de março, inaugura uma nova era de política experimental, positiva e científica.

É o fim do velho mundo governamental e clerical, do militarismo, do funcionalismo, da exploração, da agiotagem, dos monopólios, dos privilégios aos quais o proletariado deve sua servidão, e a Pátria suas desgraças e desastres.

Que esta querida e grande Pátria, enganada pelas mentiras e calúnias, tenha sossego portanto! A luta travada entre Paris e Versalhes é daquelas que não podem terminar em compromissos ilusórios: o desfecho não poderia ser duvidoso. A vitória, perseguida com uma energia indomável pela Guarda nacional, caberá à ideia e ao direito. Nós recorremos à França.

Ciente de que Paris em armas tem tanta calma quanto bravura; que ela mantém a ordem com tanta energia quanto entusiasmo; que ela se sacrifica com tanta razão quanto heroísmo; que ela só se armou por devoção à liberdade e à glória de todos: que a França faça cessar este conflito sangrento.

Cabe à França desarmar Versalhes pela manifestação solene de sua irresistível vontade.

Convocada a beneficiar-se de nossas conquistas, que ela se declare solidária com nossos esforços; que ela seja nossa aliada no combate que só pode terminar pelo triunfo da ideia comunal ou pela ruína de Paris.

Quanto a nós, cidadãos de Paris, nós temos a missão de consumar a Revolução moderna, a mais ampla e a mais fecunda de todas as que iluminaram a história.

Nós temos o dever de lutar e de vencer. 

(O texto original se encontra em Jacques Rougerie, Paris Libre 1871, Éditions du Seuil, 2004 pp. 153-156. Também está disponível na internet)



3. De volta ao embaraço dos historiadores

Em 2004, Jacques Rougerie escreveu um prefácio para a nova edição de Paris Libre 1871. Ele observou, sem surpresa, os escassos avanços nos estudos sobre a Comuna na França e o silêncio de historiadores importantes como Pierre Rosanvallon, que não menciona a Comuna no seu grande livro sobre a tradição republicana jacobina na França (Le modèle politique français. La société civile contre le jacobinisme de 1789 à nos jours, Éditions du Seuil, 2004). O assunto continua incômodo para os historiadores.


A própria Declaração ao Povo Francês recebeu avaliações opostas no campo da esquerda (de um lado, obteve a aprovação de Marx, de outro, o desprezo de Lissagaray) e coloca problemas sérios de interpretação quanto às intenções políticas e sociais da Comuna. À luz de sua experiência de quatro décadas como estudioso da Comuna, Rougerie reconhece que essas cisões e impasses são intrínsecos à experiência radical da Comuna de Paris e à nossa confusão quanto ao conceito de democracia:


Devo admitir que sempre fiquei embaraçado quanto à interpretação da Declaração do Povo Francês de 19 de abril de 1871, onde eu via apenas, como tantos outros, um estranho amálgama, uma mistura medíocre de proudhonismo e de jacobinismo, que se esforçava por compor as teses, dificilmente conciliáveis contudo, da minoria e da maioria da assembleia comunal sobre a natureza do Estado republicano revolucionária a construir. Isso não me parece mais exato. A comparação com a Revolução Francesa de 1789/1794 e sua exigência tão forte de “democracia direta”, ou com as reivindicações mal formuladas mas explícitas dos insurgentes de junho de 1848, enfim, o estudo da tradição revolucionária parisiense me conduz a outras conclusões.


1871 coloca, mais uma vez, o problema formidável de um “contrato social” democrático: que forma dar a um governo do povo, que emana do povo, sem oprimir o povo? Deste ponto de vista, a Comuna é talvez a revolta com o programa mais elaborado do século XIX.


“Doutrinalmente”, a Declaração não faz senão reencontrar e prolongar, depois do duro parêntese autoritário do Império, uma reflexão sobre a construção da República já amplamente iniciada em 1848-1851, em vista da decepção causada pela disfunção do novo regime. (...) Construir a República, que se instaura sobre uma base comunal finalmente, é o que a Declaração de 1871 se esforçou para fazer de um modo novo do ponto de vista politico e social, e se o texto pode parecer imperfeito, sua intenções são claras. É surpreendente ver quantos historiadores negligenciaram essa tradição republicana “comunal-cantonal” que se poderia muito bem remontar à constituição jacobina de 1793 (...) Que se leia o texto constitucional do ano I, ou o discurso de Robespierre de 11 de maio de 1793: “Fujam da antiga mania dos governos de querer governar demais. Deixem às comunas, deixem às famílias, deixem aos indivíduos (...) o cuidado de dirigir seus próprios negócios e tudo o que não tem essencialmente a ver com a administração geral da República.”


Mas a ideologia, nunca me canso de dizer, está longe de esgotar, muito pelo contrário, o “segredo” de 1871. De maneira muito concreta, para o povo que se agitava na Paris de 1871 ser seu próprio mestre era autoadministrar-se, era autogovernar-se. Podemos ver isso muito bem no exercício cotidiano do pequeno poder local pelas pessoas de baixa condição, nos clubes ou nos recantos dos bairros. Afirma-se de todas as maneiras, desordenadamente é claro, uma capacidade popular de autonomia, uma vontade de participação política imediata.  Eu lembrarei que o essencial do trabalho de reformas projetado sob a Comuna foi realizado – é a sua maior originalidade – pela iniciativa local.


O historiador e cientista político Claude Lefort lançou luz de modo notável sobre a natureza essencialmente “libertária” da ideia de democracia. A insurreição comunalista, como todas as insurreições parisienses, é também um questionamento da democracia. Com o sufrágio universal proclamado em 1848 e ampliado desde então, será que a democracia é apenas representativa e, no fundo, dá poder político real apenas a alguns, aqueles tem “cacife” político? Ou será soberania real do povo, uma democracia verdadeira que não seja, ao fim e ao cabo, falsamente representativa. Será que bastaria admitir, como os atuais historiadores da política se conformam em fazer com tanta presteza, que a democracia só pode ser “imperfeita” e, no melhor dos casos, “consensual”, um "equilíbrio” sempre desequilibrado porque sempre há dominados e dominantes? A Comuna colocou, uma vez mais no século XIX, a questão da verdadeira soberania popular: é verdade, porém, que ela não a resolveu.


(Jacques Rougerie, Paris Libre 1871, Éditions du Seuil, 2004 pp. VII-XII)


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