segunda-feira, 14 de abril de 2014

A claraboia e o holofote #23





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A social-democracia alemã (parte 1) 


A unificação dos partidos operários 



Nascido em 1825, Ferdinand Lassalle conheceu Marx e Engels durante a revolução de 1848 na Alemanha, onde teve participação ativa. Todavia, a partir da década de 1860, Lassalle começou a acreditar que o impulso revolucionário estava esgotado e que era preciso tomar o caminho da negociação política dentro da legalidade. Ele começou a tomar distância de Marx, de quem se considerava discípulo, para aproximar-se de Bismarck, que buscava aliados para enfrentar a oposição da burguesia liberal. Lassalle esperava alcançar, por meio dessa aliança, um Estado de bem-estar que protegesse os trabalhadores. Esse Estado paternalista e benévolo seria uma democracia em que a massa dos trabalhadores manifestaria sua vontade através do sufrágio universal.  

Em 1863, Lassalle organizou a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, o primeiro partido operário da Prússia, mas, frustrado com o pouco resultado do seu esforço de propaganda, Lassalle foi para a Suiça, onde morreu num duelo por questões amorosas em 1864.

Wilhelm Liebknecht nasceu em 1826. Depois de trabalhar algum tempo como professor, envolveu-se em várias insurreições nas jornadas de 1848-1849, o que o obrigou a refugiar-se em Londres durante 13 anos, ao longo dos quais manteve contato próximo com Marx e Engels. Quando foi anistiado pelo governo alemão em 1862, retornou à Prússia para fazer propaganda do socialismo. No ano seguinte, aproximou-se do partido operário fundado por Lassalle e fez amizade com August Bebel (nascido em 1840). Bebel crescera em extrema pobreza e ganhava a vida como torneiro; era um orador empolgado, enquanto seu amigo Liebknecht, com formação universitária, era melhor  escritor. Nas atividades práticas do movimento operário, eles se completavam. Depois de um breve período de entusiasmo, ambos se afastaram do grupo lassalliano para fundar, em 1869 na cidade de Eisenach, o Partido Social-democrata dos trabalhadores, afiliado à Primeira Internacional. 

Eleitos para o Reichstag da Confederação do Norte da Alemanha, Liebknecht e Bebel se mantiveram fiéis ao internacionalismo socialista. Eles foram os únicos deputados a se opor à guerra contra a França em 1870, o que resultou numa sentença de dois anos de prisão para ambos.

Face ao contínuo avanço dos socialistas no Parlamento e à repressão movida por Bismarck, o partido eisenachiano e o lassalliano decidiram se fundir no congresso realizado em Gotha entre 22 e 27 de maio de 1875. O programa do partido unificado - que viria a se tornar o Partido Social-democrata Alemão (SPD) - foi redigido por Liebknecht. 

Assim que teve a oportunidade de estudá-lo, Marx fez uma série de comentários duríssimos ao programa, especialmente às passagens que evidenciavam a adesão às propostas lassallianas ou a distorção das teses do próprio Marx.  Essas glosas marginais foram enviadas a Wilhelm Bracke numa carta que deveria ser lida apenas pelos líderes do novo partido operário. Quinze anos mais tarde, elas se tornaram conhecidas quando Engels, a despeito das reticências dos líderes social-democratas, decidiu publicá-las na revista Die Neue Zeit, dirigida por Kautsky.




Os comentários de Marx ao Programa de Gotha  (1875)



Na sua crítica é notável que Marx tomasse como referência doutrinal as posições do Manifesto Comunista, que ele considerava - com razão - amplamente conhecido entre as lideranças dos partidos operários, inclusive Lassalle (que supostamente o saberia de cor). Embora faça breves e incisivos ataques aos erros da teoria econômica de Lassalle (especialmente a "lei de bronze dos salários", segundo a qual era inútil a luta por ganhos salariais, já que eles seriam perdidos por uma consequente alta de preços), Marx faz pouco uso das análises que desenvolvera n'O Capital

No entanto, mais do que o aspecto econômico, o que mais atrai a atenção na Crítica ao Programa de Gotha é que Marx tenha sido obrigado a discutir longa e explicitamente o papel do Estado, a fim de se opor às propostas estatizantes herdadas de Lassalle. É em torno dessas propostas que as correntes revisionistas e reformistas da social-democracia irão se reorganizar nas décadas seguintes, numa crescente aceitação dos princípios do liberalismo político (temperado com a busca de justiça distributiva) e das práticas econômicas capitalistas (regulamentadas em âmbito nacional pelo Estado) através de políticas de pacto entre sindicatos, patrões e governos.


Por isso, gostaria de destacar cinco aspectos da crítica de Marx ao quadro social-nacional-estatista que já se anunciava na aproximação entre Lassalle e Bismarck e na admiração que o primeiro votava aos Discursos à Nação Alemã, de Fichte, e à concepção hegeliana de Estado.



(1)  As classes revolucionárias:

"proletariado é revolucionário diante da burguesia, porque, sendo ele mesmo fruto do solo da grande indústria, busca eliminar da produção seu caráter capitalista, o qual a burguesia procura perpetuar. Mas o Manifesto acrescenta que “quando [as camadas médias] se tornam revolucionárias, isto se dá em consequência de sua iminente passagem para o proletariado.”

O programa de Gotha afirmava: 

“A libertação do trabalho tem de ser obra da classe trabalhadora, diante da qual todas as outras classes são uma só massa reacionária.”

O que levou Marx a comentar:


A primeira oração é extraída do preâmbulo dos Estatutos da Internacional, porém, aqui, ela é “melhorada”. Naquele texto, diz-se: “a libertação da classe operária tem de ser obra dos próprios trabalhadores”, aqui, ao contrário, é a “classe trabalhadora” que tem de libertar – o quê? – “o trabalho”.  Compreenda quem puder.

A título de reparação, a oração seguinte é, ao contrário, a mais pura das citações lassallianas: “diante da qual (a classe trabalhadora) todas as outras classes formam uma só massa reacionária”.

No Manifesto Comunista diz-se que:

“De todas as classes que hoje se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico.”

A burguesia é concebida aqui como classe revolucionária – como portadora da grande indústria – em face da aristocracia feudal e das classes médias, que desejam conservar todas as posições sociais criadas por modos de produção passados. Elas não formam, portanto, justamente com a burguesia, uma só massa reacionária.

Por outro lado, o proletariado é revolucionário diante da burguesia, porque, sendo ele mesmo fruto do solo da grande indústria, busca eliminar da produção seu caráter capitalista, o qual a burguesia procura perpetuar. Mas o Manifesto acrescenta que “quando [as camadas médias] se tornam revolucionárias, isto se dá em consequência de sua iminente passagem para o proletariado”.

Desse ponto de vista, é também absurdo dizer que as classe médias, “juntamente com a burguesia” e, sobretudo, com a aristocracia feudal, “formam uma só massa reacionária” diante da classe trabalhadora.  (...)

Lassalle sabia de cor o Manifesto Comunista, tanto quanto seus fiéis sabem os escritos sagrados que ele produz. Portanto, quando ele o falsificou de modo tão grosseiro, foi apenas com o objetivo de enfeitar sua aliança com os adversários absolutistas e feudalistas contra a burguesia. 

(Crítica ao Programa de Gothapp.33-34)

Marx insiste no papel da burguesia e do proletariado como classes revolucionárias, repetindo o núcleo mesmo da seção I do Manifesto Comunista ("Burgueses e Proletários"). Diante disso, a tese lassalliana de que todas as  classes, exceto o proletariado, são igualmente reacionárias somente poderia ser uma falsificação para justificar uma aliança oportunista e equivocada em que a política anti-burguesa e reformista de Lassalle tornava o operariado um instrumento a serviço da política anti-burguesa e conservadora de Bismarck.



(2) O internacionalismo do capital e do trabalho:

"Os próprios “marcos do atual Estado nacional” do Império alemão, por exemplo, situam-se economicamente, “nos marcos do mercado mundial” e, politicamente, “nos marcos do sistema dos Estados.”


O Programa de Gotha afirma: 

“A classe trabalhadora atua por sua libertação, inicialmente, nos marcos do atual Estado nacional, consciente de que o resultado necessário de seu esforço, comum a todos os trabalhadores de todos os países civilizados, será a fraternização internacional dos povos.”


Marx comenta: 


Lassale, ao contrário do Manifesto Comunista e de todo o socialismo anterior, concebeu o movimento dos trabalhadores sob a mais estreita ótica nacional. Aqui, o programa segue seus passos – e isso depois da ação da Internacional!

É evidente que, para poder lutar em geral, a classe trabalhadora tem de se organizar internamente como classe, e a esfera nacional é o terreno imediato de sua luta. Nesse sentido, sua luta de classe é nacional, não segundo o conteúdo, mas, como diz o Manifesto Comunista, “segundo a forma”.

Mas os próprios “marcos do atual Estado nacional” do Império alemão, por exemplo, situam-se economicamente, “nos marcos do mercado mundial” e, politicamente, “nos marcos do sistema dos Estados”. Qualquer comerciante sabe que o comércio alemão é, ao mesmo tempo, comércio exterior, e a grandeza do sr. Bismarck reside justamente em sua forma de política internacional.

E a que o Partido Operário Alemão reduz seu internacionalismo? À consciência de que o resultado de seu esforço “será a fraternização internacional dos povos” – uma fraseologia tomada de empréstimo da Liga da Liberdade e da Paz e que tem pretensamente o mesmo significado da fraternização internacional das classes trabalhadoras em sua luta comum contra as classes dominantes e seus governos. Nenhuma palavra, portanto, sobre as funções internacionais da classe trabalhadora alemã! E assim ela deve enfrentar sua própria burguesia – que, contra ela, já se une fraternalmente aos burgueses de todos os países – e a conspiratória política internacional do sr. Bismarck. 

Na verdade, a profissão de fé internacionalista do programa é infinitamente inferior à do Partido do Livre-Câmbio. Este também declara que o resultado de seu esforço é “a fraternização internacional dos povos”. Mas também age para transformar o comércio num comércio internacional, não se contentando em absoluto com a consciência de que todos os povos fazem comércio dentro de seus respectivos domínios.

A ação internacional das classes trabalhadoras não depende de maneira alguma da existência da “Associação Internacional dos Trabalhadores”. Esta foi apenas uma primeira tentativa de criar um órgão central voltado para aquela atividade – tentativa que, pelo impulso que deu ao movimento, teve uma eficácia durável, mas que, em sua primeira forma histórica, tornou-se impraticável após a queda da Comuna de Paris.

O Norddeustsche de Bismarck tinha razão quando anunciou, para a satisfação de seu chefe, que o Partido Operário Alemão, no novo programa, abdicara do internacionalismo. (idem, pp 35-37)


A ideia de limitar a luta emancipatória do proletariado alemão aos marcos nacionais, enquanto a burguesia atua livremente no plano internacional, só pode representar o isolamento e o enfraquecimento da classe operária alemã. 


A luta da classe operária é, por definição, internacional, assim como é o movimento de expansão do capital. Portanto, todo verdadeiro internacionalismo é aquele ligado aos interesses das duas classes revolucionárias: a burguesia e o proletariado. O internacionalismo do Capital e o do Trabalho.


A alcance internacional da luta do proletariado não depende da existência de associações como a Internacional. Elas existem apenas para organizar o movimento, mas não são a causa dele.  


Marx reafirma aqui um princípio básico do partido comunista de 48: as organizações não podem tomar o lugar do movimento em sua espontaneidade. O movimento real não depende de acordos feitos em gabinete, nem de programas - mesmo aqueles elaborados pelos revolucionários mais lúcidos. Na carta a Bracke, Marx diz peremptoriamente: "Cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas"  (5 de maio de 1875)


Do ponto de vista de Marx, tanto a limitação nacionalista quanto o internacionalismo baseado no pacifismo não poderiam conduzir a nenhuma transformação real da situação do proletariado.


Na época, esse internacionalismo baseado na fraternidade dos povos e no desejo de constituir os "Estados Unidos da Europa" eram defendidos pela Liga da Liberdade e da Paz, da qual faziam alguns veteranos de 48, como Garibaldi e Victor Hugo. Como mostrou o cientista político Ernst-Otto Czempiel, os objetivos da Liga vinham de uma matriz kantiana:

"How should a society be ruled in order to bring about a situation in which it holds back from using external aggression? Kant provides us with a clear and classic answer to this question: Society must have a republican system of rule that spreads the values of political participation equally among civil society. When a situation is achieved in which foreign policy is not decided by sovereigns and kings but rather those who would carry the social and economic consequences of such a policy, then there would be no more wars, since "people would think long and hard before going down such as serious road". (...)

The "Ligue Internationale de la Paix et de la Liberté", which was founded in 1867 in Geneva reflected this thinking in its name. It integrated liberal findings into its motto: "Si vis pacem, para libertatem." Indeed, the Liga's decision to refer to Kant expressly wasn't for nothing. The question now, however, was whether or not the quality of a system of rule could only be measured according to the freedom rights it chose to grant? Didn't the “completely just civil constitution“(Kant) also encompass distributive justice? In 1885 the peace and freedom league expanded their motto to take account of social justice: “Si vis pacem, para libertatem et iustitiam."

While in a slogan-like manner, the connection between the system of rule and peace was now comprehensively expressed. When a system of rule is characterized by the freedom and codetermination of its citizens on the one hand and by social justice on the other, the result is peace. Indeed, peace is then founded in this system of rule."

(Ernst-Otto Czempiel, Friedensstrategien, Systemwandel durch Internationale Organisationen, Demokratisierung und Wirtschaft, Paderborn 1986, p. 121-124)

Essa matriz kantiana, assim como o ideal de justiça distributiva que veio a ser adotada ao longo da história da Liga da Paz e da Liberdade só poderiam constituir motivo de derrisão para Marx. 


Já na época, ele ironizou as novas deusas que andavam às soltas por aí, com a difusão da mitologia da Liberdade, da Justiça, Igualdade etc ( cf. carta a Engels, 1 de agosto de 1877).  Muitas dessas deusas tinham sido entronizadas pela retórica da Liga da Paz, que viria a apoiar (a partir de 1885) uma concepção de justiça social distributiva, endossada por muitos socialistas (inclusive pelos lassallianos). Para colocar essa concepção em seu devido lugar, Marx escreveu:


O socialismo vulgar (e a partir dele, por usa vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição.” (Crítica ao programa de Gotha, p. 33)




(3) O papel do Estado: 

"É algo digno da presunção de Lassalle imaginar que, por meio de subvenção estatal, seja possível construir uma nova sociedade da mesma forma que se constrói uma nova ferrovia!"

O Programa de Gotha enunciava:

“O Partido Operário Alemão exige, para conduzir à solução da questão social, a criação de cooperativas de produção com a subvenção estatal e sob o controle democrático do povo trabalhador. Na indústria e na agricultura, as cooperativas de produção devem ser criadas em proporções tais que delas surja a organização socialista do trabalho total”.

Ao que Marx respondeu:


(...) O lugar da luta de classes existente é tomada por uma fraseologia de escrevinhador de jornal – “a questão social”, a cuja “solução” se “conduz”. A organização socialista do trabalho total, em vez de surgir do processo revolucionário de transformação da sociedade, surge da “subvenção estatal”, subvenção que o Estado concede às cooperativas de produção “criadas” por ele, e não pelos trabalhadores. É algo digno da presunção de Lassalle imaginar que, por meio de subvenção estatal, seja possível construir uma nova sociedade da mesma forma que se constrói uma nova ferrovia!

Por um resto de escrúpulos, coloca-se a “subvenção estatal” – “sob o controle democrático do povo trabalhador”.
Em primeiro lugar, o “povo trabalhador” da Alemanha consiste majoritariamente em camponeses, e não em proletários.

Em segundo lugar, “democrático”, traduzido para o alemão, significa “sob o governo do povo”. Mas o que quer dizer “o controle democrático sob o governo do povo do povo trabalhador”? E ainda mais quando se trata de um povo trabalhador que, ao apresentar essas exigências ao Estado, expressa sua plena consciência de que não só não está no poder, como não está maduro para ele!

(...) O pior golpe também não é ter escrito essa cura miraculosa no programa, mas simplesmente ter regredido do ponto de vista do movimento de classes para o do movimento de seitas.

O fato de que os trabalhadores queiram criar as condições da produção coletiva em escala social e, de início, em seu próprio país, portanto, em escala nacional, significa apenas que eles trabalham para subverter as atuais condições de produção e não tem nenhuma relação com a fundação de sociedades cooperativas subvencionadas pelo Estado! No que diz respeito às atuais sociedades cooperativas, elas só tem valor na medida em que são criações dos trabalhadores e independentes, não sendo protegidas pelos governos nem pelos burgueses. (idem, pp. 39-41)

O estatismo de Lassalle era a renúncia à revolução. Ao invés do desmantelamento do aparelho estatal, que havia sido a grande lição da Comuna de Paris, Lassalle propunha a passividade do proletariado, à espera da ação paternalista do Estado que serviria de panaceia a todos os males sociais. Mas era absurdo esperar obter mudanças sociais ou democracia dentro de um Estado autoritário. Seria absurdo que o Estado conservador de Bismarck subvencionasse a emancipação do trabalho. 

Nessas linhas, começa uma divergência entre o radicalismo do partido comunista de 48, que Marx ainda sustentava, e a disposição social-democrata de negociar qualquer possibilidade de ação política nos marcos da legalidade e do Estado existente.  Tratava-se de duas maneiras bem distintas de responder às questões:  Que tipo de democracia é possível alcançar? E a que custo?


Para os social-democratas, desde o início era possível uma ação democrática antes da conquista de poder pelo proletariado. A democracia e o socialismo eram independentes, e o partido poderia se orientar para a negociação parlamentar ao invés de se encaminhar para a conquista revolucionária do poder.




(4) O Estado e a sociedade burguesa:

"Os diferentes Estados dos diferentes países civilizados, apesar de suas variadas configurações, têm em comum o fato de estarem assentados sobre o solo da moderna sociedade burguesa, mais ou menos desenvolvida em termos capitalistas. É o que confere a elas certas características comuns essenciais."

Marx escreve:

"Já na seção II, o Partido Operário Alemão pretende alcançar “o Estado livre”.

Estado livre, o que é isso?

Tornar o Estado “livre” não é de modo algum o objetivo de trabalhadores já libertos da estreita consciência do súdito. No Império alemão, o “Estado” é quase tão “livre” quanto na Rússia. A liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela, e ainda hoje as formas de Estado são mais ou menos livres, de acordo com o grau em que limitam a “liberdade do Estado”.

O Partido Operário Alemão – no caso de adotar esse programa – mostra que as ideias socialistas não penetraram nem sequer a camada mais superficial da sua pele, quando considera o Estado um ser autônomo, dotado de seus próprios “fundamentos espirituais, morais, livres”, em vez de afirmar a sociedade existente (e isso vale para qualquer sociedade futura) como base do Estado existente (ou futuro, para uma sociedade futura).

Além disso, o que dizer do abuso leviano que o programa faz das palavras “Estado atual”, “sociedade atual”, e o equívoco ainda mais leviano que ele cria sobre o Estado ao qual dirige suas reivindicações.

A “sociedade atual” é a sociedade capitalista, que, em todos os países civilizados, existe mais ou menos livre dos elementos medievais, mais ou menos modificada pelo desenvolvimento histórico particular de cada país, mais ou menos desenvolvida. O “Estado atual”, ao contrário, muda juntamente com os limites territoriais do país. No Império prussiano-alemão, o Estado é diferente daquele da Suiça; na Inglaterra, ele é diferente daquele dos Estados Unidos. “O Estado atual” é uma ficção.

No entanto, os diferentes Estados dos diferentes países civilizados, apesar de suas variadas configurações, têm em comum o fato de estarem assentados sobre o solo da moderna sociedade burguesa, mais ou menos desenvolvida em termos capitalistas. É o que confere a elas certas características comuns essenciais. Nesse sentido, pode-se falar em “atual ordenamento estatal” em contraste com o futuro, quando sua raiz atual, a sociedade burguesa, tiver desaparecido." (idem, pp. 41-42)

Trata-se da última lição de Marx sobre o Estado: ele não é uma entidade autônoma. As várias formas que o Estado assume no final do século XIX estão assentadas sobre a sociedade burguesa em seus diferentes graus de desenvolvimento capitalista. Portanto, é uma ilusão do Programa de Gotha dirigir suas reivindicações ao Estado, como se o Estado tivesse o poder de transformar a sociedade sobre a qual ele assenta.



(5) As reivindicações do partido operário:

"Até mesmo a democracia vulgar, que vê na república democrática o reino milenar e nem sequer suspeita de que é justamente nessa última forma de Estado da sociedade burguesa que a luta de classes será definitivamente travada, mesmo ela está muito acima desse tipo de democratismo, que se move dentro dos limites do que é autorizado pela polícia e desautorizado pela lógica."


Marx escreve:

"Pergunta-se, então, por que transformações passará o ordenamento estatal numa sociedade comunista? Em outras palavras, quais funções sociais, análogas às atuais funções estatais, nela permanecerão? Essa pergunta só pode ser respondida de modo científico, e não é associando de mil maneiras diferentes a palavra povo à palavra Estado que se avançará um pulo de pulga na solução do problema.

Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionário de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.

Mas o programa é alheio tanto a esta última quanto ao futuro ordenamento estatal da sociedade comunista.

Suas reivindicações políticas não contém nada mais do que a velha cantilena democrática, conhecida de todos: o sufrágio universal, legislação direta, direito do povo, milícia popular etc. São um mero eco do Partido Popular burguês, da Liga da Paz e da Liberdade.

Não passam de reivindicações que, quando não são exageros fantasiosos da imaginação, já estão realizadas. Acontece que o Estado que as pôs em prática não se encontra dentro das fronteiras do Império alemão, mas na Suíça, nos Estados Unidos etc. Esse tipo de “Estado futuro” é o Estado atual, embora ele exista fora “dos marcos” do Império alemão.

Mas esquece-se uma coisa. Como o Partido Operário Alemão declara expressamente mover-se no interior “do Estado nacional atual”, portanto, de seu próprio Estado, o Império prussiano-alemão – do contrário, suas reivindicações seriam, em grande parte, sem sentido, pois só se reivindica aquilo que ainda não se tem -, então não devia ter esquecido o principal, isto é, que todas essas lindas miudezas se baseiam no reconhecimento da assim chamada soberania popular e que, portanto, só tem lugar numa república democrática.

Se não se tem coragem – e sabiamente, pois as condições exigem cautela – de reivindicar a república democrática, como fizeram os programas operários franceses sob Luís Felipe e Luís Napoleão, não se deveria recorrer ao truque, nem honrado nem digno, de exigir coisas que só têm sentido numa república democrática de um Estado que não é mais do que um despotismo militar com armação burocrática e blindagem policial, enfeitado de formas parlamentares, misturado com ingredientes feudais, e, ao mesmo tempo, já influenciado pela burguesia; e ainda por cima assegurar, a esse Estado, que se supõe impor-lhe tais coisas “por meios legais”!

Até mesmo a democracia vulgar, que vê na república democrática o reino milenar e nem sequer suspeita de que é justamente nessa última forma de Estado da sociedade burguesa que a luta de classes será definitivamente travada, mesmo ela está muito acima desse tipo de democratismo, que se move dentro dos limites do que é autorizado pela polícia e desautorizado pela lógica.

Que por “Estado” entende-se, na verdade, a máquina governamental ou o Estado, na medida em que, por meio da divisão do trabalho, forma um organismo próprio, separado da sociedade, já o demonstraram estas palavras: “O Partido Operário Alemão exige, como base econômica do Estado, um imposto único e progressivo sobre a renda etc.”

Os impostos são a base econômica da maquinaria governamental, e nada mais. No Estado do futuro, já existente na Suíça, essa reivindicação está bastante realizada. O imposto sobre a renda pressupõe as diferentes fontes de renda das diferentes classes sociais, logo pressupõe a sociedade capitalista. Não é de estranhar, pois, que os financial reformers de Liverpool  - burgueses, tendo à sua frente o irmão de Gladstone – formulem a mesma reivindicação que o programa".  (idem, pp. 41-45; p.46)

Marx considera que o programa se limita a dois tipos de reivindicações: 


- as fantasiosas, que não podem se realizar porque se baseiam em concepções errôneas no plano da economia e da política (como as ilusões a respeito do que pode ser consentido nos limites da sociedade burguesa);


- as tímidas, que projetam como conquistas futuras do proletariado alemão alcançar condições que, em verdade, já se tornaram reais em várias nações, como o imposto de renda fortemente progressivo, que era proposto inclusive na Grã-Bretanha pelo próprio irmão do primeiro-ministro Gladstone!


A "velha cantilena democrática" do sufrágio universal jamais poderia levar ao ordenamento futuro da sociedade porque, na verdade, já estava em prática em várias sociedades burguesas. Além disso, o novo partido operário alemão não deveria fazer reivindicações com base na "velha cantilena democrática", ignorando que atuava dentro de um Estado "que não é mais do que um despotismo militar com armação burocrática e blindagem policial, enfeitado de formas parlamentares, misturado com ingredientes feudais, e, ao mesmo tempo, já influenciado pela burguesia; e ainda por cima assegurar, a esse Estado, que se supõe impor-lhe tais coisas “por meios legais”!"



Lassalle - de novo?



Marx observou que "ao se conceber programas de princípios (em vez de postergar isso até que tal programa possa ser preparado por uma longa atividade comum), o que se faz é fornecer ao mundo balizas que servirão para medir o avanço do movimento do partido" (Carta a Bracke, 5 de maio de 1875).  Para Marx, os líderes do partido haviam colocado as balizas nos lugares errados: o programa de Gotha seria apenas desvio lassalliano ou distorção das teses que ele defendera ao longo de três décadas. 

Certamente o programa era desastrado na redação e limitado no escopo, mas poderia ter sido diferente? Nas condições do Reich de 1875, depois do esmagamento sangrento da Comuna e do fim da Primeira Internacional, era realista manter vivo o espírito do partido comunista de 48? 


É possível que os líderes do nascente partido social-democrata unificado tenham sido mais atentos do que Marx às reais condições do movimento operário na Alemanha de Bismarck, mas também é possível que suas expectativas em relação a um Estado paternalista, seu igualitarismo distributivo e sua adesão à retórica dos escrevinhadores da imprensa fossem outras tantas manifestações daquele filistinismo que Nietzsche acusava nos alemães seus contemporâneos.

Apesar da correção de curso (no sentido pró-Marx) efetuada pelo Programa de Erfurt, ao qual Engels teve pouco que objetar (cf. Uma crítica do esboço do programa social-democrata de 1891), a fratura entre o comunismo (versão 1848) e a social-democracia não demoraria para se manifestar ruidosamente, primeiro na elaboração revisionista de Bernstein, depois no centrismo de Kautsky, finalmente no apoio da bancada social-democrata alemã aos créditos de guerra do Reich, em agosto de 1914, em total contradição com coragem internacionalista de Liebknecht e Bebel na época da guerra franco-prussiana.


Depois do trauma do Terceiro Reich, da 2ª Guerra Mundial, da divisão da Alemanha e do aguçamento da Guerra Fria, o Partido Social-Democrata abandonou o campo marxista no Congresso de Bades-Godesberg em 1959. Mas isso não significa que o partido tenha deixado para trás todo o seu legado do século XIX. Carlo Schmid (1896-1979), um dos autores do Programa de Bades-Godesberg, era grande admirador de Lassalle, a respeito do qual  afirmou: "ao invés de análises científicas, ele sempre teve em vista o verdadeiro objetivo no horizonte histórico: a libertação do homem da posição de objeto e a eliminação da autoalienação do homem pelo poder de sua vontade". (in Encyclopaedia Britannica,  verbete Lassalle)


É curioso que Carlo Schmid parece estar pensando não em Lassalle, mas no jovem Marx remodelado ao sabor do humanismo do pós-guerra. 


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Tom Bottomore, Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar, 1997 |  Friedrich Engels, A Critique of the draft Social-Democratic Program of 1891  |  Michel Renault, Gérard Duménil, Michael Löwy, Ler Marx, Editora Unesp, 2011  | Karl Marx, Crítica ao Programa de Gotha, Boitempo, 2012| Karl Marx, Marx-Engels Correspondence 1877 | Encyclopaedia Britannica



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Foto: instalação de Liliana Porter, El hombre con el hacha, exposta no Museo de Arte Latinoamericana de Buenos Aires, de 13 de setembro de 2013 a 16 de março de 2014





EDIÇÃO COMEMORATIVA DUPLA

a claraboia e o holofote 

14 de abril de 2013 - 14 de abril de 2014


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