domingo, 30 de março de 2014

A claraboia e o holofote #22




Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Mais uma sobre o mote Habent sua fata libelli


Em 1848, Marx e Engels conclamavam à ação a parte mais resoluta e revolucionária da classe operária: os comunistas. O Manifesto do Partido Comunista era a expressão retórica da urgência e da oportunidade imperdível. Seu argumento tinha a forma de uma transposição didática audaciosa que resumia o movimento da história moderna à eclosão de uma classe social revolucionária – a burguesia - dotada de poderes fantásticos. À medida que transformava o mundo, a burguesia passava a dominar todas as outras classes sociais que a precederam,  ao mesmo tempo que gestava uma nova classe revolucionária – o proletariado – que, em sua luta por emancipação, iria destruir o jugo da burguesia e abolir a própria divisão de classes. Dessa maneira, ao conto reacionário do espectro do comunismo, Marx opunha o relato libertário da burguesia como um poderoso feiticeiro que já não conseguia mais controlar seus poderes. Certamente outro conto da carochinha, mas de moralidade muito diversa.

A seção II do Manifesto era dedicada à forma política que a luta deveria assumir sob a liderança do partido comunista, tal como Marx o entendia em 1848: não como um aparelho, mas como uma fração da própria classe operária, aquela mais esclarecida a respeito das condições gerais do movimento e mais disposta a conquistar a supremacia do proletariado. Esse partido comunista de 1848 deveria representar os interesses comuns do proletariado internacional em cada fase do desenvolvimento da luta de classes e no interior de cada nação. O seu alvo deveria ser a abolição da propriedade privada burguesa, base do modo de produção e de todas as relações sociais burguesas. Sua ação deveria ser orientada não por conteúdos doutrinais, mas pelo próprio “movimento histórico que se desenvolve diante dos olhos”. Marx e Engels em 1848 não acreditavam estar formulando modelos ou representações teóricas, mas sim apreendendo a própria história em movimento.

Na época, o Manifesto recebeu pouca atenção, atropelado como foi pelos eventos de 48, especialmente pela grande derrota de junho e pelo recrudescimento do conservadorismo. Todavia, pouco mais de duas décadas depois, o Manifesto passou a ser difundido num número crescente de idiomas e países. É claro, porém, que ele não poderia mais ser lido segundo as condições em que fora produzido. Tais condições haviam sido ultrapassadas; o que interessava agora era apenas o resíduo que chamamos de “atualidade” e que Marx e Engels preferiam chamar de “exatidão”:

“Por mais que tenham mudado as condições nos últimos 25 anos, os princípios gerais expressos nesse Manifesto conservam, em seu conjunto, toda a sua exatidão. Em algumas partes certos detalhes devem ser melhorados. Segundo o próprio Manifesto, a aplicação prática dos princípios dependerá, em todos os lugares e em todas as épocas, das condições históricas vigentes e por isso não se deve atribuir importância demasiada às medidas revolucionárias propostas no final da seção II. Hoje em dia, esse trecho seria redigido de maneira diferente em muitos aspectos. Em certo sentido, esse programa está antiquado, levando-se em conta o desenvolvimento colossal da indústria moderna desde 1848, os progressos correspondentes da organização da classe operária e a experiência prática adquirida, primeiramente na revolução de fevereiro e, mais ainda, na Comuna de Paris, onde coube ao proletariado, pela primeira vez, a posse do poder político durante dois meses (...) Entretanto, o Manifesto se tornou um documento histórico que não nos cabe mais alterar."
(Marx e Engels, prefácio à edição alemã, junho de 1872)

É muito esclarecedor da mudança de perspectiva dos autores que o interesse do Manifesto estivesse na “exatidão” dos seus princípios gerais face a certos aspectos programáticos que deveriam ser revistos à luz das mudanças históricas. Aquilo que fora o núcleo vivo e pulsante do Manifesto, a sua ousadia em apreender a história em movimento, havia se tornado um conjunto de axiomas, ou pelo menos uma figuração teórica do processo a ser preservada. O documento, elevado ao status histórico, merecia ser lido como expressão de uma ideia fundamental. Nos prefácios que escreveu para o Manifesto depois da morte de Marx, Engels insistiu nesse aspecto.

"A ideia fundamental que percorre todo Manifesto é a de que, em cada época histórica, a produção econômica e a estrutura social que dela  necessariamente decorre constituem a base da história política e intelectual dessa época; que consequentemente (desde a dissolução do regime primitivo da propriedade comum da terra) toda a História tem sido a história da luta de classes, da luta entre explorados e exploradores, entre as classes dominadas e as dominantes nos vários estágios da evolução social; que essa luta, porém, atingiu um ponto em que a classe oprimida e explorada (o proletariado) não pode mais libertar-se da classe que a explora e oprime (a burguesia) sem que, ao mesmo tempo, liberte para sempre toda sociedade da exploração, da opressão e da luta de classes – este pensamento fundamental pertence única e exclusivamente a Marx.”
(Engels, prefácio à edição alemã de 1883)

Aquilo que Marx descrevia como princípios gerais que se mantinham corretos torna-se para Engels uma “ideia fundamental” que seria para a História aquilo que a teoria de Darwin era para a Biologia (cf. prefácio da edição inglesa de 1888). Tratava-se não mais da apreensão dialética do movimento histórico, mas da descoberta dos fundamentos de uma ciência. O problema é que essa ciência era concebida à maneira fundacionista do século XIX como consolidação de verdades básicas expressas na forma de leis que tentavam emular as leis newtonianas, e não como um conjunto aberto de proposições sujeito a falseamentos e a revisões drásticas, como se pensa a partir de Pierre Duhem, Popper, Quine e Thomas Kuhn.

A “ideia fundamental” de Marx poderia ser resumida em quatro leis:

1. A estrutura econômica e social definida pelo modo de produção serve de base para as transformações política e intelectuais. Note-se que a formulação de Engels é menos determinista do que as versões posteriores da vulgata marxista. Engels, como Marx, acredita que a história política e intelectual estava ligada a uma base econômica e social, mas nunca disse que o político-intelectual fosse apenas reflexo do econômico-social, tampouco chegaram aos ponto de dizer que as mudanças políticas, intelectuais e sociais fossem epifenômenos das mudanças econômicas.

2. A luta de classes é uma constante histórica (supostamente desde o final do “comunismo primitivo”). Engels diz que “a História tem sido a história da luta de classes”, fórmula menos restritiva do que a versão mais conhecida de que a luta de classes é o motor da história.  Na frase de Engels, não se atribui à luta de classes um papel causal, mas sim uma identidade, de maneira que estudar a História é estudar a luta de classes ao longo das épocas. Isso parece constituir antes um preceito metodológico (historiadores, atenção à luta de classes!) do que uma elucidação metafísica da natureza da História.

3. A luta de classes tem seu dinamismo e seu próprio desenvolvimento. As classes dominantes e dominadas se transformam, assim como as formas da própria luta. Portanto, compreender a luta de classes não é apenas descobrir quem são os antagonistas, mas entender suas posições relativas sempre cambiantes (o que Marx tinha feito de maneira admirável no 18 Brumário de Luís Bonaparte e n’As Lutas de Classes na França entre 1848-1850).

4. O proletariado tem um papel (auto)emancipatório definitivo. A luta de classes tem um ponto final: a vitória do proletariado e a instauração de uma sociedade sem classes e sem estado. O proletariado não pode se emancipar sem, ao mesmo tempo, sacudir o jugo de todas as outras classes sociais. E ele não pode se emancipar a não ser por suas próprias forças. 

Esses princípios gerais se tornariam para Engels a “ciência socialista”, como ele expressou numa carta a August Bebel (maio de 1891): “ Vocês – o partido – precisam da ciência socialista (...)”

Todavia, quando Engels fez um retrospecto das vicissitudes do Manifesto, quarenta anos depois da sua publicação, o quadro ganhou contornos mais complexos: 

“A derrota da insurreição parisiense de junho de 1848 – a primeira grande batalha entre o proletariado e a burguesia – colocou novamente em um segundo plano as aspirações sociais e políticas do operariado europeu.  A partir de então, a luta pela supremacia voltou a ser, como fora antes da revolução de fevereiro, simplesmente uma luta entre diferentes camadas da classe proprietária; a classe operária foi levada a limitar-se a uma luta pela conquista de espaços políticos, assumindo posições da ala extrema dos radicais de classe média. Onde quer que o movimento proletário independente manifestasse sinais de vida, era logo impiedosamente esmagado. A polícia prussiana descobriu o Comitê Central da Liga dos Comunistas, então sediado em Colônia. Seus membros foram presos e após dezoito meses de encarceramento, julgados em outubro de 1852. O célebre “Processo Comunista de Colônia” estendeu-se de 4 de outubro a 12 de novembro; sete prisioneiros foram condenados a penas que variavam entre 3 e 6 anos de prisão numa fortaleza. Imediatamente após a sentença, a Liga foi formalmente dissolvida pelos membros remanescentes. Quanto ao Manifesto, este parecia ficar, a partir de então, relegado ao esquecimento. 

Quando os operários europeus reuniram forças suficientes para um novo assalto ao poder das classes dirigentes, surgiu a Associação Internacional dos Trabalhadores. Seu objetivo era englobar, num único poderoso exército, todo operariado militante da Europa e da América. Portanto, não poderia partir dos princípios expressos no Manifesto. Devia ter um programa que não fechasse as portas às Trades Unions inglesas, aos proudhonianos franceses, belgas, italianos e espanhóis ou aos lassallianos alemães. Esse programa – as considerações básicas da Internacional – era redigido por Marx, com maestria reconhecida até por Bakunin e pelos anarquistas. Para o triunfo decisivo das ideias formadas pelo Manifesto, Marx dependia unicamente do desenvolvimento da classe operária, o qual deveria resultar da unidade da ação e da discussão.  Os acontecimentos e as vicissitudes da luta contra o capital, as derrotas maiores que as vitórias, poderiam apenas mostrar aos combatentes a insuficiência de todas as panaceias em que acreditavam, fazendo-os compreender melhor as verdadeiras condições da emancipação da classe operária. E Marx tinha razão. A classe trabalhadora de 1874, por ocasião da dissolução da Internacional, era, em geral, diferente da de 1864, quando da sua fundação. O proudhonismo dos países latinos e o lassallismo propriamente dito na Alemanha estavam desaparecendo e até mesmo as Trade Unions inglesas, então ultraconservadoras, se aproximaram pouco a pouco daquilo que, em 1887, o presidente do seu congresso de Swansea dizia: “O socialismo continental não nos atemoriza”.  Mas, por essa época, o socialismo continental confundia-se, quase que exclusivamente, com a teoria formulada no Manifesto.

Assim, o Manifesto propriamente dito tomou novamente a dianteira.(...)

Portanto, a história do Manifesto reflete, em grande parte, a história do movimento operário moderno; atualmente é, sem dúvida, a obra de maior circulação, a mais internacional de toda a literatura socialista, o programa comum adotado por milhões de trabalhadores, da Sibéria à Califórnia."
(Engels, prefácio à edição inglesa, janeiro de 1888)

Este prefácio que Engels assinou sozinho (Marx morrera em 1883) é notável por várias razões. A primeira é que ele define com clareza em que condições o Manifesto poderia ser aceito e lido como texto político eficaz (o único tipo de leitura que interessava a Marx e Engels):

(a) a aceitação do Manifesto dependia da evolução do movimento independente da classe operária. Como sabemos por outros textos de Marx e Engels, inclusive a Crítica ao Programa de Gotha, tratava-se de independência, não de isolamento. A classe operária deveria estar disposta a encontrar aliados no campesinato e na pequena burguesia, por isso ela não podia declarar que todas as outras classes formam um só bloco reacionário, como defendiam os lassallianos.

(b) O Manifesto incita a luta revolucionária do proletariado, isto é, a luta pela supremacia política, e não a participação na luta política entre as frações da classe dominante, na qual o proletariado fica reduzido a coadjuvante da ala radical dos partidos de classe média. Em outras palavras, a aceitação do Manifesto exige momentos agudos de conflito de classe e não a rotina política parlamentar e a conquista do poder pela via do sufrágio universal.

(c) A luta de classes descrita no Manifesto é, em seu conteúdo, uma luta internacional, que pode assumir várias formas nacionais. A aceitação do Manifesto é função da compreensão do caráter internacional do proletariado.

(d) É preciso aceitar que as propostas de Proudhon, Bakunin e Lassalle eram apenas panaceias que partiam de uma compreensão errônea do processo econômico-social, da qual decorriam uma série de fracassos.

(e) O movimento do proletariado depende da ação e da discussão. Ele não pode ir adiante com base em doutrinas apriorísticas ou ideais criados saídos da mente de algum teórico. O proletariado tem que agir e tirar lições de seus erros.

Outra razão que torna interessante o prefácio de Engels é que ele oferece uma explicação bastante plausível do eclipse pelo qual o Manifesto passou durante as décadas de 1850 e 1860. As circunstâncias repressivas da década de 1850 e o surgimento da Primeira Internacional, que exigia uma programa mais ecumênico, dada a força dos seguidores de Proudhon e de Bakunin, não contribuíam para a difusão do Manifesto do Partido Comunista

No entanto, quando se trata de explicar o sucesso de difusão do Manifesto a partir da década de 1870, Engels adota um esquema de cunho darwiniano. Tudo se passaria como se Marx tivesse sobrepujado seus rivais (cuja descendência se extinguiu), conquistado o território e multiplicado seus descendentes. A vitória de Marx seria resultado da confirmação da verdade das suas análises. Elas teriam se tornado hegemônicas a ponto de o socialismo continental tornar-se basicamente a teoria apresentada no Manifesto. O êxito da obra se confundiria com a própria expansão do movimento operário internacional.

É evidente que Engels tinha interesse em dar relevo à obra que estava prefaciando, mas o quadro que ele desenha é demasiado otimista. Embora fosse verdade que as traduções e edições do Manifesto não paravam de se multiplicar, não se pode concluir daí uma adesão maciça à verdade das análises de Marx. Tampouco é verdade que o marxismo tenha se tornado a corrente vitoriosa: as décadas de 1890 e 1900 assistirão ao florescimento do anarquismo, assim como das correntes socialistas reformistas. Por último, a leitura do Manifesto numa época afastada das condições de produção do texto reduzia as ousadias dialéticas de 1847-48 (já transformadas em "princípios gerais" em 1872, depois em "ideia fundamental" da ciência da História em 1888) ao estatuto de artigos de fé do catecismo comunista, ao qual se rendia um tributo verbal perfunctório, que não inspirava nenhuma ação revolucionária. 

Na época em que os dois partidos operários alemães se unificaram no congresso de Gotha, Marx se deu conta de que suas descobertas "científicas" eram mal compreendidas mesmo entre os que se diziam seus seguidores. Marx se enfureceu, como se pode ler nas duras palavras da Crítica ao Programa de Gotha, mas é muito difícil que não houvesse incompreensão por parte dos dirigentes alemães, e não apenas por causa das dificuldades que eles poderiam ter com as análises d'O Capital. Mesmo a leitura do Manifesto se prestava a malentendidos variados, uma vez que o partido comunista de 48 não podia ser transposto para as condições autoritárias do Reich de Bismarck, com sua idolatria do Estado e da Nação. O partido social-democrata alemão, que nasceu da unificação, estava fadado, desde o princípio, a buscar seu caminho cada vez mais longe de Marx e do partido comunista de 48, por quem nutria uma repulsa que se tornaria cada vez mais explícita no revisionismo de Bernstein e no centrismo de Kautsky. 

É o que veremos nos capítulos seguintes deste folhetim.


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Post-scriptum de ocasião

Graças sejam dadas ao Pai Ubu por essa gente nunca aparecer aqui, mas a data é nefasta e não posso deixar de recomendar às remotas alimárias saudosas do golpe de 64: 

Unam-se ao pássaro dodô !




E que a terra lhes seja leve.


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terça-feira, 4 de março de 2014

A claraboia e o holofote #21






Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A Comuna de Paris (parte 3)




Às vezes é preciso lembrar aos marxistas que as ideias – mesmo as melhores – não têm eficácia própria e que os teóricos estão sujeitos às privações e aos terremotos tanto quanto aos erros de avaliação. Melhor do que caçar a impossível verdade das ideias no labirinto dos Grundrisse ou nos corredores d’O Capital é testemunhar o caráter materialmente aberto e inconcluso da obra de Marx: o seu aspecto de parêntese que ainda não foi fechado e reclama a nossa atenção, seja para tentar seguí-lo, seja para lhe lançar outra pá de cal que se pretenda derradeira.


O duplo choque: 1848 e 1871   


Os acidentes da história não são simples molduras cronológicas na vida dos teóricos sociais, eles são o fundamento e a condição da produção das teorias, razão pela qual eu aprecio a análise que Étienne Balibar fez dos efeitos que as derrotas de 1848 e 1871 tiveram sobre  Marx, conduzindo a “crises do marxismo avant la lettre” (cf. La Filosofía de Marx, pp 12-13).

Segundo Balibar, o refluxo das esperanças revolucionárias de 1848-50 desafiou a crença de Marx na missão histórica do proletariado e levou-o a abandonar os conceitos de ideologia e de revolução permanente. Marx passaria a década de 1850 ocupado com sua pesquisa sobre as condições estruturais do sistema do capital. Quando ele retomou a atividade política na década de 1860 à frente da Internacional, logo foi abalado pelo advento da Comuna de Paris e pela violência do massacre que se seguiu, muito mais sangrento do que o de junho de 1848. 

Marx liquidou a Primeira Internacional e suspendeu a redação d'O Capital. Começou a estudar russo e a investigar a possibilidade de uma revolução no mundo eslavo. Do ponto de vista teórico, ele tentou retificar sua teoria social, relativizando o papel da luta de classes e destacando a força da politica das nações. Também foi obrigado a dar conta do fato de que a revolução não eclodiu na Inglaterra nem na Alemanha, mas numa França na qual ele já não depositava grandes esperanças. O proletariado communard demonstrou que não se podia simplesmente tomar o Estado burguês existente, era preciso desmantelar os aparelhos de Estado e instaurar uma nova forma política. Todavia, as atrocidades cometidas na Semana Sangrenta evidenciaram que proletariado, mesmo organizado, era fraco diante da burguesia armada e apoiada pela nova configuração política europeia. 

Neste capítulo de meu folhetim quero acompanhar um pouco mais de perto os efeitos do duplo choque em Marx e na história da recepção do Manifesto do Partido Comunista.


O programa original 


Às vésperas da revolução de fevereiro de 1848, o Manifesto do Partido Comunista enunciava assim o projeto da revolução proletária:

“Vimos antes que a primeira fase da revolução operária é a elevação do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia.

O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível o total das forças produtivas.

Isso naturalmente só poderá ser realizado, a princípio, por intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas, isto é, pela aplicação de medidas que, do ponto de vista econômico, parecerão insuficientes e insustentáveis, mas que no desenvolvimento do movimento ultrapassarão a si mesmas e serão indispensáveis para transformar radicalmente todo o modo de produção. 

Essas medidas, é claro, serão diferentes nos diferentes países.
Nos países mais adiantados, contudo, quase toas as seguintes medidas poderão ser postas em prática:

1. Expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra para despesas do Estado.

2. Imposto fortemente progressivo.

3. Abolição do direito de herança.

4. Confisco da propriedade de todos os emigrados e rebeldes.

5. Centralização do crédito nas mãos do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e com o monopólio exclusivo.

6. Centralização de todos os meios de comunicação e transporte nas mãos do Estado.

7. Multiplicação das fábricas nacionais e dos instrumentos de produção, arroteamento das terras incultas e melhoramento das terras cultivadas, segundo um plano geral.

8. Unificação do trabalho obrigatório para todos, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura.

9. Unificação dos trabalhos agrícola e industrial; abolição gradual da distinção entre a cidade e campo por meio de uma distribuição mais igualitária da população pelo país.

10. Educação pública e gratuita a todas as crianças: abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é praticado hoje. Combinação de educação com a produção material etc

Quando, no curso do desenvolvimento, desaparecerem os antagonismos de classes e toda a produção for concentrada nas mãos dos indivíduos associados, o poder político perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se organiza forçosamente como classe, se por meio de uma revolução se converte em classe dominante e como classe dominante destrói violentamente as antigas relações de produção, destrói, juntamente com essa relações de produção, as condições de existência dos antagonismos entre as classes, destrói as classes em geral e, com isso, sua própria dominação como classe.

Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classe, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.
(Manifesto do Partido Comunista, seção II final)

O primeiro passo da revolução deve ser a tomada do poder do Estado pela classe operária, que se tornará, assim, a classe dominante. Esse momento corresponderia à "conquista da democracia". Parece óbvio que Marx e Engels não se referiam a uma democracia em termos quantitativos, já que o proletariado, mesmo na Inglaterra, não correspondia à maioria da sociedade (em 1848, a Europa ainda era um continente de camponeses; os latifundiários continuariam ditando as condições políticas por várias décadas). 

Para entender  o que significa a "conquista da democracia", é preciso recordar as declarações que Marx fizera sobre o papel do proletariado como classe portadora da revolução, como vanguarda emancipadora de todas as forças populares. É esse papel que habilitaria a classe operária, uma vez no poder, a organizar a vida democrática em sentido absoluto. Por outro lado, a transição rumo ao comunismo teria um caráter ditatorial devido às medidas violentas e despóticas necessárias para expropriar a burguesia, centralizar o poder do Estado e aumentar as forças produtivas. Tais medidas pareceriam insuficientes e insustentáveis - isto é, irracionais - uma vez que não seria possível justificá-las pelos padrões conhecidos de racionalidade econômica  (definidos pelo modo de produção capitalista).


Todas as dez medidas que Marx e Engels sugeriram para os países mais desenvolvidos incidem sobre a organização econômica. As quatro primeiras visam destruir a propriedade privada burguesa; as duas seguintes tem como objetivo o fortalecimento econômico do Estado central; as quatro últimas tratam da organização do trabalho. 

Nenhuma dessas medidas diz respeito à estrutura política desse Estado democrático dominado pela classe operária, tampouco se discute quais seriam as vias do exercício do poder despótico pelo proletariado. Devido ao mesmo desinteresse pela esfera política, o Manifesto se apressa em anunciar que o fim do antagonismo de classes será o fim da política, pois “o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra”. 

Uma passagem famosa da seção I do Manifesto declara  que o Estado nada mais é do que o comitê executivo dos negócios comuns da burguesia como classe dominante. Quando a divisão de classes tiver sido destruída pelo proletariado, já não haverá mais necessidade de classe dominante, nem de Estado nem de política. O que ficará no lugar será uma sociedade em que todos os indivíduos se associarão livremente para realizar seus próprios objetivos e, desta maneira, promover o bem comum: “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.”  


Talvez seja o momento de arriscar um palpite interpretativo: Marx e Engels estariam declarando que o comunismo vai realizar substancialmente (a partir do pleno desdobramento das forças sociais) exatamente aquilo que os teóricos do liberalismo propunham alcançar formalmente (através de meios políticos e legais): a harmonia social a partir da livre relação entre indivíduos livres.  Para Marx, o domínio político-legal só pode estar associado ao caráter repressivo-restritivo das relações de produção e, nessa medida, estão condenadas pelo crescimento e expansão das forças produtivas inerentes à vida social. 


Essa confiança na possibilidade de autoorganização das forças sociais sem passar pelo trâmite legal-político é uma das características persistentes do pensamento de Marx e, a meu ver, é a razão de muitos embaraços na história do marxismo mesmo antes da Revolução Bolchevique.




A momentânea confluência blanquista 


Em 1848, quando Marx e Engels se engajam no movimento revolucionário na Alemanha, eles são obrigados a moderar o projeto apresentado no Manifesto para granjear o apoio da burguesia. Inicialmente, Marx tem êxito em conseguir aliados entre os burgueses progressistas na Associação Democrática de Colônia, mas à medida que ele radicaliza suas posições nos artigos da Nova Gazeta Renana, os aliados começaram a se afastar temerosos.  Depois de meses de decepção com a timidez da burguesia alemã e com a submissão do Parlamento de Frankfurt face à pressão prussiana, Marx resolve organizar os trabalhadores, mas logo é obrigado a fugir para Paris, onde, um ano depois da prisão dos líderes da esquerda radical e do pior massacre de trabalhadores da história da Europa, até os republicanos moderados estavam a um passo de serem alijados do processo politico (13 de junho de 1849).

Nessa época, Marx e de Engels se aproximaram das posições ultra-esquerdistas de Auguste Blanqui (preso desde maio de 1848). Essa convergência blanquista trouxe outras modificações importantes, dessa vez no sentido de radicalizar o programa expresso no Manifesto.  Essas modificações aparecem de modo notável na Mensagem ao comitê central da Liga dos Comunistas, de 1850 (que comentei em A claraboia e o holofote 18), mas também se pode aquilatar a convergência blanquista neste trecho de Marx:

Assim, enquanto que utopia, o socialismo, que subordina o movimento conjunto a um de ses elementos, que substitui à produção coletiva, social, a elucubração do pedante individual e que, sobretudo, escamoteia na imaginação a luta revolucionária de classes, com suas inexoráveis exigências, por meio de pequenos artifícios ou de um grande sentimentalismo, enquanto que o socialismo doutrinário, que, no fundo, apenas idealizavam a sociedade atual, desenha nela uma imagem sem sombras e gostaria de impor seu ideal contra a sociedade existente, enquanto o proletariado abandona este socialismo à pequena burguesia, enquanto as lutas internas dos diferentes chefes socialistas, fazem destacar em cada um dos pretensos  sistemas sócias como adoção pretensiosa de um ponto de vista em detrimento dos demais, enquanto isso o proletariado se agrupa cada vez mais em redor do socialismo revolucionário, em redor do comunismo, para o qual a própria burguesia inventou o nome de “Blanqui”. Esse socialismo é a declaração da revolução permanente, da ditatura de classe do proletariado como ponto de transição necessário para a abolição completa das diferenças de classes, para a abolição de todas as relações de produção sobre a qual elas repousam, para a abolição de todas as relações sociais que correspondem a essas relações de produção, para a derrubada de todas as ideias que nascem dessas relações sociais”  (As Lutas de Classe em França, De 13 de junho de 1849 a 10 de março de 1850).

O blanquismo é a prática política dos que acreditam que a revolução é o único caminho de transformação social e de que é preciso estar disposto a trilhá-lo a qualquer instante. Trata-se do primado da ação sobre a análise das condições e sobre os programas doutrinais. É a declaração da urgência da revolução, identificada com o próprio socialismo, como explica o filósofo francês Antoine Janvier, num estudo sobre a relação entre Marx e Blanqui:

“C’est bien que, du point de vue de son contenu sémantique et théorique, le socialisme n’est rien. Il n’est pas un ensemble de contenus de pensée en vue de la connaissance. Il coïncide avec le mouvement révolutionnaire, il est la forme réfléchie que prend la foi dans l’acte révolutionnaire. “Ne vous y trompez pas, le socialisme, c’est la révolution. Elle n’est que là”. Ce que Marx affirmera de son côté, évoquant Blanqui, autour du motif de la “déclaration”, pour l’opposer au “socialisme doctrinaire” (Antoine Janvier, Un apprentissage de la révolution: Marx et la conjoncture 1848-1851)

Antoine Janvier propõe uma interpretação de sabor lacaniano da disposição revolucionária blanquista, de acordo com a qual conceitos como “república social” ou “liberdade, igualdade e fraternidade” seriam significantes vagos sobre o qual se projetariam os desejos que escapam do sistema de reprodução da ordem social. Esses desejos seriam movidos por uma pulsão subjetiva e não por finalidades teórico-doutrinais. Eles dariam significado aos significantes vagos à medida em que esses desejos tomassem consciência de si mesmos no engajamento revolucionário. 

Les mécanismes de précipitation et de maturation, que nous avons pris soin de distinguer de mécanismes causaux, parce qu’ils transforment les conditions en causes, s’ordonnent d’abord à des signifiants-en-souffrance (“liberté-égalité-fraternité”, “republique” , “république sociale”,  “organisation du travail” ,  “reprendre la révolution là où le 9 thermidor l’a arrêtée”  etc.). Dans de tels signifiants peuvent se projeter des désirs échappant au système des intérêts propre à la reproduction de l’ordre social, donc des désirs qui ne savent pas encore eux-mêmes ce qu’ils sont, ce qu’ils veulent, où ils vont, des désirs qui sont contraints de definir “leur objet” à mesure qu’ils se construisent eux-mêmes en fonction d’une “pulsion subjective” et non d’une finalité préalablement donnée ou conçue.” (idem, p.156)

Em outras palavras, o processo revolucionário seria movido pelo vazio das propostas e dos lemas, para os quais se busca um sentido que só pode ser dado pela própria revolução. A revolução seria uma aposta, em que o revolucionário se lança à aventura da contingência, da indeterminação e da imprevisibilidade em busca de algo que ele não sabe o que é, nem pode definir de antemão.

Prontidão revolucionária, voluntarismo de um pequeno grupo de líderes revolucionários, ação conspiratória, revolução permanente, ditadura do proletariado, crença na possibilidade de despertar o potencial revolucionário das massas: eis a constelação blanquista da qual Marx e Engels se aproximaram durante o ciclo revolucionário de 1848 -1850 e da qual irão se aproximar muitos líderes revolucionários do século XX, desde Lênin e Trotsky até Che Guevara. 

A confluência entre a Liga dos Comunistas e os blanquistas chegou a ser formalizada num documento assinado por Marx e Engels junto com líderes blanquistas por volta de 1850. Tratava-se da fundação de uma Associação Mundial de Comunistas Revolucionários cujo objetivo seria “a derrubada de todas das classes privilegiadas e a sujeição dessas classes à ditadura do proletariado pela manutenção da revolução permanente até a realização do Comunismo, que deve ser a forma final da organização da comunidade humana.” (citado por David Riazanov, The Relations of Marx with Blanqui). No entanto, a vitória das forças repressivas e reacionárias na década de 1850 levou Marx a afastar-se do blanquismo e a concentrar-se cada vez mais na análise da estrutura do capital. Com isso, ele se deslocou da indagação das condições subjetivas para a análise das condições objetivas de transformação revolucionária.


É verdade que isso conduziria a ganhos do ponto de vista de uma teoria crítica, mas, como tenho insistido, os ganhos teóricos não corresponderam a uma prática mais eficaz: a Primeira Internacional foi marcada por cisões profundas; a experiência de autogoverno operário da Comuna de Paris, com apoio de membros da Internacional, foi afogada no próprio sangue; o partido social-democrata do operariado alemão, fundado por seguidores de Marx, nasceu cercado de compromissos que iriam miná-lo nos quarenta anos seguintes. 

O problema é que nem a confluência blanquista nem a análise científica do capital favoreciam uma visão mais acurada e totalizante do fenômeno político e da sua imbricação complexa com os fenômenos sociais.  Esse grave astigmatismo político, segundo me parece, está na base da dificuldade de Marx em lidar teoricamente com o evento que foi a Comuna de Paris. 

Marx disse que a Comuna era uma esfinge que atormentava a burguesia, mas ele próprio não parecia muito à vontade. Nos comentários que fez n'A Guerra Civil na França dedicou uns poucos parágrafos à Comuna, alguns dos quais meramente reproduziam declarações e documentos escritos pelos próprios communards. Embora fosse capaz de explicar claramente as condições objetivas que levaram à rebelião da Guarda Nacional em 18 de março, Marx não mostrava grande compreensão da dinâmica politico-social da Comuna: na verdade, ele pensava que o comitê central da Guarda Nacional se precipitara ao entregar tão cedo o poder à Comuna, e que essa, por sua vez, cometera o erro de não recorrer à violência quando se fazia necessário. 

Do ponto de vista teórico, Marx saúda o êxito da Comuna em encontrar uma forma de governo revolucionário do proletariado, mas infelizmente não analisa o que seria tal forma de autogoverno, tampouco discute se ela poderia existir fora das circunstâncias excepcionais em que se produziu.


A esfinge 


A esta altura, o leitor gostaria de saber exatamente aquilo que não lhe posso responder: o que a Comuna de Paris significou realmente para Karl Marx. É fato que Engels, muitos anos depois, disse que a Comuna, com seu autogoverno democrático, era o modelo de ditadura do proletariado, porém Marx nunca foi tão longe: a expressão “ditadura do proletariado” nem aparece nos textos que ele escreveu sobre a Comuna.

Na falta ou impossibilidade de uma resposta definitiva, proponho que se leiam com atenção essas passagens em que Marx tratou do assunto. 


 I

“Que é a Comuna, essa esfinge que tanto atormenta o espírito burguês? 
(...)
Mas a classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios objetivos.
(...)
A antítese direta do Império foi a Comuna. O grito de «república social» com o qual a Revolução de Fevereiro foi anunciada pelo proletariado de Paris não fez mais do que expressar uma vaga aspiração por uma república que não apenas havia de pôr de lado a forma monárquica da dominação de classe. A Comuna foi a forma positiva desta república.
(...)
A multiplicidade de interpretações a que a Comuna esteve sujeita e a multiplicidade de interesses que a explicaram em seu favor mostram que ela era uma forma política inteiramente expansiva, ao passo que todas as formas anteriores de governo têm sido marcadamente repressivas. Era este o seu verdadeiro segredo: ela era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a apropriadora, a forma política, finalmente descoberta, com a qual se realiza a emancipação econômica do trabalho.
(...)
A classe operária não esperou milagres da Comuna. Ela não tem utopias prontas a introduzir par décret du peuple. Sabe que para realizar a sua própria emancipação — e com ela essa forma superior para a qual tende irresistivelmente a sociedade presente pela sua própria atividade econômica — terá de passar por longas lutas, por uma série de processos históricos que transformam circunstâncias e homens. Não tem de realizar ideais mas libertar os elementos da sociedade nova de que está grávida a própria velha sociedade burguesa em colapso.
(...)
A grande medida social da Comuna foi a sua própria existência atuante. As suas medidas especiais não podiam senão denotar a tendência de um governo do povo pelo povo. Tais foram a abolição do trabalho noturno dos oficiais de padaria; a proibição, com penalização, da prática dos patrões que consistia em reduzir salários cobrando multas a gente que trabalha para eles, sob variados pretextos — um processo em que o patrão combina na sua própria pessoa os papéis de legislador, de juiz e de executor, e surripia o dinheiro para o bolso. Outra medida desta espécie foi a entrega a associações de operários, sob reserva de compensação, de todas as oficinas e fábricas fechadas, quer os capitalistas respectivos tivessem fugido quer tivessem preferido parar o trabalho.”
(A Guerra Civil na França, parte IIII, abril-maio de 1871)

II

"Se você olhar o último capítulo de meu 18 Brumário verá que digo que a próxima tentativa de revolução francesa não será mais, como antes, de transferir a máquina burocrática militar de uma mão para outra, e sim de esmagá-la, e isto é essencial para qualquer revolução popular no Continente. E isto é o que nossos heroicos camaradas do Partido estão tentando em Paris. Que elasticidade, que iniciativa histórica, que capacidade de sacrifício desses parisienses! Depois de seis meses de fome e de ruína, causada mais pela traição do que pelo inimigo externo, eles levantam-se, por sobre as baionetas prussianas, como se nunca houvera uma guerra entre a França e a Alemanha e o inimigo não estivesse às portas de Paris. A história não tem exemplo semelhante de tamanha grandeza. Se eles forem derrotados apenas se poderá censurar seu “bom caráter”. Eles deviam ter marchado imediatamente sobre Versalhes, depois que Vinoy, primeiro, e em seguida a seção reacionária da Guarda Nacional de Paris se retiraram. O momento preciso foi perdido por causa de escrúpulos de consciência. Eles não queriam começar a guerra civil, como se esse nocivo aborto Thiers já não a houvesse iniciado com sua tentativa de desarmar Paris. Segundo erro: o Comitê Central entregou seu poder muito cedo, para dar caminho à Comuna. Outra vez por escrúpulos “muito honrados”! Entretanto, pode ser que o atual levante de Paris – mesmo se ele for esmagado pelos lobos, porcos e cães sujos da velha sociedade – é o feito mais glorioso de nosso Partido desde a insurreição de junho em Paris. Compare esses parisienses, que vão em assalto ao céu, com os escravos do céu do Sagrado Império Romano Germânico Prussiano, com seus disfarces póstumos, encobrindo os quartéis, a Igreja, os latifúndios e, sobretudo, os filisteus."
(Carta a Kugelman, 12 de abril de 1871)


III

"Segundo o próprio Manifesto, a aplicação prática dos princípios dependerá, em todos os lugares e em todas as épocas, das condições históricas vigentes e por isso não se deve atribuir importância demasiada às medidas revolucionárias propostas no final da seção II. Hoje em dia, esse trecho seria redigido de maneira diferente, em muitos aspectos. Em certos pormenores, esse programa está antiquado, levando-se em conta o desenvolvimento colossal da indústria moderna desde 1848, os progressos correspondentes da organização da classe operária e a experiência prática adquirida, primeiramente na revolução de fevereiro e, mais ainda, na Comuna de Paris, onde coube ao proletariado, pela primeira vez, a posse do poder político, durante quase dois meses. A Comuna demonstrou, especialmente, que “não basta que a classe trabalhadora se apodere da máquina estatal para fazê-la servir a seus próprios fins” (ver A Guerra Civil na França, Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, de 1871, onde essa ideia é mais desenvolvida)"
(Prefácio à edição alemã do Manifesto do Partido Comunista, 24 de junho de 1872)


IV

“Você citará sem dúvida a Comuna de Paris. Mas, além de que ela foi apenas a rebelião de uma cidade em circunstâncias excepcionais, a maioria da Comuna não era de forma alguma socialista e nem podia ser. Com um pouquinho de bom-senso contudo, ela poderia obter de Versalhes um compromisso favorável a toda massa do povo, o que era a única coisa possível aliás. Por si só, a requisição do Banco da França teria posto um termo decisivo às fanfarronadas versalhesas (...)"
(Carta a Nieuwenhuis, de 1881, citada por Jacques Rougerie in Paris Libre 1871 p. 269)



Parêntese: o poder da Comuna 


Desde O Estado e a Revolução (1917), de Lênin, a Comuna se tornou objeto de consideração no campo marxista, especialmente do ponto de vista da organização revolucionária e dos erros que deveriam ser evitados. Uma das poucas análises propriamente políticas da Comuna foi elaborada pelo marxista francês Jean Bruhat no artigo "Pouvoir, pouvoirs, état en 1871?".

No período que vai de 8 de fevereiro até a Semana Sangrenta, Bruhat distingue três momentos: o primeiro vai da eleição da Assembleia Nacional até a tomada do poder pelo comitê central da Guarda Nacional; o segundo vai até 26 de março, quando o comitê central transfere o poder à Comuna; o terceiro vai de 26 de março até a tomada de Paris pelas tropas versalhesas. 

A característica política do terceiro período é que a Comuna se torna o poder único em Paris e, segundo Bruhat, passa a constituir o embrião de um Estado que:

(a) colocou o poder de coerção a serviço dos trabalhadores. “Il faudrait rappeler que pour l'essentiel toutes revendications formulées pars les ouvriers à la fin du second Empire ont été satisfaites en quelques jours par ce nouveau pouvoir” (Pouvoir, pouvoirs, état en 1871? p. 166)

(b) buscou formas para exprimir a soberania popular, cuja força dominante eram os trabalhadores. O resultado foi uma democracia de dois níveis, em que o primeiro era o conselho geral da comuna (especialmente as comissões do trabalho e do ensino), enquanto o segundo era constituído pela organizações de base, como a Union de femmes pour la défense de Paris et les soins aux blessés e a Internacional. A relação entre esses dois níveis permaneceu problemática.

(c) acabou com a separação dos poderes (legislativo, executivo, judiciário e militar).

Bruhat conclui que a Comuna criou um embrião de Estado, mesmo que isso não fosse a sua intenção; ela não resolveu as contradições deste Estado embrionário, por causa da tensão entre os imperativos da luta contra Versalhes (que exigiam centralização) e os imperativos da democracia direta (que dependiam de deliberações longas e decentralizadas). Finalmente nem mesmo foi resolvido qual seria a extensão geográfica do poder da Comuna: ela era um órgão municipal ou nacional?

Por mais instrutiva que seja a análise de Jean Bruhat, as contradições que ele aponta poderiam receber uma interpretação oposta. Não seria melhor ver a Comuna como dissolução inacabada do poder estatal, ao invés de considerá-la um novo Estado em embrião?  Será que isso seria conceder demasiado terreno ao ponto de vista anarquista? 


As consequências da derrota


“Um clima de retração e de desapontamento perpassa os últimos anos de Marx. Ele escreveu relativamente pouco e politicamente foi mais ou menos inativo. Contudo podemos ver agora que duas realizações dos anos de 1860 foram permanentes. Haveria doravante movimentos trabalhistas de massa, socialistas, independentes e organizados. A influência da esquerda socialista pré-marxiana foi largamente destruída. E consequentemente a estrutura da política foi alterada permanentemente. Dos trabalhos principais de Marx, fora algumas cartas, apenas a Crítica ao Programa de Gotha (1875) foi posterior à queda da Comuna.” (E. J. Hobsbawn, The Age of Capital 1848-1875, capítulo 6 p. 141 nota)

É fácil ver os motivos da retração e do desapontamento do velho Marx. As duas experiências revolucionárias que ele presenciou durante foram derrotadas de maneira sangrenta: a primeira em junho de 48, a segunda em maio de 71. É certo que Marx afirmou que a derrota de 48 transformou o partido da subversão num partido realmente revolucionário, mas o massacre de 71 nem mesmo chegou a ser absorvido por algum twist dialético desse tipo. A catástrofe da Semana Sangrenta apressou o fim da Primeira Internacional e abriu caminho para um outro tipo de estrutura, o partido social democrata do operariado alemão, com o qual Marx manteve relações ambíguas. Parecia que o ciclo revolucionário tinha se encerrado na Europa Ocidental, o que levou Marx a estudar russo e a estrutura agrária do mundo eslavo.

Em relação ao significado dessa dupla derrota, o historiador Valério Arcary formula uma questão fundamental para o entendimento do Manifesto do Partido Comunista e do marxismo em geral:

"Enunciemos a nossa questão: as derrotas de 1848 e da Comuna colocaram ou não em cheque, para Marx e Engels, a definição que reconhecia, pelo menos desde o Manifesto, que uma época de revolução social estava aberta? (...) Ou, em outras palavras, teriam sido os atrasos subjetivos e não a imaturidade das condições econômico-sociais, as causas sobre as quais repousam a explicação última da derrota das revoluções proletárias do século XIX, ou o inverso?” (A Comuna de Paris e a teoria da revolução de Marx)

Para Arcary, Marx e Engels “se equivocaram na apreciação das condições objetivas que determinavam, nos subterrâneos da vida político-social, os rumos dos dois principais processos revolucionários do seu tempo” (idem, ibidem).

Nesse ponto, eu acredito que seria preciso estender a lista de erros de avaliação de Marx e Engels. Não se tratava apenas de equívocos na apreciação das condições objetivas determinantes. Parece-me que o astigmatismo político de Marx teve um papel na medida em que ele não desenvolveu as lições propriamente políticas das derrotas sofridas.

Durante o ciclo revolucionário de 1848-50, Marx e Engels se aproximam do blanquismo, com seu voluntarismo revolucionário e sua urgência de ação. No refluxo da década de 50, Marx se afasta do blanquismo e começa a pensar em termos de estruturas objetivas determinantes (no plano econômico) e condições subjetivas determinadas (no plano político e social). A culminância desse processo foi a análise da conjuntura social e econômica que levou ao poder Napoleão III em O 18 brumário de Luís Bonaparte e a publicação de Contribuição à Crítica da Economia Política, em que as teses do livro I d’O capital são expostas pela primeira vez. 

Com o advento da Comuna de Paris, o conceito marxiano de poder político dá sinais de transformação. É verdade que em várias passagens d'A Guerra Civil na França, que contém o seu  comentário mais extenso a respeito da Comuna, Marx ainda pensa a política como coerção de classe (por exemplo, quando analisa a aliança entre Thiers, os orleanistas e os grandes proprietários rurais da Assembleia Nacional), mas Marx  percebia cada vez mais claramente que a esfera política poderia assumir contornos que hoje chamaríamos "geopolíticos" (no caso do papel internacional da Alemanha de Bismarck  face a Rússia e a França) ou "micropolíticos" (no caso das muitas demandas sociais que a Comuna tinha que atender). A respeito disto, Solange Mercier-Josa observou que: “Na sua análise da Comuna de Paris, Marx coloca o acento não sobre o poder político como repressão de uma classe por outra, mas como organização democrática.(Marx: o político e o social I).  

Nada disso pode ser negado, mas é importante lembrar que  A Guerra Civil na França é principalmente um ajuste de contas com os traidores de 48 e com os escroques do Segundo Império. Ao invés de uma análise cuidadosa da “forma encontrada” de autogoverno operário, Marx prefere discutir a natureza corrupta e entreguista do governo de Versalhes, intercaladas de invectivas contra Adolphe Thiers. 


A novidade conceitual de certas passagens, a clarividência de outras e as rajadas de insultos não devem nos fazer esquecer que o astigmatismo político de Marx persistia, o que explica a maneira como minimizou o significado da Comuna na carta a Nieuwenhuis, apenas uma década depois (texto 4 citado acima).



De volta a Blanqui


Não quero, porém, parecer injusto com os intérpretes de Marx que procuram resgatar uma preeminência ou uma autonomia do aspecto político. É esse caráter decisivo da política em Marx que Solange Mercier-Josa tentou resgatar:

“Qual é para Marx e Engels a razão de ser da necessária conquista do poder político pelo proletariado, desta passagem obrigatória do movimento social à ação política como tomada do poder do Estado, embora não coloquem a instância política senão como instância derivada, segunda, e não como instância fundamental? Com efeito, Marx insiste, sempre na Ideologia Alemã, na ideia de que o Estado não é senão expressão, “expressão prática sob forma idealista” do poder social de uma classe, poder “resultante de sua posse na ideia de que “o direito, a lei, etc., não são senão “sintoma”, a expressão de outras relações sobre as quais repousa o poder do Estado, relações reais que não são em nenhum caso criadas pelo poder do Estado, mas que são, antes, o poder que o criou?  (...)

De outro lado, já que a conquista do poder político é considerada como decisiva para o proletariado num grau dado do desenvolvimento histórico, não podemos concluir que a primazia do poder político é por isso mesmo indiretamente afirmada? Qual é a eficácia conferida ao político identificado, todavia, assim como a instância jurídica ou instância moral, como “reflexo”? A questão desta eficácia do poder político, do poder político nacional, a questão da natureza desta eficácia se coloca ainda com mais acuidade, em função de que na conjuntura histórica contemporânea a Soberania do Estado-nação é explicitamente, na prática e na teoria, posta em questão. (Marx: o político e o social I)

Já Michel Löwy afirma que uma das forças das análises de Marx n’As Lutas de Classes na França está na capacidade de mostrar a dinâmica da luta de classes e seus desdobramentos políticos, sem reduzi-las a mecanismos econômicos: “A história não é feita pelas forças produtivas, mas pelas classes sociais, é óbvio que em certas condições econômicas, sociais e políticas, Em outros termos, Marx leva em conta a autonomia relativa das lutas de classes em relação às flutuações da conjuntura econômica e ao andamento cotidiano da indústria e do comércio” (Karl Marx, Friedrich Engels et les revolutions de 1848). A chave da política estaria, portanto, nos movimentos sociais e não nas condições econômicas, como defendia Gramsci, para o qual “a pretensão (apresentada como postulado essencial do materialismo histórico) de apresentar e expor toda flutuação da política e da ideologia como uma expressão imediata da estrutura, deve ser combatida teoricamente como um infantilismo primitivo e praticamente deve ser combatida com o testemunho autêntico de Marx, autor de obras políticas e históricas concretas.” (citado por Löwy, Karl Marx, Friedrich Engels et les revolutions de 1848).

O problema é que essas interpretações, de resto tão estimulantes, dependem das entrelinhas de uns poucos textos de Marx, à revelia de muitas outras declarações do próprio autor. Na guerra de interpretações que se trava desde a morte de Marx,  a práxis é substituída pela exegese infinita e o acadêmico toma o lugar do militante.  Mas será justo pedir que as tarefas de transformação social sejam adiadas sine die porque não se chegou a um acordo sobre o sentido dos textos?  Ou será que as ações devem ser feita às cegas, dispondo apenas das duas mãos e do sentimento do mundo? 

Isso é o melhor que nós, herdeiros de Marx, podemos ter? Uma volta a Blanqui?


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Valério Arcary, A Comuna de Paris e a teoria da revolução de Marx | Étienne Balibar, La filosofía de Marx, Ediciones Nueva Visión, 2006 | Jean Bruhat, Pouvoir, pouvoirs, état en 1871? in Le Mouvement Social nº 79, La Commune de 1871 Actes du colloque universitaire pour la commémoration du centenaire | Paul Dorn, Two months of red splendor | E. J. Hobsbawn, The Age of Capital 1848-1875, Abacus, 1977| Antoine Janvier, Un apprentissage de la révolution: Marx  et la conjoncture 1848-1851 Groupe de Recherches Materialistes, Cahiers du GRM  n. 1 Penser (dans) la conjoncture hiver 2010-2011 | Michel Löwy, Karl Marx, Friedrich Engels et les revolutions de 1848, Contretemps n. 6 janvier 2011 | Karl Marx, As Luta de Classes em França de 1848 a 1850 | Karl Marx, A Guerra Civil na França | Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, Boitempo, 1998 | Karl Marx, O 18 Brumário e Cartas a Kugelman, Paz e Terra, 1978 | Solange Mercier-Josa, Marx: o político e o social (I), Crítica Marxista, 1998 | David Riazanov, The Relations of Marx with Blanqui | Jacques Rougerie, Paris Libre 1871, Éditions du Seuil, 2004