quarta-feira, 30 de abril de 2014

A claraboia e o holofote #24





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A social-democracia alemã (parte 3)



Os últimos dias de Engels



1. Triunfo

“Tivemos o prazer de ver a crítica de Marx vencer o tempo todo”

“Embora Paris tenha sido o local da fundação da Segunda Internacional em 1889, a energia intelectual e organizacional por trás do socialismo do final do século XIX vinha de Berlim e Viena. Para incredulidade de Bismarck, suas leis antissocialistas só serviram para inchar as fileiras esquerdistas do grupo que, em 1890, se converteu no Sozialdemokratische Partei Deutschlands (SPD). Alarmado, o chanceler alemão recuou, procurando neutralizar o desafio socialista com um programa de reformas previdenciárias. Mas, apesar da introdução do seguro-saúde, do seguro-acidente e da aposentadoria por idade ou incapacitação, o eleitorado do SPD saltou de 7,5% em 1878 para 19,7% em 1890. “Desde a última quinta-feira à noite, quando os telegramas anunciando a vitória choviam aqui aos borbotões, estamos numa embriaguez constante de triunfo”, escreveu Engels a Laura Lafargue depois que os socialistas conseguiram um total impressionante de um milhão e meio de votos, traduzidos em 35 deputados no Reichstag. “A velha estabilidade desapareceu para sempre.”

Com um eleitorado maior, a perspectiva de poder político real agora já assomava no horizonte, e Engels achava mais importante que nunca que o SPD adotasse uma linha ideológica correta, expurgada de todos os resquícios lassallianos que ainda restavam – sendo os piores deles a crença ilógica numa “lei férrea dos salários” e a convicção de que a emancipação proletária dependia da benevolência do Estado. Na esteira do triunfo eleitoral do SPD, foi programado um congresso em Erfurt em outubro de 1891, e durante os preparativos Engels lançou mão de toda a sua astúcia política para assegurar o controle póstumo de Marx sobre a direção do socialismo alemão. Teve a malícia de mandar imprimir as “Glosas Marginais” de Marx sobre o criticado programa de Gotha de 1875, com sua análise ferina da rendição de Liebknecht e Bebel à influência lassalliana, e fez uma segunda edição de A guerra civil da França, de Marx (...) Depois Engels fez muitas correções ao primeiro rascunho do programa social-democrata de Erfurt, insistindo com o SPD para não evitar um confronto com o Estado alemão feudal e reafirmando sua convicção sobre a necessidade de um estágio democrático intermediário no caminho para o socialismo. “Se uma coisa é certa”, enfatizou ele, “é que nosso partido e a classe operária só podem chegar ao poder sob a forma de uma república democrática.”

Conforme se viu, os receios de Engels em relação a uma recaída ideológica eram infundados. Embora Erfurt tenha adotado uma série de políticas extremamente reformistas (sufrágio universal, educação gratuita, imposto de renda progressivo, tratamento médico e assistência jurídica gratuitas), para o movimento socialista europeu como um todo o congresso do SPD marcou o triunfo ideológico do marxismo com um programa filosófico que fazia eco a O Capital. “Tivemos o prazer de ver a crítica de Marx vencer o tempo todo”, escreveu Engels a Sorge com a intensa satisfação pessoal de ter respeitado o legado de Marx no seu próprio país. “Até os últimos resquícios de lassallianismo foram eliminados”. Depois de Erfurt e da conversão oficial do SPD, o marxismo assumiu o controle da Segunda Internacional. Nas palavras de Leszek Kolakowski, o marxismo não era mais "a religião de uma seita isolada, mas sim a ideologia de um poderoso movimento político.”

(Tristram Hunt, Comunista de Casaca: A vida revolucionária de Friedrich Engels, pp.376-377)



2. Capitulação?

"A introdução de Engels desde então foi vista como o testamento político do sucessor autorizado de Marx, sufocando toda a discussão a respeito da ação revolucionária."


“Os anos de 1891 a 1894 marcam o início do declínio do espírito revolucionário e a ascensão do reformismo nas fileiras da Social Democracia Alemã.  As forças pessoais que amplamente contribuíram para esse processo foram Friedrich Engels e Eduard Bernstein. Ao contrário de Marx, que foi até o último momento o mesmo ardente revolucionário que fora na época em que escreveu o Manifesto Comunista, Engels se tornou consideravelmente mais suave nos seus últimos quatro anos de vida e usou sua grande autoridade junto aos alemães para conduzi-los à legalidade e às táticas parlamentares. Em 1894, aos 74 anos de idade, ele redigiu seu testamento na forma de um capítulo introdutório, carregado de reformismo, à obra política mais revolucionária de Marx, a saber, As Lutas de Classes na França, originalmente publicada em 1850, que interpretava do ponto de vista da ditadura do proletariado e do determinismo econômico o levante de fevereiro de 1848. Engels, ao republicá-la em 1894, adicionou uma introdução que é uma negação cabal do livro; uma verdadeira palinódia de todo trabalho que ele realizou com Marx. Ele desaprovou a ação revolucionária, e ordenou que o proletariado alemão se apoiasse na legalidade e nas eleições parlamentares. A introdução de Engels desde então foi vista como o testamento político do sucessor autorizado de Marx, sufocando toda a discussão a respeito da ação revolucionária.  O sufrágio universal passou a ser visto como o melhor meio de emancipação da classe trabalhadora. Essas eram as derradeiras opiniões que um dos autores do Manifesto Comunista expressava numa época em que o reformador social e democrata moderado inglês, o sr. G. Lowes Dickinson, em seu ensaio notável sobre o desenvolvimento do Parlamentarismo inglês (1894-95), questionava seriamente a possibilidade do Partido Trabalhista Socialista chegar ao poder por meio de métodos parlamentares, argumentando que a alternância automática e pacífica dos governos conservadores e liberais se devia ao fato de que ambos os partidos tinham certos princípios sociais – ou como o sr. Arthur Balfour disse recentemente, “certas verdades sociais” – em comum, diferindo somente nas aplicações práticas, ao passo que a vitória do Partido Socialista Trabalhista significaria a proclamação de um novo princípio e a criação de uma nova base social.”


(M.B., Testament of Engels, The Labour Monthly, Vol. 2 April-May, 1922 No. 4, pp. 366-371)



3. Adaptação ao terreno

 “Eu nunca disse que o partido socialista deve primeiro ganhar a maioria [no parlamento] e então tomar o poder. Pelo contrário, eu disse expressamente que é aposta certa de dez contra um que nossos governantes, bem antes disso, usarão violência contra nós, e isso vai nos levar do terreno da maioria para o terreno da revolução.” 

"A controvérsia começou de maneira bastante inocente. Em 30 de janeiro de 1895, Richard Fischer, secretário executivo do SPD, escreveu a Engels a respeito de seus planos de publicar alguns do artigos de Marx sobre a França de 1848-1850. O SPD queria que Engels escrevesse uma introdução ao panfleto planejado. (...)

Engels escreveu a Fischer no dia 12 de fevereiro de 1895, prometendo lhe enviar brevemente sua introdução (Marx Engels Collected Works, MECW vol. 50, p. 443). No 26 de fevereiro, ele escreveu ao genro de Marx, o socialista francês Paul Lafargue, sobre o andamento do trabalho. Engels disse a Lafargue: “Esta introdução se tornou um bocado longa, uma vez que, além da revisão geral dos eventos desde aquela data, era necessário explicar por que nós estávamos certos em esperar uma vitória definitiva e eminente do proletariado, por qual razão ela não aconteceu, e de que maneira os eventos mudaram nossa maneira como víamos as coisas.  Isso é importante por causa das novas leis com que estão nos ameaçando na Alemanha (idem, p. 446).

Engels estava se referindo à lei de subversão que o governo apresentou em dezembro de 1894 dirigida contra o SPD. Ele também estava ciente de que o SPD havia sido colocado na ilegalidade pela Lei Anti-Socialista entre 1878 e 1890. Ele disse a Lafargue: “O que é certo é que haverá outra época de perseguição para nossos amigos. Quanto a nós, nossa política deveria ser a de não nos deixarmos provocar nesse momento; nós lutaríamos sem a menor chance de sucesso e seríamos massacrados como Paris em 1871.”  (p.447)

Qual era o teor da Introdução? Engels contrastava as condições de 1848-1850 com aquelas da década de 1890. (…)

No dia 6 de março, Engels recebeu uma carta de Fischer pedindo-lhe que suavizasse o tom do manuscrito. Engels respondeu no dia 8 de março, depois de ter feito algumas mudanças. Ele escreveu: “Fiz o possível para levar em consideração as suas graves objeções, embora eu não possa, por nada nesse mundo, ver o que pode ser objetado a respeito de metade dos trechos que você cita.” E acrescentou: “Minha opinião é que você não tem nada a ganhar defendendo a total abstenção do uso da força. Ninguém iria acreditar em vocês; tampouco algum partido de algum país iria a ponto de abrir mão do direito de resistir à ilegalidade pela força das armas. Eu tenho que levar em consideração que meu texto é lido também por estrangeiros... e simplesmente não posso me comprometer dessa maneira diante deles. (p.457)

Ele termina a carta tão enfaticamente quanto começou: “A legalidade pelo tempo necessário e na medida em que convenha, mas não legalidade a qualquer preço, nem mesmo como modo de falar.” (p.459) (...)

Aonde Engels realmente queria chegar? Ele escreveu a Paul Lafargue em 3 de novembro de 1892: “A era das barricadas e dos combates de rua se foi para sempre; se o exéricto lutar, a resistência se torna loucura. Daí a necessidade de encontrar novas táticas revolucionárias. Eu pensei bastante sobre isso por algum tempo e ainda não cheguei a uma conclusão. (p.21)

Em outra carta a Lafargue em 12 de novembro de 1892. Ele afirmou: “Você imagina agora que arma esplêndida vocês têm tido na França ao longo de quarenta anos de sufrágio universal? Se ao menos as pessoas tivessem sabido usá-la! É mais lenta e mais chata do que o chamado da revolução, mas é dez vezes mais segura, e o que é melhor, ela indica com a mais perfeita exatidão o dia em que o chamado à revolução armada pode ser feita. É aposta certa que o sufrágio universal, usado de maneira inteligente pelos trabalhadores, levará os governantes a violar a legalidade, o que nos colocará na posição mais favorável para fazer a revolução.  (p.29)

N’A Origem da Família, da Propriedade e do Estado” (1884), Engels expressou sentimentos parecidos: “O sufrágio universal é o medidor da maturidade da classe trabalhadora. Ele não pode e nunca será outra coisa no estado moderno, mas isso é o suficiente. No dia em que o termômetro do sufrágio universal mostrar o ponto de ebulição entre os trabalhadores, tantos os eles quanto os capitalistas saberão em que ponto estão. (MECW vol. 26 p.272)

Mas Engels não se tornou um cretino parlamentar. Como ele explicou para o jornal socialista italiano Critica Sociale em fevereiro de 1892: “Eu nunca disse que o partido socialista deve primeiro ganhar a maioria [no parlamento] e então tomar o poder. Pelo contrário, eu disse expressamente que é aposta certa de dez contra um que nossos governantes, bem antes disso, usarão violência contra nós, e isso vai nos levar do terreno da maioria para o terreno da revolução.” (MECW vol. 27 p.271)

(Paul Hampton, Engels’ Political Testament, Workers' Liberty, April 2005 )




4.O testamento de Engels: antologia 

“O modo de luta de 1848 está hoje ultrapassado em todos os aspectos.”



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“Havia quem acreditasse que, com a Comuna de Paris, se enterrara definitivamente o proletariado combativo. Contudo, bem pelo contrário, é a partir da Comuna e da guerra franco-alemã que ele conhece a sua mais poderosa ascensão.”


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“Conforme Marx tinha previsto, a guerra de 1870/71 e a derrota da Comuna deslocaram por momentos o centro de gravidade do movimento operário europeu da França para a Alemanha. Em França, é claro que eram necessários vários anos para que se recuperasse da sangria de maio de 1871.”


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“Deste modo, os operários alemães tinham prestado um segundo grande serviço à sua causa, além do primeiro que residia na sua simples existência como Partido Socialista, o partido mais forte, mais disciplinado e que mais rapidamente crescia. Tinham fornecido aos seus camaradas de todos os países uma nova arma, uma das mais cortantes, mostrando-lhe como se utiliza o sufrágio universal.”


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“Para utilizar as palavras do programa marxista francês, transformaram o direito de voto, de moyen de duperie qu’il a été jusqu’ici, en instrument d’émancipation – de um meio de logro que tinha sido até aqui, em instrumento de emancipação. E se o sufrágio universal não tivesse oferecido qualquer outro ganho além de nos permitir, de três em três anos, contar quantos somos; de, pelo aumento do número de votos inesperadamente rápido e regularmente constatado, aumentar em igual medida a certeza da vitória dos operários e o pavor dos seus adversários, tornando-se assim nosso melhor meio de propaganda; e de nos informar com precisão sobre nossas próprias forças assim como sobre as de todos os partidos adversários e, desse modo, nos oferecer uma medida sem paralelo para as proporções da nossa ação e nos podermos precaver contra a timidez e a temeridade inoportunas; se fosse esta a única vantagem do sufrágio universal isso já era mais do que suficiente. Mas há muitas outras. Na agitação da campanha eleitoral, forneceu-nos um meio impar de entrarmos em contato com as massas populares onde elas ainda se encontram distantes de nós e de obrigar todos os partidos a defender perante todo o povo as suas concepções e ações face aos nossos ataques; além disso, abriu aos nossos representantes uma tribuna no Reichstag, de onde podiam dirigir-se aos seus adversários no Parlamento e às massas fora dele com uma autoridade e uma liberdade totalmente diferentes das que se tem na imprensa e nos comícios. De que serviu ao governo e à burguesia a sua lei anti-socialista, se a agitação durante a campanha eleitoral e os discursos socialista no Reichstag nela abriam brechas continuamente?”


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“E, desse modo, aconteceu que tanto a burguesia como o governo vieram a ter mais medo da ação legal do que da ilegal do partido operário, a recear mais os êxitos eleitorais do que os da rebelião.”


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“De fato, também aqui as condições de luta se tinham alterado essencialmente. A rebelião de velho estilo, a luta de ruas com barricadas, que até 1848 tinha sido decisiva em toda parte, tornou-se consideravelmente antiquada.”


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“Mesmo no período clássico das lutas de ruas, a barricada tinha portanto um efeito mais moral do que material. Era um meio de abalar a firmeza da tropa. Se se aguentava até conseguir este objetivo, alcançava-se a vitória; se não, era a derrota. E este o aspecto principal que é preciso ter em conta mesmo quando se estudam as possibilidades das lutas de rua que eventualmente venham a ter lugar.”


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“Estas possibilidades eram já em 1849 bastante más. Por toda a parte a burguesia se tinha passado para o lado dos governos. A “cultura e a propriedade” saudavam e obsequiavam os soldados que marchavam contra as insurreições. A barricada tinha perdido o seu encanto; o soldado já não via atrás dela o “povo”, mas sim rebeldes, agitadores, saqueadores, partilhadores, a escória da sociedade.”


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“Do lado dos insurrectos, pelo contrário, pioram todas as condições. Dificilmente se dará de novo uma insurreição com a qual todas as camadas do povo simpatizem; na luta de classes nunca se agruparão provavelmente em torno do proletariado todas as camadas médias de um modo tão exclusivo que o partido da reação congregado em redor da burguesia quase desapareça comparativamente. O “povo” aparecerá, pois, sempre dividido e, assim, faltará uma poderosa alavanca que em 1848 se mostrou tão eficaz.”


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“Quer isto dizer que no futuro a luta de ruas deixará de ter importância? De modo nenhum. Significa apenas que desde 1848 as condições se tornaram muito mais desfavoráveis para os combatentes civis, muito mais favoráveis para a tropa. (...) Portanto, ocorrerá menos no princípio de uma grande revolução do que no decurso da mesma e terá que ser levada a cabo com maiores forças. Estas, porém preferirão a luta aberta à tática passiva da barricada.”


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“O tempo dos ataques de surpresa, das revoluções levadas a cabo por pequenas minorias conscientes à frente das massas inconscientes, já passou. Sempre que se trata de uma transformação completa da organização social são as próprias massas que devem estar metidas nela, têm de compreender o que está em causa, por que é que dão o sangue e a vida. Isto foi o que a história dos últimos cinquenta anos nos ensinou. Mas para que as massas entendam o que há a fazer é necessário um longo e perseverante trabalho; e esse trabalho é precisamente o que agora estamos realizando e com um êxito que leva os nossos adversários ao desespero.”


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“É evidente que os nossos camaradas estrangeiros não renunciam ao seu direito à revolução. O direito à revolução é sem dúvida o único “direito” realmente “histórico”, o único em que assentam todos os Estados modernos sem exceção (...). O direito à revolução está tão incontestavelmente reconhecido pela consciência universal que até o general von Boguslawski faz derivar unicamente desse direito do povo o direito ao golpe de Estado que reivindica para o seu imperador.”


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“A ironia da história universal põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os “revolucionário”, os “subversivos”, prosperamos muito melhor com os meios legais do que os ilegais e a subversão. Os partidos da ordem, como eles se intitulam, afundam-se com a legalidade que eles próprios criaram.  Exclamam desesperados como Odilon Barrot: la legalité nous tue, a legalidade nos mata, enquanto nós, com essa legalidade, revigoramos os nossos músculos e ganhamos cores nas faces e parecemos ter vida eterna. E se nós não formo loucos a ponto de lhes fazermos o favor de nos deixarmos arrastar para a luta de rua, não lhes restará outra saída senão serem eles próprios a romper esta legalidade tão fatal para eles.”





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M.B., Testament of Engels | Friedrich Engels, Introdução a Lutas de Classes em França de 1848 a 1850  | Paul Hampton, Engels' Political Testament | Tristram Hunt, Comunista de Casaca: a vida revolucionária de Friedrich Engels, Record, 2010 






segunda-feira, 14 de abril de 2014

A claraboia e o holofote # 23 (Adendo ilustrativo)





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



A social-democracia alemã (parte 2)



Marx e Engels contra a social-democracia alemã


uma antologia breve


1.


"São exatamente os mesmos que, por medo da ação, frearam o movimento a cada passo em 1848 e 1849, e afinal o levaram ao fracasso". 

Karl Marx, Circular aos dirigentes social-democratas alemães (1879)

O intelectual social-democrata Karl Höchberg havia lançado em Zurique, com a ajuda de Carl August Schramm e Eduard Bernstein, uma revista revisionista chamada Anais de Ciências Sociais e Política Social, que defendia o abandono da estratégia revolucionária e do caráter operário do partido social-democrata. 


Marx e Engels atacaram esse aburguesamento, que viria a dominar o partido. Numa carta enérgica enviada a Liebknecht, Babel e Bracker, o dirigismo pequeno-burguês assumido por alguns intelectuais social-democratas, assim como sua política de contemporização e sua estratégia de adiamento da ação revolucionária ad calendas graecas são confrontados com a experiência de 1848-1849, que Marx e Engels ainda consideravam fundamental. 


"Em resumo, a classe operária é incapaz de se emancipar por seus próprios meios. Deve se colocar sob a direção de burgueses “instruídos e possuintes” que, só eles, “dispõem de meios e tempo” para se familiarizar com o que é bom para os operários. (...)

No dia em que Berlim for de novo bastante inculta para se lançar num novo 18 de março de 1848, os sociais-democratas, em vez de participar da luta da “canalha atraída pela embriaguez das barricadas”, vão de preferência “seguir a via da legalidade”, bancar os moderados, desmontar as barricadas e, se necessário, marchar com os nobres senhores da guerra contra as massas tão unilaterais, rudes e incultas. Ou se esses senhores disserem que não foi isso que quiseram dizer, então o que foi que quiseram dizer? (...)

“O programa não deve ser abandonado, mas simplesmente adiado – por tempo indeterminado.” Aceitam-no, mas não propriamente para eles mesmos ou para a época contemporânea, mas a título póstumo, como herança para seus filhos e netos. Enquanto isso, empregam “toda a sua força e toda a sua energia” em tudo quanto é espécie de arranjo e remendo da sociedade capitalista, para fazer crer que alguma coisa está sendo feita, e também para que a burguesia não se assuste. (...)

São exatamente os mesmos que, por medo da ação, frearam o movimento a cada passo em 1848 e 1849, e afinal o levaram ao fracasso; as mesmas pessoas que nunca veem a reação em ação e sempre se espantam de cair num impasse, em que qualquer resistência e qualquer fuga são impossíveis; as mesmas pessoas que querem encerrar a história em seus estreito e mesquinho horizonte pequeno-burguês, enquanto ela passa à ordem do dia por cima da cabeça delas. (...)

No que diz nos diz respeito, todo o nosso passado faz uma única via permanecer aberta para nós. Há quase quarenta anos apresentamos a luta de classes como o motor mais decisivo da história e, mais particularmente, a luta social entre burguesia e proletariado como a alavanca mais poderosa da revolução social moderna. Portanto, não podemos de modo algum nos associar a pessoas que querem riscar do movimento essa luta de classe.

Ao fundar a Internacional, proclamamos expressamente que a divisa de nosso combate era: “A emancipação da classe operária será obra da própria classe operária.” Portanto, não podemos marchar com pessoas que expressam abertamente que os operários são incultos demais para se emancipar e, por isso, devem ser libertados primeiro do alto, pelos filantropos grande e pequeno-burgueses. Se o novo órgão do Partido adotar uma posição burguesa e não proletária, para nosso desgosto não nos restaria saída a não ser declarar publicamente nossa oposição e romper a solidariedade com que representamos o partido alemão no estrangeiro".
(in Michel Renault, Gérard Duménil, Michael Löwy, Ler Marx, p. 92-93)



2.

"Enquanto o proletariado ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em liberdade, o Estado deixa de existir como tal."


Friedrich Engels, Carta a Bebel (março de 1875)

Engels comenta com August Bebel os pontos que ele considerava condenáveis no Programa de Gotha, especialmente os equívocos a respeito do papel do Estado e das noções de "liberdade" e "igualdade".

Nenhuma palavra é dita sobre a organização da classe trabalhadora como classe por meio dos sindicatos. E esse é um ponto absolutamente essencial, pois se trata propriamente da organização de classe do proletariado no seio da qual ele luta suas batalhas diárias contra o capital, na qual ele se instrui e que hoje não pode mais ser esmagada, nem mesmo pela mais terrível reação (como é o caso atualmente em Paris).  

O Estado popular livre transformou-se no Estado livre. Em seu sentido gramatical, um Estado livre é aquele Estado que é livre em relação a seus concidadãos, portanto, um Estado com governo despótico. Dever-se-ia ter deixado de lado todo esse palavreado sobre o Estado, sobretudo depois da Comuna, que já não era um Estado em sentido próprio. O Estado popular foi sobejamente jogado em nossa cara pelos anarquistas, embora já o escrito de Marx contra Proudhon e, mais tarde, o Manifesto Comunistas digam de maneira explícita que, com a instauração da ordem socialista da sociedade, o Estado dissolve-se por si só e desaparece.  Não sendo o Estado mais do que uma instituição provisória, da qual alguém se serve na luta, na revolução, para submeter violentamente seus adversários, então é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em liberdade, o Estado deixa de existir como tal. Por isso, nossa proposta seria substituir, por toda parte, a palavra Estado por Gemeinwwesen, uma boa e velha palavra alemã, que pode muito bem servir como equivalente do francês commune. (...)

A representação da sociedade socialista como reino da igualdade é uma representação unilateral francesa, baseada na velha “liberdade, igualdade, fraternidade”, uma representação que teve sua razão de ser como fase do desenvolvimento histórico, em seu tempo e em seu lugar, mas que agora, como todas as unilateralidades das primeiras escolas socialistas, deveria ser superada, uma vez que serve apenas para provocar confusão nos cérebros e porque, além disso, descobriram-se formas mais precisas de tratar a questão". (Crítica ao Programa de Gotha, pp. 55-57)



3.

"Um grande número de frases sobre o dever ser do comunismo, em sua maioria apoiadas no Manifesto, porém tão distorcidas em sua redação que, quando vistas de perto, revelam as mais revoltantes asneiras."

Friedrich Engels, Carta a Wilhelm Bracke (outubro de 1875)

Engels endossa as críticas que Marx fez ao programa de Gotha.


“O programa, em sua redação final, consiste de três partes:

1. Fraseologias lassallianas e termos que não poderiam ter sido adotados sob nenhuma condição. Se duas frases se unem, não se põe no programa de união aquilo que é controverso. Ao permitir que isso ocorresse, nossos homens se submeteram espontaneamente ao mais degradante jugo.

2. Uma série de reivindicações vulgar-democráticas, concebidas no espírito e no estilo do Partido Popular.

3. Um grande número de frases sobre o dever ser do comunismo, em sua maioria apoiadas no Manifesto, porém tão distorcidas em sua redação que, quando vistas de perto, revelam as mais revoltantes asneiras. Quando não se entende dessas coisas, deve-se desistir de escrever sobre elas ou copiar literalmente daqueles que entendem delas. (Crítica ao Programa de Gotha, p. 61)



4.

"[Lassalle] fazia negociatas tais com Bismarck, seu parente de caráter, que acabariam de fato por conduzir à traição do movimento, se ele não tivesse sido baleado a tempo, para sua própria sorte.” 

Friedrich Engels, Carta a Kautsky (fevereiro de 1891)

Os social-democratas transformaram Lassalle numa lenda, que Engels achava necessário desfazer. Porém a lenda continuaria viva mesmo após a 2ª Guerra Mundial. Possivelmente um sinal de que não se tratava de um equívoco, mas de um aspecto fundamental da visão social-democracia alemã: sua crença nos poderes do Estado. 

“A lenda que esconde a diviniza a verdadeira figura de Lassalle não pode se tornar artigo de fé do partido. Mesmo que se admitam seus méritos em relação ao movimento operário, seu papel histórico permanece, nele, um papel ambíguo (...) Depois de ter sido na prática, até 1862, um democrata vulgar tipicamente prussiano, com fortes inclinações bonapartistas (li agora mesmo a carta dele a Marx), ele mudou de repente, por motivos puramente pessoais, e começou sua militância; em menos de dois anos, já exigia que os trabalhadores usassem o partido da realeza contra a burguesia e fazia negociatas tais com Bismarck, seu parente de caráter, que acabariam de fato por conduzir à traição do movimento, se ele não tivesse sido baleado a tempo, para sua própria sorte.” (Crítica ao Programa de Gotha, p. 68-69)



5.

"A mim, pessoalmente, isso só pode ser de uma forma: nenhum partido, em nenhum país, pode me condenar ao silêncio, quando estou decidido a falar."

Friedrich Engels, Carta a Bebel (maio de 1891)

Engels explica a Bebel o papel que Wilhelm Liebknecht teve na elaboração do programa de Gotha e critica a atitude do partido em tentar censurar a publicação do documento. Os social-democratas alemães do final do século XIX já colocavam em prática aquela dura disciplina interna, em nome de obscuras decisões de gabinete, que irá caracterizar o cotidiano dos partidos comunistas do século XX. 


“Quer saber de onde as obscuras e confusas fraseologias do programa? Ora, são todas de Liebknecht em carne e osso; foi em torno delas que brigamos com ele ao longo dos anos e era diante delas que ele se entusiasmava. (...) E como fazia questão das reivindicações democráticas, que ele acreditava compreender, tanto quanto das teses econômicas, que ele não compreendia com clareza, ele certamente agiu com sinceridade quando, ao trocar suas quinquilharias democráticas pelos dogmas lassallianos, achou que estava fazendo um excelente negócio. 
(...)
Mais uma coisa: depois que vocês tentaram coercitivamente impedir a publicação do artigo, e enviaram ao Neue Zeit advertências de que, em caso de reincidência, ele poderia ser estatizado pelo partido e censurado, obriga-me a por sob uma luz adequada a apropriação de toda a sua imprensa pelo partido. Em que vocês se diferenciam de Puttkamer, se introduzem em suas próprias fileiras uma “lei contra os socialistas”? A mim, pessoalmente, isso só pode ser de uma forma: nenhum partido, em nenhum país, pode me condenar ao silêncio, quando estou decidido a falar. Mas eu gostaria de sugerir a vocês que refletissem se não fariam melhor sendo um pouco menos melindrosos e, na ação, menos prussianos. Vocês – o partido – precisam da ciência socialista, e esta não pode viver sem liberdade de movimento. Para isso, é preciso tolerar as inconveniências, e isso se faz mantendo a compostura sem vacilar. Uma tensão, mesmo que leve, para não falar de uma ruptura entre o partido alemão e a ciência socialista alemã, seria uma desgraça e uma vergonha inomináveis. (...) E, ainda, vocês não podem esquecer que a disciplina num grande partido não pode ser imposta sob ameaça de punição, como se faz numa pequena seita, e que não existe mais a “lei contra os socialistas”, aquela que fundiu lassallianos e eisenachianos e tornava necessária tal coerência de opiniões.” (Crítica ao Programa de Gotha, (p. 73-74; 75-76)


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Michel Renault, Gérard Duménil, Michael Löwy, Ler Marx, Editora Unesp, 2011  |  Karl Marx, Crítica ao Programa de Gotha, Boitempo, 2012 


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Foto: tela de Giuseppe Penone, acervo da Galleria Nazionale d'Arte Moderna, Roma




EDIÇÃO COMEMORATIVA DUPLA

a claraboia e o holofote 


14 de abril de 2013 - 14 de abril de 2014



A claraboia e o holofote #23





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A social-democracia alemã (parte 1) 


A unificação dos partidos operários 



Nascido em 1825, Ferdinand Lassalle conheceu Marx e Engels durante a revolução de 1848 na Alemanha, onde teve participação ativa. Todavia, a partir da década de 1860, Lassalle começou a acreditar que o impulso revolucionário estava esgotado e que era preciso tomar o caminho da negociação política dentro da legalidade. Ele começou a tomar distância de Marx, de quem se considerava discípulo, para aproximar-se de Bismarck, que buscava aliados para enfrentar a oposição da burguesia liberal. Lassalle esperava alcançar, por meio dessa aliança, um Estado de bem-estar que protegesse os trabalhadores. Esse Estado paternalista e benévolo seria uma democracia em que a massa dos trabalhadores manifestaria sua vontade através do sufrágio universal.  

Em 1863, Lassalle organizou a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, o primeiro partido operário da Prússia, mas, frustrado com o pouco resultado do seu esforço de propaganda, Lassalle foi para a Suiça, onde morreu num duelo por questões amorosas em 1864.

Wilhelm Liebknecht nasceu em 1826. Depois de trabalhar algum tempo como professor, envolveu-se em várias insurreições nas jornadas de 1848-1849, o que o obrigou a refugiar-se em Londres durante 13 anos, ao longo dos quais manteve contato próximo com Marx e Engels. Quando foi anistiado pelo governo alemão em 1862, retornou à Prússia para fazer propaganda do socialismo. No ano seguinte, aproximou-se do partido operário fundado por Lassalle e fez amizade com August Bebel (nascido em 1840). Bebel crescera em extrema pobreza e ganhava a vida como torneiro; era um orador empolgado, enquanto seu amigo Liebknecht, com formação universitária, era melhor  escritor. Nas atividades práticas do movimento operário, eles se completavam. Depois de um breve período de entusiasmo, ambos se afastaram do grupo lassalliano para fundar, em 1869 na cidade de Eisenach, o Partido Social-democrata dos trabalhadores, afiliado à Primeira Internacional. 

Eleitos para o Reichstag da Confederação do Norte da Alemanha, Liebknecht e Bebel se mantiveram fiéis ao internacionalismo socialista. Eles foram os únicos deputados a se opor à guerra contra a França em 1870, o que resultou numa sentença de dois anos de prisão para ambos.

Face ao contínuo avanço dos socialistas no Parlamento e à repressão movida por Bismarck, o partido eisenachiano e o lassalliano decidiram se fundir no congresso realizado em Gotha entre 22 e 27 de maio de 1875. O programa do partido unificado - que viria a se tornar o Partido Social-democrata Alemão (SPD) - foi redigido por Liebknecht. 

Assim que teve a oportunidade de estudá-lo, Marx fez uma série de comentários duríssimos ao programa, especialmente às passagens que evidenciavam a adesão às propostas lassallianas ou a distorção das teses do próprio Marx.  Essas glosas marginais foram enviadas a Wilhelm Bracke numa carta que deveria ser lida apenas pelos líderes do novo partido operário. Quinze anos mais tarde, elas se tornaram conhecidas quando Engels, a despeito das reticências dos líderes social-democratas, decidiu publicá-las na revista Die Neue Zeit, dirigida por Kautsky.




Os comentários de Marx ao Programa de Gotha  (1875)



Na sua crítica é notável que Marx tomasse como referência doutrinal as posições do Manifesto Comunista, que ele considerava - com razão - amplamente conhecido entre as lideranças dos partidos operários, inclusive Lassalle (que supostamente o saberia de cor). Embora faça breves e incisivos ataques aos erros da teoria econômica de Lassalle (especialmente a "lei de bronze dos salários", segundo a qual era inútil a luta por ganhos salariais, já que eles seriam perdidos por uma consequente alta de preços), Marx faz pouco uso das análises que desenvolvera n'O Capital

No entanto, mais do que o aspecto econômico, o que mais atrai a atenção na Crítica ao Programa de Gotha é que Marx tenha sido obrigado a discutir longa e explicitamente o papel do Estado, a fim de se opor às propostas estatizantes herdadas de Lassalle. É em torno dessas propostas que as correntes revisionistas e reformistas da social-democracia irão se reorganizar nas décadas seguintes, numa crescente aceitação dos princípios do liberalismo político (temperado com a busca de justiça distributiva) e das práticas econômicas capitalistas (regulamentadas em âmbito nacional pelo Estado) através de políticas de pacto entre sindicatos, patrões e governos.


Por isso, gostaria de destacar cinco aspectos da crítica de Marx ao quadro social-nacional-estatista que já se anunciava na aproximação entre Lassalle e Bismarck e na admiração que o primeiro votava aos Discursos à Nação Alemã, de Fichte, e à concepção hegeliana de Estado.



(1)  As classes revolucionárias:

"proletariado é revolucionário diante da burguesia, porque, sendo ele mesmo fruto do solo da grande indústria, busca eliminar da produção seu caráter capitalista, o qual a burguesia procura perpetuar. Mas o Manifesto acrescenta que “quando [as camadas médias] se tornam revolucionárias, isto se dá em consequência de sua iminente passagem para o proletariado.”

O programa de Gotha afirmava: 

“A libertação do trabalho tem de ser obra da classe trabalhadora, diante da qual todas as outras classes são uma só massa reacionária.”

O que levou Marx a comentar:


A primeira oração é extraída do preâmbulo dos Estatutos da Internacional, porém, aqui, ela é “melhorada”. Naquele texto, diz-se: “a libertação da classe operária tem de ser obra dos próprios trabalhadores”, aqui, ao contrário, é a “classe trabalhadora” que tem de libertar – o quê? – “o trabalho”.  Compreenda quem puder.

A título de reparação, a oração seguinte é, ao contrário, a mais pura das citações lassallianas: “diante da qual (a classe trabalhadora) todas as outras classes formam uma só massa reacionária”.

No Manifesto Comunista diz-se que:

“De todas as classes que hoje se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico.”

A burguesia é concebida aqui como classe revolucionária – como portadora da grande indústria – em face da aristocracia feudal e das classes médias, que desejam conservar todas as posições sociais criadas por modos de produção passados. Elas não formam, portanto, justamente com a burguesia, uma só massa reacionária.

Por outro lado, o proletariado é revolucionário diante da burguesia, porque, sendo ele mesmo fruto do solo da grande indústria, busca eliminar da produção seu caráter capitalista, o qual a burguesia procura perpetuar. Mas o Manifesto acrescenta que “quando [as camadas médias] se tornam revolucionárias, isto se dá em consequência de sua iminente passagem para o proletariado”.

Desse ponto de vista, é também absurdo dizer que as classe médias, “juntamente com a burguesia” e, sobretudo, com a aristocracia feudal, “formam uma só massa reacionária” diante da classe trabalhadora.  (...)

Lassalle sabia de cor o Manifesto Comunista, tanto quanto seus fiéis sabem os escritos sagrados que ele produz. Portanto, quando ele o falsificou de modo tão grosseiro, foi apenas com o objetivo de enfeitar sua aliança com os adversários absolutistas e feudalistas contra a burguesia. 

(Crítica ao Programa de Gothapp.33-34)

Marx insiste no papel da burguesia e do proletariado como classes revolucionárias, repetindo o núcleo mesmo da seção I do Manifesto Comunista ("Burgueses e Proletários"). Diante disso, a tese lassalliana de que todas as  classes, exceto o proletariado, são igualmente reacionárias somente poderia ser uma falsificação para justificar uma aliança oportunista e equivocada em que a política anti-burguesa e reformista de Lassalle tornava o operariado um instrumento a serviço da política anti-burguesa e conservadora de Bismarck.



(2) O internacionalismo do capital e do trabalho:

"Os próprios “marcos do atual Estado nacional” do Império alemão, por exemplo, situam-se economicamente, “nos marcos do mercado mundial” e, politicamente, “nos marcos do sistema dos Estados.”


O Programa de Gotha afirma: 

“A classe trabalhadora atua por sua libertação, inicialmente, nos marcos do atual Estado nacional, consciente de que o resultado necessário de seu esforço, comum a todos os trabalhadores de todos os países civilizados, será a fraternização internacional dos povos.”


Marx comenta: 


Lassale, ao contrário do Manifesto Comunista e de todo o socialismo anterior, concebeu o movimento dos trabalhadores sob a mais estreita ótica nacional. Aqui, o programa segue seus passos – e isso depois da ação da Internacional!

É evidente que, para poder lutar em geral, a classe trabalhadora tem de se organizar internamente como classe, e a esfera nacional é o terreno imediato de sua luta. Nesse sentido, sua luta de classe é nacional, não segundo o conteúdo, mas, como diz o Manifesto Comunista, “segundo a forma”.

Mas os próprios “marcos do atual Estado nacional” do Império alemão, por exemplo, situam-se economicamente, “nos marcos do mercado mundial” e, politicamente, “nos marcos do sistema dos Estados”. Qualquer comerciante sabe que o comércio alemão é, ao mesmo tempo, comércio exterior, e a grandeza do sr. Bismarck reside justamente em sua forma de política internacional.

E a que o Partido Operário Alemão reduz seu internacionalismo? À consciência de que o resultado de seu esforço “será a fraternização internacional dos povos” – uma fraseologia tomada de empréstimo da Liga da Liberdade e da Paz e que tem pretensamente o mesmo significado da fraternização internacional das classes trabalhadoras em sua luta comum contra as classes dominantes e seus governos. Nenhuma palavra, portanto, sobre as funções internacionais da classe trabalhadora alemã! E assim ela deve enfrentar sua própria burguesia – que, contra ela, já se une fraternalmente aos burgueses de todos os países – e a conspiratória política internacional do sr. Bismarck. 

Na verdade, a profissão de fé internacionalista do programa é infinitamente inferior à do Partido do Livre-Câmbio. Este também declara que o resultado de seu esforço é “a fraternização internacional dos povos”. Mas também age para transformar o comércio num comércio internacional, não se contentando em absoluto com a consciência de que todos os povos fazem comércio dentro de seus respectivos domínios.

A ação internacional das classes trabalhadoras não depende de maneira alguma da existência da “Associação Internacional dos Trabalhadores”. Esta foi apenas uma primeira tentativa de criar um órgão central voltado para aquela atividade – tentativa que, pelo impulso que deu ao movimento, teve uma eficácia durável, mas que, em sua primeira forma histórica, tornou-se impraticável após a queda da Comuna de Paris.

O Norddeustsche de Bismarck tinha razão quando anunciou, para a satisfação de seu chefe, que o Partido Operário Alemão, no novo programa, abdicara do internacionalismo. (idem, pp 35-37)


A ideia de limitar a luta emancipatória do proletariado alemão aos marcos nacionais, enquanto a burguesia atua livremente no plano internacional, só pode representar o isolamento e o enfraquecimento da classe operária alemã. 


A luta da classe operária é, por definição, internacional, assim como é o movimento de expansão do capital. Portanto, todo verdadeiro internacionalismo é aquele ligado aos interesses das duas classes revolucionárias: a burguesia e o proletariado. O internacionalismo do Capital e o do Trabalho.


A alcance internacional da luta do proletariado não depende da existência de associações como a Internacional. Elas existem apenas para organizar o movimento, mas não são a causa dele.  


Marx reafirma aqui um princípio básico do partido comunista de 48: as organizações não podem tomar o lugar do movimento em sua espontaneidade. O movimento real não depende de acordos feitos em gabinete, nem de programas - mesmo aqueles elaborados pelos revolucionários mais lúcidos. Na carta a Bracke, Marx diz peremptoriamente: "Cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas"  (5 de maio de 1875)


Do ponto de vista de Marx, tanto a limitação nacionalista quanto o internacionalismo baseado no pacifismo não poderiam conduzir a nenhuma transformação real da situação do proletariado.


Na época, esse internacionalismo baseado na fraternidade dos povos e no desejo de constituir os "Estados Unidos da Europa" eram defendidos pela Liga da Liberdade e da Paz, da qual faziam alguns veteranos de 48, como Garibaldi e Victor Hugo. Como mostrou o cientista político Ernst-Otto Czempiel, os objetivos da Liga vinham de uma matriz kantiana:

"How should a society be ruled in order to bring about a situation in which it holds back from using external aggression? Kant provides us with a clear and classic answer to this question: Society must have a republican system of rule that spreads the values of political participation equally among civil society. When a situation is achieved in which foreign policy is not decided by sovereigns and kings but rather those who would carry the social and economic consequences of such a policy, then there would be no more wars, since "people would think long and hard before going down such as serious road". (...)

The "Ligue Internationale de la Paix et de la Liberté", which was founded in 1867 in Geneva reflected this thinking in its name. It integrated liberal findings into its motto: "Si vis pacem, para libertatem." Indeed, the Liga's decision to refer to Kant expressly wasn't for nothing. The question now, however, was whether or not the quality of a system of rule could only be measured according to the freedom rights it chose to grant? Didn't the “completely just civil constitution“(Kant) also encompass distributive justice? In 1885 the peace and freedom league expanded their motto to take account of social justice: “Si vis pacem, para libertatem et iustitiam."

While in a slogan-like manner, the connection between the system of rule and peace was now comprehensively expressed. When a system of rule is characterized by the freedom and codetermination of its citizens on the one hand and by social justice on the other, the result is peace. Indeed, peace is then founded in this system of rule."

(Ernst-Otto Czempiel, Friedensstrategien, Systemwandel durch Internationale Organisationen, Demokratisierung und Wirtschaft, Paderborn 1986, p. 121-124)

Essa matriz kantiana, assim como o ideal de justiça distributiva que veio a ser adotada ao longo da história da Liga da Paz e da Liberdade só poderiam constituir motivo de derrisão para Marx. 


Já na época, ele ironizou as novas deusas que andavam às soltas por aí, com a difusão da mitologia da Liberdade, da Justiça, Igualdade etc ( cf. carta a Engels, 1 de agosto de 1877).  Muitas dessas deusas tinham sido entronizadas pela retórica da Liga da Paz, que viria a apoiar (a partir de 1885) uma concepção de justiça social distributiva, endossada por muitos socialistas (inclusive pelos lassallianos). Para colocar essa concepção em seu devido lugar, Marx escreveu:


O socialismo vulgar (e a partir dele, por usa vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição.” (Crítica ao programa de Gotha, p. 33)




(3) O papel do Estado: 

"É algo digno da presunção de Lassalle imaginar que, por meio de subvenção estatal, seja possível construir uma nova sociedade da mesma forma que se constrói uma nova ferrovia!"

O Programa de Gotha enunciava:

“O Partido Operário Alemão exige, para conduzir à solução da questão social, a criação de cooperativas de produção com a subvenção estatal e sob o controle democrático do povo trabalhador. Na indústria e na agricultura, as cooperativas de produção devem ser criadas em proporções tais que delas surja a organização socialista do trabalho total”.

Ao que Marx respondeu:


(...) O lugar da luta de classes existente é tomada por uma fraseologia de escrevinhador de jornal – “a questão social”, a cuja “solução” se “conduz”. A organização socialista do trabalho total, em vez de surgir do processo revolucionário de transformação da sociedade, surge da “subvenção estatal”, subvenção que o Estado concede às cooperativas de produção “criadas” por ele, e não pelos trabalhadores. É algo digno da presunção de Lassalle imaginar que, por meio de subvenção estatal, seja possível construir uma nova sociedade da mesma forma que se constrói uma nova ferrovia!

Por um resto de escrúpulos, coloca-se a “subvenção estatal” – “sob o controle democrático do povo trabalhador”.
Em primeiro lugar, o “povo trabalhador” da Alemanha consiste majoritariamente em camponeses, e não em proletários.

Em segundo lugar, “democrático”, traduzido para o alemão, significa “sob o governo do povo”. Mas o que quer dizer “o controle democrático sob o governo do povo do povo trabalhador”? E ainda mais quando se trata de um povo trabalhador que, ao apresentar essas exigências ao Estado, expressa sua plena consciência de que não só não está no poder, como não está maduro para ele!

(...) O pior golpe também não é ter escrito essa cura miraculosa no programa, mas simplesmente ter regredido do ponto de vista do movimento de classes para o do movimento de seitas.

O fato de que os trabalhadores queiram criar as condições da produção coletiva em escala social e, de início, em seu próprio país, portanto, em escala nacional, significa apenas que eles trabalham para subverter as atuais condições de produção e não tem nenhuma relação com a fundação de sociedades cooperativas subvencionadas pelo Estado! No que diz respeito às atuais sociedades cooperativas, elas só tem valor na medida em que são criações dos trabalhadores e independentes, não sendo protegidas pelos governos nem pelos burgueses. (idem, pp. 39-41)

O estatismo de Lassalle era a renúncia à revolução. Ao invés do desmantelamento do aparelho estatal, que havia sido a grande lição da Comuna de Paris, Lassalle propunha a passividade do proletariado, à espera da ação paternalista do Estado que serviria de panaceia a todos os males sociais. Mas era absurdo esperar obter mudanças sociais ou democracia dentro de um Estado autoritário. Seria absurdo que o Estado conservador de Bismarck subvencionasse a emancipação do trabalho. 

Nessas linhas, começa uma divergência entre o radicalismo do partido comunista de 48, que Marx ainda sustentava, e a disposição social-democrata de negociar qualquer possibilidade de ação política nos marcos da legalidade e do Estado existente.  Tratava-se de duas maneiras bem distintas de responder às questões:  Que tipo de democracia é possível alcançar? E a que custo?


Para os social-democratas, desde o início era possível uma ação democrática antes da conquista de poder pelo proletariado. A democracia e o socialismo eram independentes, e o partido poderia se orientar para a negociação parlamentar ao invés de se encaminhar para a conquista revolucionária do poder.




(4) O Estado e a sociedade burguesa:

"Os diferentes Estados dos diferentes países civilizados, apesar de suas variadas configurações, têm em comum o fato de estarem assentados sobre o solo da moderna sociedade burguesa, mais ou menos desenvolvida em termos capitalistas. É o que confere a elas certas características comuns essenciais."

Marx escreve:

"Já na seção II, o Partido Operário Alemão pretende alcançar “o Estado livre”.

Estado livre, o que é isso?

Tornar o Estado “livre” não é de modo algum o objetivo de trabalhadores já libertos da estreita consciência do súdito. No Império alemão, o “Estado” é quase tão “livre” quanto na Rússia. A liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela, e ainda hoje as formas de Estado são mais ou menos livres, de acordo com o grau em que limitam a “liberdade do Estado”.

O Partido Operário Alemão – no caso de adotar esse programa – mostra que as ideias socialistas não penetraram nem sequer a camada mais superficial da sua pele, quando considera o Estado um ser autônomo, dotado de seus próprios “fundamentos espirituais, morais, livres”, em vez de afirmar a sociedade existente (e isso vale para qualquer sociedade futura) como base do Estado existente (ou futuro, para uma sociedade futura).

Além disso, o que dizer do abuso leviano que o programa faz das palavras “Estado atual”, “sociedade atual”, e o equívoco ainda mais leviano que ele cria sobre o Estado ao qual dirige suas reivindicações.

A “sociedade atual” é a sociedade capitalista, que, em todos os países civilizados, existe mais ou menos livre dos elementos medievais, mais ou menos modificada pelo desenvolvimento histórico particular de cada país, mais ou menos desenvolvida. O “Estado atual”, ao contrário, muda juntamente com os limites territoriais do país. No Império prussiano-alemão, o Estado é diferente daquele da Suiça; na Inglaterra, ele é diferente daquele dos Estados Unidos. “O Estado atual” é uma ficção.

No entanto, os diferentes Estados dos diferentes países civilizados, apesar de suas variadas configurações, têm em comum o fato de estarem assentados sobre o solo da moderna sociedade burguesa, mais ou menos desenvolvida em termos capitalistas. É o que confere a elas certas características comuns essenciais. Nesse sentido, pode-se falar em “atual ordenamento estatal” em contraste com o futuro, quando sua raiz atual, a sociedade burguesa, tiver desaparecido." (idem, pp. 41-42)

Trata-se da última lição de Marx sobre o Estado: ele não é uma entidade autônoma. As várias formas que o Estado assume no final do século XIX estão assentadas sobre a sociedade burguesa em seus diferentes graus de desenvolvimento capitalista. Portanto, é uma ilusão do Programa de Gotha dirigir suas reivindicações ao Estado, como se o Estado tivesse o poder de transformar a sociedade sobre a qual ele assenta.



(5) As reivindicações do partido operário:

"Até mesmo a democracia vulgar, que vê na república democrática o reino milenar e nem sequer suspeita de que é justamente nessa última forma de Estado da sociedade burguesa que a luta de classes será definitivamente travada, mesmo ela está muito acima desse tipo de democratismo, que se move dentro dos limites do que é autorizado pela polícia e desautorizado pela lógica."


Marx escreve:

"Pergunta-se, então, por que transformações passará o ordenamento estatal numa sociedade comunista? Em outras palavras, quais funções sociais, análogas às atuais funções estatais, nela permanecerão? Essa pergunta só pode ser respondida de modo científico, e não é associando de mil maneiras diferentes a palavra povo à palavra Estado que se avançará um pulo de pulga na solução do problema.

Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionário de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.

Mas o programa é alheio tanto a esta última quanto ao futuro ordenamento estatal da sociedade comunista.

Suas reivindicações políticas não contém nada mais do que a velha cantilena democrática, conhecida de todos: o sufrágio universal, legislação direta, direito do povo, milícia popular etc. São um mero eco do Partido Popular burguês, da Liga da Paz e da Liberdade.

Não passam de reivindicações que, quando não são exageros fantasiosos da imaginação, já estão realizadas. Acontece que o Estado que as pôs em prática não se encontra dentro das fronteiras do Império alemão, mas na Suíça, nos Estados Unidos etc. Esse tipo de “Estado futuro” é o Estado atual, embora ele exista fora “dos marcos” do Império alemão.

Mas esquece-se uma coisa. Como o Partido Operário Alemão declara expressamente mover-se no interior “do Estado nacional atual”, portanto, de seu próprio Estado, o Império prussiano-alemão – do contrário, suas reivindicações seriam, em grande parte, sem sentido, pois só se reivindica aquilo que ainda não se tem -, então não devia ter esquecido o principal, isto é, que todas essas lindas miudezas se baseiam no reconhecimento da assim chamada soberania popular e que, portanto, só tem lugar numa república democrática.

Se não se tem coragem – e sabiamente, pois as condições exigem cautela – de reivindicar a república democrática, como fizeram os programas operários franceses sob Luís Felipe e Luís Napoleão, não se deveria recorrer ao truque, nem honrado nem digno, de exigir coisas que só têm sentido numa república democrática de um Estado que não é mais do que um despotismo militar com armação burocrática e blindagem policial, enfeitado de formas parlamentares, misturado com ingredientes feudais, e, ao mesmo tempo, já influenciado pela burguesia; e ainda por cima assegurar, a esse Estado, que se supõe impor-lhe tais coisas “por meios legais”!

Até mesmo a democracia vulgar, que vê na república democrática o reino milenar e nem sequer suspeita de que é justamente nessa última forma de Estado da sociedade burguesa que a luta de classes será definitivamente travada, mesmo ela está muito acima desse tipo de democratismo, que se move dentro dos limites do que é autorizado pela polícia e desautorizado pela lógica.

Que por “Estado” entende-se, na verdade, a máquina governamental ou o Estado, na medida em que, por meio da divisão do trabalho, forma um organismo próprio, separado da sociedade, já o demonstraram estas palavras: “O Partido Operário Alemão exige, como base econômica do Estado, um imposto único e progressivo sobre a renda etc.”

Os impostos são a base econômica da maquinaria governamental, e nada mais. No Estado do futuro, já existente na Suíça, essa reivindicação está bastante realizada. O imposto sobre a renda pressupõe as diferentes fontes de renda das diferentes classes sociais, logo pressupõe a sociedade capitalista. Não é de estranhar, pois, que os financial reformers de Liverpool  - burgueses, tendo à sua frente o irmão de Gladstone – formulem a mesma reivindicação que o programa".  (idem, pp. 41-45; p.46)

Marx considera que o programa se limita a dois tipos de reivindicações: 


- as fantasiosas, que não podem se realizar porque se baseiam em concepções errôneas no plano da economia e da política (como as ilusões a respeito do que pode ser consentido nos limites da sociedade burguesa);


- as tímidas, que projetam como conquistas futuras do proletariado alemão alcançar condições que, em verdade, já se tornaram reais em várias nações, como o imposto de renda fortemente progressivo, que era proposto inclusive na Grã-Bretanha pelo próprio irmão do primeiro-ministro Gladstone!


A "velha cantilena democrática" do sufrágio universal jamais poderia levar ao ordenamento futuro da sociedade porque, na verdade, já estava em prática em várias sociedades burguesas. Além disso, o novo partido operário alemão não deveria fazer reivindicações com base na "velha cantilena democrática", ignorando que atuava dentro de um Estado "que não é mais do que um despotismo militar com armação burocrática e blindagem policial, enfeitado de formas parlamentares, misturado com ingredientes feudais, e, ao mesmo tempo, já influenciado pela burguesia; e ainda por cima assegurar, a esse Estado, que se supõe impor-lhe tais coisas “por meios legais”!"



Lassalle - de novo?



Marx observou que "ao se conceber programas de princípios (em vez de postergar isso até que tal programa possa ser preparado por uma longa atividade comum), o que se faz é fornecer ao mundo balizas que servirão para medir o avanço do movimento do partido" (Carta a Bracke, 5 de maio de 1875).  Para Marx, os líderes do partido haviam colocado as balizas nos lugares errados: o programa de Gotha seria apenas desvio lassalliano ou distorção das teses que ele defendera ao longo de três décadas. 

Certamente o programa era desastrado na redação e limitado no escopo, mas poderia ter sido diferente? Nas condições do Reich de 1875, depois do esmagamento sangrento da Comuna e do fim da Primeira Internacional, era realista manter vivo o espírito do partido comunista de 48? 


É possível que os líderes do nascente partido social-democrata unificado tenham sido mais atentos do que Marx às reais condições do movimento operário na Alemanha de Bismarck, mas também é possível que suas expectativas em relação a um Estado paternalista, seu igualitarismo distributivo e sua adesão à retórica dos escrevinhadores da imprensa fossem outras tantas manifestações daquele filistinismo que Nietzsche acusava nos alemães seus contemporâneos.

Apesar da correção de curso (no sentido pró-Marx) efetuada pelo Programa de Erfurt, ao qual Engels teve pouco que objetar (cf. Uma crítica do esboço do programa social-democrata de 1891), a fratura entre o comunismo (versão 1848) e a social-democracia não demoraria para se manifestar ruidosamente, primeiro na elaboração revisionista de Bernstein, depois no centrismo de Kautsky, finalmente no apoio da bancada social-democrata alemã aos créditos de guerra do Reich, em agosto de 1914, em total contradição com coragem internacionalista de Liebknecht e Bebel na época da guerra franco-prussiana.


Depois do trauma do Terceiro Reich, da 2ª Guerra Mundial, da divisão da Alemanha e do aguçamento da Guerra Fria, o Partido Social-Democrata abandonou o campo marxista no Congresso de Bades-Godesberg em 1959. Mas isso não significa que o partido tenha deixado para trás todo o seu legado do século XIX. Carlo Schmid (1896-1979), um dos autores do Programa de Bades-Godesberg, era grande admirador de Lassalle, a respeito do qual  afirmou: "ao invés de análises científicas, ele sempre teve em vista o verdadeiro objetivo no horizonte histórico: a libertação do homem da posição de objeto e a eliminação da autoalienação do homem pelo poder de sua vontade". (in Encyclopaedia Britannica,  verbete Lassalle)


É curioso que Carlo Schmid parece estar pensando não em Lassalle, mas no jovem Marx remodelado ao sabor do humanismo do pós-guerra. 


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Tom Bottomore, Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar, 1997 |  Friedrich Engels, A Critique of the draft Social-Democratic Program of 1891  |  Michel Renault, Gérard Duménil, Michael Löwy, Ler Marx, Editora Unesp, 2011  | Karl Marx, Crítica ao Programa de Gotha, Boitempo, 2012| Karl Marx, Marx-Engels Correspondence 1877 | Encyclopaedia Britannica



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Foto: instalação de Liliana Porter, El hombre con el hacha, exposta no Museo de Arte Latinoamericana de Buenos Aires, de 13 de setembro de 2013 a 16 de março de 2014





EDIÇÃO COMEMORATIVA DUPLA

a claraboia e o holofote 

14 de abril de 2013 - 14 de abril de 2014