sábado, 31 de maio de 2014

Quando a pátria que temos não a temos #1





Alcobaça em dia de chuva




Desafio


Mas eu pergunto sem esperar pela resposta: quando é que temos a pátria que temos? 

O que é esse pertencimento que nos ata e reata a umas tantas braças de argila, pedras e urzes?  Ou à antiga charneca que um rei metido em guerras sem fim doou a um santo borguinhão que cá nunca pôs os pés?

O que é cá e o que é lá?



Ata de fundação 

"A Real Abadia de Santa Maria de Alcobaça, fundada por D. Afonso Henriques no coração do imenso território da Estremadura, constituiu uma das mais importantes casas Cistercienses da Península Ibérica e, sem dúvida, a mais plena de significado - político, econômico e artístico - no território do emergente Reino de Portugal.
A sua fundação data de 8 de abril de 1153, altura em que o monarca português concede a Bernardo, Abade de Claraval, a Carta de Couto, que atribui à Ordem de Cister um vasto território de cerca de 44000 hectares, cujos limites iam da Serra dos Candeeiros à costa marítima, avançando para Norte até perto de Leiria e para Sul até cerca de Óbidos, povoados cujos castelos constituíam até 1147 - data da tomada de Santarém e Lisboa - os pontos fortes mais avançados da reconquista cristã empreendida no território nacional."

(Jorge Rodrigues, Mosteiro de Alcobaça, p. 11)



Refeitório dos monges
Na entrada lê-se em latim vulgar:
RESPICITE QVIA PECCATA POPVLI COMEDITIS
(considerai que comeis os pecados do povo)

A ordem cisterciense


"Alguns procuraram restituir à ordem monástica sua condição antiga, primitiva, livre dos acréscimos recentes. Dentre estes homens, podemos citar Bruno de Colônia, fundador dos cartuxos, Norberto de Xanten, fundador dos premonstratenses, e Roberto de Molesme, fundador dos cistercienses, que pregavam adesão estrita à regra beneditina, pois "observamos muitas práticas que não se encontram nela, ao mesmo tempo que negligenciamos muitas de suas disposições". Estes grupos criaram organizações que transcendiam os conventos individuais, estabeleceram um controle centralizado, regras de organização e assembleias de abades. Em 1153, quando da morte do mais célebre cisterciense, Bernardo de Claraval, a Ordem Cisterciense contava 343 mosteiros. No final do século XII eram mais de 500."


(Lester K. Little, verbete Monges e Religiosos in Dicionário Temático do Ocidente Medieval, volume II pp. 235-6)


Altar da capela-mor com deambulatório ao fundo




São Bernardo de Claraval (1090-1153)


"Canonizado em 1174, apenas vinte anos após sua morte, proclamado doutor da Igreja em 1830, em plena restauração das ordens religiosas do Antigo Regime, Bernardo de Claraval (Bernard de Clairvaux) é um figura de proa do monacato medieval, cuja importância atravessou os séculos até nossos dias. Ele encarna simultaneamente a renovação do monacato beneditino impulsionado por Cister (Cîteaux), o engajamento dos monges a serviço da Igreja, o espírito de cruzada, o despojamento ascético e a força dos arroubos místicos.
Adepto do retiro monástico no silêncio e no despojamento, Bernardo, paradoxalmente, encontra-se no âmago da vida de seu século. Ele vivencia o conflito dos puros que, segundo a imagem evangélica, são como uma luz impossível de ser escondida sob uma vasilha ou como uma montanha se impondo na paisagem. É a esse preço que se instaura a reforma da Igreja no século XI-XII, que vê o papado apelar para os mais puros para cristianizar a sociedade de forma profunda. "Nenhuma das coisas de Deus me é estranha" (carta 20), reconhece Bernardo, engajado em todas as frentes: conflitos senhoriais; organização da ordem do Templários; eleições episcopais contestadas; o cisma do antipapa Anacleto, no qual Bernardo toma o partido vitorioso do papa Inocêncio II; a luta contra a heresia, seja a heresia letrada (Abelardo, Gilbert de la Porrée), seja a heresia maniqueísta do Languedoc; a pregação da segunda cruzada; a defesa das comunidades judaicas no vale do Reno contra o batismo forçado."

(Dominique Iogna-Prat, verbete São Bernardo de Claraval in Homens e mulheres da Idade Média)




Flos Sanctorvm


"Bernardo nasceu no castelo de Fontaines, na Borgonha, de pais muito nobres e religiosos. Seu pai Celestino era tanto um corajoso cavaleiro  quanto um religioso de Deus; sua mãe chamava-se Aleth. Eles tiveram sete filhos, seis homens e uma mulher; todos os homens tornaram-se monges, e a mulher, monja. Assim que dava à luz um filho, com suas próprias mãos ela o oferecia a Deus e recusava-se a nutri-lo em outros seios como se o leite materno de alguma maneira infundisse neles uma boa natureza. Enquanto os filhos cresciam sob seu controle, elas os educava mais para o deserto do que para a corte, dando-lhes para comer os alimentos mais comuns e humildes, como se fosse em seguida enviá-los para o deserto. Quando trazia no útero seu terceiro filho, Bernardo, viu em sonho um presságio: tinha dentro de si um cãozinho que latia, todo branco no corpo e avermelhado no dorso. Quando contou isso a um homem de Deus, este lhe disse com voz profética: Você será mãe de um cachorrinho que defenderá a casa do Senhor e latirá contra seus grande inimigos. Ele será um importante pregador e curará a muitos com a graça de sua língua medicinal.
Vendo o antigo inimigo os salutares propósitos do menino, que se propunha à castidade, pôs diante dele muitas armadilhas de tentações.
Certa vez, estava hospedado na casa de uma mulher que, percebendo o belo aspecto do adolescente, sentiu por ele intenso desejo e mandou preparar a cama dele em local isolado. De noite, de forma impudica e silenciosa, ela foi procurá-lo. Assim que a sentiu, Bernardo pôs-se a gritar "Ladrão, ladrão!". Com os gritos, a mulher fugiu, a família apareceu, as luzes foram acesas e procuraram o ladrão, mas não o acharam e voltaram para suas camas para repousar. No entanto, a miserável não descansou, levantou-se e foi ao leito de Bernardo, que novamente gritou "Ladrão, ladrão!". Ainda uma vez procuraram o ladrão, mas ninguém o encontrou e o único que sabia quem era não o denunciou. A persistente e repelida mulher tentou uma terceira vez, mas vencida pelo desânimo ou pela vergonha interrompeu suas manobras. Na manhã seguinte, ao retomar a caminhada, os companheiro de Bernardo perguntaram por que sonhara tanto com ladrões. Ele respondeu: Na verdade, sofri esta noite a investida de um ladrão, pois a hospedeira tentou roubar o tesouro irrecuperável da minha castidade.
Compreendendo que não era seguro viver no meio de serpentes, começou a pensar em fugir e decidiu ingressar na Ordem Cisterciense.
Desde que ingressou na Ordem, o escravo de Deus, Bernardo, ficou tão completamente absorto e ocupado com Deus que já não usava mais seus sentidos corporais.
O abade de Cister enviou os irmãos para construírem um mosteiro em Claraval, do qual Bernardo foi o encarregado e onde viveu por muito tempo em tal pobreza que frequentemente comia papa de folhas de faio que ele mesmo preparava.
Se comia,  não era para satisfazer o apetite, mas por medo de desmaiar. Alimentar-se para ele era um tormento. Depois de cada refeição, costumava pensar no quanto comera, e se achava ter excedido uma módica medida, mesmo que apenas um pouco, não deixava o fato impune. De tanto domar a sedução da gula, perdeu grande parte do sentido do paladar.
Era sempre encontrado orando, lendo, escrevendo, meditando ou edificando os irmãos com sua palavra. Certa vez quando pregava ao povo e todos acolhiam suas palavras com atenta devoção, a tentação irrompeu em seu espírito: Hoje você está fazendo uma ótima pregação, os homens ouvem com prazer e todos o consideram sábio. Pressionado pela tentação, o homem de Deus parou um instante, refletiu se deveria interromper seu sermão ou continuá-lo, e confortado pelo auxílio divino afugentou o tentador dizendo-lhe silenciosamente: Não comecei esta pregação por você nem a encerrarei por você. E prosseguiu pregando até o fim."

(Jacopo de Varazze, Legenda Áurea, pp. 682-685; 688)



A palavra do santo


Um prior de Cluny, desejoso de vingar-se das duras invectivas que Bernardo lançava ao luxo e relaxamento dos monges cluniacenses, resolveu aproveitar a ausência de Bernardo na abadia de Claraval para lhe arrebatar o jovem sobrinho Roberto, convencendo o rapaz a deixar a triste mortificação do corpo exigida pelos rigores cistercienses em troca do conforto e das honrarias da abadia de Cluny. Roberto partiu, seduzido pelas promessas, levando Bernardo, seu tio e superior na ordem, a escrever uma carta cheia de dor, mas enérgica, na defesa da regra de Cister:

"O primeiro superior o enviou a um prior relevante, com uma aparente vestimenta de ovelha, mas em realidade um lobo rapace. Enganados foram os pastores, acreditando que era uma ovelha. Que dor! Deixaram a sós o lobo e o cordeiro. E este não fugiu, porque também acreditou que era uma ovelha. E o que mais? Ele o atrai para si, o acaricia, o lisonjeia e, pregando-lhe um novo evangelho, o recomenda à embriaguez e condena sua sobriedade, fazendo-o ver que a pobreza voluntária é uma vida miserável, e que são loucuras o jejum, as vigílias, o silêncio e o trabalho manual. Por sua vez, qualifica como contemplação a ociosidade e considera uma discrição a voracidade, o charlatanismo, a curiosidade e todas as demais destemperanças. E lhe sugere: desde quando Deus se deleita com nossos sofrimentos? Onde a Escritura prescreve que alguém mate a si mesmo? Que tipo de religião é essa que ordena cavar a terra, cortar os bosques e carregar esterco? Por acaso a Verdade não diz “Quero misericórdia, não sacrifícios”? “Não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e viva?”, “Beatos são os misericordiosos, porque eles alcançarão a misericórdia”? Para que Deus criou os alimentos se não é lícito comê-los? Para que nos deu o corpo se não podemos alimentá-lo? E o que é mau para si mesmo, com quem será bom? Além disso, aquele que é tacanho consigo, com quem será generoso? Ninguém, em são juízo, odiou seu próprio corpo."

(Bernardo de Claraval, Carta a Roberto, seu sobrinho, que mudou da ordem cisterciense para a cluniacense)



O testamento do rei


"Eu, Afonso Henriques, rei dos Portugueses, considerando a minha morte e o dia do do severo juízo, quando cada um será retribuído segundo suas boas ou más ações (...), tendo ponderado diligentemente, decidi dispor de certa parte da minha fortuna, isto é, de 22 000 maravedis que tenho depositado no Mosteiro de Santa Cruz e reparti-los em benefício de minha alma depois da minha morte da forma seguinte: primeiramente à Ordem do Hospital de Jerusalém, 8000 mosmodis e 400 marcos de prata menos 24, pelo que damos 162 maravedis e 6000 maravedis menores. Para a obra da igreja de Santa Maria de Lisboa, 1000 maravedis. Para a obra de Alcobaça, 500 maravedis. Para a obra da igreja de Évora, 500 maravedis. Para a obra de Braga, 500 maravedis. Para a obra de Viseu, 500 maravedis. Para a obra de Lamego, 500 maravedis. Para aqueles mosteiros a que eu costumo fazer donativos, 3210 maravedis.  E já dei ao abade e aos frades de S. João de Tarouca 3000 maravedis, que mando sejam destinados à ponte sobre o Douro. E deixo ao Mosteiro de Santa Cruz 1000 maravedis maiores e 1000 mosmedis menos dez e meio, e além disso todos os mouros, cavalos e azêmolas que eu tiver ao tempo da minha morte. Já dei ao mestre de Évora, Gonçalo Viegas, 10 000 maravedis para serem gastos em utilidade e defesa desta cidade quando for necessário. E deixo aos pobres que existem no bispado de Lisboa 1000 maravedis; aos pobres  que vivem em Santarém, Coruche, Abrantes, Tomar, Torres Novas, Ourém, Leiria e Pombal, 1000 maravedis; aos pobres que vivem no arcebispado de Braga, no bispado do Porto e no bispado de Tui, na terra que me pertence, 3000 maravedis. Ao hospital novo de Guimarães, ao de Santarém e ao de Lisboa, 260 maravedis. Feita esta carta de manda no mês de fevereiro, era de 1179."

(citado em José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal, p. 73-74)




Lavabo


A arquitetura cisterciense

"Em que consiste o que se chama comumente arquitetura cisterciense?
Não é na planta da igreja, que varia. Também não é no uso de certos processos peculiares aos monges de Cister. Tem-se notado que os construtores se deixaram muitas vezes influenciar pelos hábitos locais. Encontram-se, no entanto, alguns elementos característicos, mesmo nas igrejas de construção tardia, como as pilastras, a detenção das colunas que suportam cruzamentos de ogiva a determinada altura acima do pavimento, etc. Mas em geral, pode dizer-se que nada há de absolutamente original em cada um dos pormenores da construção. O que une todas as igrejas cistercienses e para elas chama a atenção é um espírito" de austeridade e desnudamento levado ao extremo. Embora nunca haja cópia, existe um real parentesco entre todos esses edifícios. «Conhecer uma abadia cisterciense é, no essencial pelo menos conhece-las a todas. Penetrar numa abadia cisterciense é experimentar de cada vez a mesma ideia de simplicidade de linhas de austeridade da decoração, mas nenhum desses edifícios é cópia de qualquer outro, pelo menos cópia servil».

(Mauro Cocheril, Abadias Cistercienses Portuguesas, p. 81)




Onde entra Le Corbusier

"É com prazer que a gente encontra na pena de um homem como Le Corbusier a seguinte apreciação: «Cada elemento da construção é aqui (em Cister) um valor criador de arquitetura. O conjunto como o pormenor são um... A luz e a sombra são os altifalantes desta arquitetura de verdade, de calma, de força... Na hora do «cimento bruto», bendito, benvindo e louvado seja, em meio do caminho, tão admirável encontro» .

(Mauro Cocheril, Abadias Cistercienses Portuguesas, p.82 )


Janela do Claustro do Silêncio, construído na época de D. Dinis


O mosteiro 

"O mosteiro de Alcobaça é um monumento excepcional na Ordem de Cister. A igreja, pelas suas dimensões, ocupa o sexto lugar, depois de Vaucelles (132 metros de comprimento), Pontigny (108 m.), Claraval (106 m.), Royaumont e Longpont (105 m ). Alcobaça mede cerca de 100 metros, sem o pórtico hoje desaparecido. O que sobretudo a distingue é a extraordinária elevação das naves laterais cujas abóbadas atingem quase a altura da central. Excetuadas as duas tardias abaciais alemãs, Regensburg e Haina, nenhuma outra igreja cisterciense se lhe compara neste ponto.
Os historiadores de arte consideram esta igreja «a mais pura e a mais majestosa que os monges cistercienses construíram em toda a Europa» (Bertaux). Esta afirmação é corroborada por Elie Lambert que vê nas construções medievais de Alcobaça «um dos conjuntos de arquitectura cisterciense mais grandiosos e mais típicos de todo o Ocidente cristão».
É legítimo perguntar se, pela planta e a elevação, esta igreja corresponde bem à concepção tradicional, e se nela se pode ver um «fiel reflexo do pensamento de S. Bernardo». Sabe-se que, desde a origem, a Ordem de Cirter se distinguiu por um escrúpulo de austeridade levado até ao extremo e que não poupou a arquitectura. Essa austeridade foi acentuada por S. Bernardo a quem se atribui uma planta considerada até estes derradeiros tempos a planta cisterciense por excelência. Os cronistas de Alcobaça recolheram e propagaram uma lenda, nascida nos mosteiros portugueses provavelmente no séc. XIII. Segundo eles, o próprio S. Bernardo teria desenhado a planta da igreja de Alcobaça (...)."

(Mauro Cocheril, Abadias Cistercienses Portuguesas, pp 79-80)

Fachada barroca do mosteiro




Nave central da igreja


Pedro e Inês

Sobre as arcas alvas de lavra sutilíssima, os jacentes do rei Pedro e de sua amada e sentida Inês de Castro esperam, um diante do outro, nos braços opostos do transepto, o improvável dia da ressurreição da carne, quando os justos serão convocados à direita do Senhor. Na sua insensatez de amantes extremados não se dão conta do ir e vir dos passantes curiosos, nem parecem entender que Deus está morto, como à saciedade o prova a frieza indiferente das pedras.  

"Porque semelhante amor, qual el-rei D. Pedro houve a Dona Inês, raramente é achado em alguma pessoa, por isso disseram os antigos que nenhum é tão verdadeiramente achado como aquele cuja morte não tira da memória o grande espaço de tempo (...)
E sendo lembrado de honrar seus ossos, pois lhe já mais fazer não podia, mandou fazer um monumento de alva pedra, todo mui sutilmente obrado, pondo, elevada sobre a campa de cima, a imagem dela, com coroa na cabeça, como se fora rainha. E este monumento mandou pôr no mosteiro de Alcobaça, não à entrada, onde jazem os reis, mas dentro da igreja, à mão direita, acerca da capela-mor. 
E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Santa Clara de Coimbra, onde jazia, o mais honradamente que se fazer pode, pois ela vinha em umas andas, muito bem corrigidas para tal tempo, as quais traziam grande cavaleiros, acompanhados de grandes fidalgos e muita outra gente, e donas, e donzelas, e muita clerezia.
Pelo caminho estavam muitos homens com círios nas mãos, de tal guisa ordenados, que sempre o seu corpo foi, por todo o caminho, por entre círios acesos. E assim chegaram ao dito mosteiro, que era dali dezessete léguas, onde, com muitas missas e grã solenidade, foi posto em aquele monumento. Foi a mais honrada trasladação que, até aquele tempo, em Portugal fora vista.
Semelhavelmente mandou el-rei fazer outro tal monumento, e tão bem obrado, para si; e feze-o pôr acerca do seu dela, para, quando acontecesse de morrer, o deitarem em ele."

(Crônica de D. Pedro, capítulo XLIV in Crônicas de Fernão Lopes p. 56)

"Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez Rainha,
As espadas banhando e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.

Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes 
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes."

(Camões, Os Lusíadas, Canto III,  oitavas 132-133)


Túmulo de Inês de Castro com vista do transepto




Túmulo de Inês de Castro




Túmulo do rei Pedro: a roda da fortuna


Um viajante inglês do final do século XVIII

"Twisting and straggling over this uncouth mass of sculpture are several orange-trees, gnarled and crabbed, but covered with fruit and flowers, their branches grotesque and fantastic, exactly such as a Japanese would delight in, and copy on his caskets and screens; their age most venerable, for the traditions of the convent assured me that they were the very first imported from China into Portugal. There was some comfort in these objects; every other in the place looked dingy and dismal, and steeped in a green and yellow melancholy.
On the damp, stained and mossy walls, I noticed vast numbers of sepulchral inscriptions (some nearly effaced) to the memory of the knights slain at the battle of Aljubarota: I gave myself no trouble to make them out, but continuing my solitary ramble, visited the refectory, a square of seventy or eighty feet, begloomed by dark-coloured painted windows, and disgraced by tables covered with not the cleanest or least unctuous linen in the world."

(William Beckford, Recolletions of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha, sixth day  8th June)

Uma das laranjeiras do Claustro do Silêncio


Ondas de destruição


O tempo e a gente trouxeram muitos danos ao mosteiro.

Houve o terremoto de 1775, e as grandes cheias de 1713 1774 e 1788.

«Esta foi a terceira vez que Alcobaça neste século foi alagada pelos rios que a cortam, e lhe causaram ruínas e grandes prejuízos.
Já o Sr. D. José I fez acautelar estragos futuros com as suas Régias Ordens, mandando alargar com desembaraçada direção o rio Baça, vulgarmente chamado da Areeira . Efeitos de piedade impediram a total execução das mesmas Ordens.
O vento Sul, soprando muito rijo todo o dia 22, prognosticava ruinosas consequências: quase às 7 horas da noite, a obscuridade, fuzilação contínua e trovões distantes aumentaram os temores de maior tormenta e destroço, que em parte se dissiparam com grossíssima chuva e alguma serenidade.
Os trovões, que haviam principiado a sentir-se na noite de 21, continuaram na de 22, sempre ao largo, do Poente para o Nascente.
Todo o dia 23, choveu sem cessar, e, depois do nascimento da Lua, a cerração foi tão tapada, que não deixava divisas, nas ruas estreitas, de uma para outra parte, as casas mais vizinhas.
A mesma cerração das nuvens desatou em grossos e aturados chuveiros. 
Perderam todos os moradores e negociantes os géneros e fazendas que estavam nas lojas e tendas do terreno alagado. Alguns habitadores também perderam dinheiro que guardavam nas gavetas das mesmas tendas.
No Mosteiro foram grandes os sustos. No interior da porta de baixo, as águas do rio Alcoa subiram 9 palmos e meio. O Porteiro, o Fr. Luís de Santa Ana, foi tirado às costas pelos criados, que cortaram as prisões às bestas, para não morrerem afogadas, e quebraram com machados as portas dos currais para livrarem os gados que estavam presos e fechados, por serem casados os carreiros e todos estarem nas suas casas.
O canal por onde entram as águas para a cerca, cozinha, moinhos, etc., pelo muito que escavaram as águas, entraram todas para o mesmo canal que, não podendo pela estreiteza dar-lhes vazão, romperam a península que lhes servia de forte e desabaram para o rio, e ficou em seco o mesmo canal, o que se contempla quase irreparável, e o prejuízo certo, pelas faltas das águas que, antes de romperem a mesma península, fizeram dobrar o aqueduto que reparte as águas para o refeitório, cozinha, etc., 339 palmos, arrojando a pedra e canos a muita distância, e, continuando a corrente, alagaram a Obra nova, fazendo abater a casa de lambicar.
O P.e Prior, avisado pelo estrondo das águas e gritos do Povo, fez com muita brevidade despertar a Comunidade, e descendo os Monges à Igreja, aberto o Sacrário, fizeram e repetiram preces até que, com o abatimento das águas, cessaram perigos e sustos."



Depois vieram a invasão das tropas napoleônicas chefiadas por Massena. A soldadesca francesa saqueou o mosteiro, profanou as tumbas reais da dinastia afonsina e desfigurou aquelas jóias góticas que são os túmulos do Pedro e de Inês. A história convulsa das décadas seguintes não poupou uma repetição do vandalismo,  dessa vez durante a guerra civil, quando o avanço das tropas liberais fez fugirem os frades em 1833. A população de Alcobaça, em desforra irada pelos séculos de tributos, invadiu o mosteiro e levou o que pôde: as alfaias, os paramentos, tudo o que havia de ouro e prata e até muitos livros da preciosa e riquíssima biblioteca. No ano seguinte, as ordens religiosas foram abolidas e os bens do clero, nacionalizados por D. Pedro, regente da futura D. Maria II. 


"Em 1832, D. Pedro explicou à filha que os padres eram uma 'corja infame' e que a nobreza era uma 'vil quimera' quando 'despida de virtudes e talentos'. Ao duque de Palmela, o regente pareceu muito aberto a 'influências plebeias' e aos 'programas exaltados dos liberais'. Mas D. Pedro não tivera escolha. Precisara dos liberais mais exaltados, e agora tinha de os trazer satisfeitos. Quando, a 27 de maio de 1834, como parte da concessão de Évora Monte, anistiou os miguelistas, viu-se vaiado no Teatro de São Carlos. A abolição das ordens religiosas acalmou os ânimos (30 de maio). Em Lisboa, frades e monges, incluindo os velhos e doentes, foram postos fora dos conventos em poucas horas, e condenados a 'andar errantes pelas ruas da cidade, pelas praças e pelos bosques e charnecas, sem saber onde poderiam achar asilo.'

O clero e a grande nobreza, com que a Carta Constitucional contava, nunca mais foram o que tinham sido. O 'cisma' com o Vaticano terminou em 1841, mas a força do clero não se recompôs. Os frades, talvez quarenta por cento do clero, desapareceram."

(Rui Ramos, História de Portugal, p. 494)

O mosteiro, entregue às autoridades civis, serviu de quartel, de correio, de prefeitura, de teatro, de prisão.



Meditação, imprecação, credo 


Na década de 1840, entretanto, começou a surgir uma sensibilidade nova, nostálgica das riquezas profanadas pelo racionalismo das Luzes e destruídas pela violência revolucionária. 

Jules Michelet e Prosper Merimée na França, John Ruskin na Inglaterra e Almeida Garrett em Portugal compartilhavam dessa corrente historicista e romântica, a um só tempo moderna e anti-moderna, com a qual aprendemos a ver nos monumentos doutras épocas um "patrimônio histórico", esses ídolos totêmicos que ora como turistas reverenciamos como âncoras nas turbulências da História e como sinal das raízes que os homens fincam no território legado por seus ancestrais:


"Oh! e quem sabe? Esta profanação, este abandono, este desacato do túmulo de um rei, ali na sua terra predileta — D. Fernando era santareno de afeição — não será ele o juízo severo da posteridade, a vindita pública dos séculos, que tardia mas ultrajante, cai enfim sobre a memória reprovada do mau príncipe, e lhe desonra as cinzas como já lhe desonrara o nome?
Quero acreditar que tal não podia suceder aos túmulos de D. Dinis, de D. Pedro I, dos dois Joanes I e II, de...
Sim: e aonde está o de Camões? O de Duarte Pacheco aonde esteve? que ainda é mais vergonhosa pergunta esta última.
Em Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nu­dez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...
Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação pequena, é impossível; há de morrer.
Mais dez anos de barões e de regime da matéria, e infalivelmente nos foge deste corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito.

Creio isto firmemente."

(Almeida Garrett, Viagens na minha Terra, capítulo 42)



Onde aparecem aqueles que reatam a história


Foi preciso, pois, que um natural da terra e um estrangeiro, ambos homens de ciência cheios de amor pela pátria que era e não era deles, viessem reatar as pontas soltas que já se perdiam de tão apartadas. 

De Alcobaça era Manuel Vieira Natividade (1860-1918), nome de bom augúrio, que a curiosidade levou das formações rochosas jurássicas às arcas tumulares de Pedro e Inês, cuja iconografia quis decifrar, e à horticultura dos cistercienses, que se esforçou por fazer renascer. À luz da ciência positiva, o mosteiro deixou de ser uma lembrança dos tempos em que a fradaria sugava o sangue do reino. Domesticado pelo trabalho de restauração executado à luz do conhecimento laico do século XX, o outrora espaço consagrado pôde renascer como patrimônio histórico, investido da aura toda factícia de bem inestimável, que, a acreditar nos folhetos turísticos, sempre esteve no coração e na alma da vila e da pátria. E assim, por milagres do esquecimento do processo pelo qual se construiu a memória, os monumentos antigos vão ganhando uma sacralidade nova, em chave novíssima e materialista, com a chancela dos Ministérios da Cultura.

Maur Cocheril (1914-1982) chegou mais tarde. Esse monge cisterciense francês que andava a estudar as abadias de sua ordem inevitavelmente veio parar em Alcobaça. Não era como homem de Deus que ele vinha, mas como pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique e bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. A vila se tornou a terra de adoção do erudito e lhe prestou homenagem dando seu nome, devidamente aportuguesado, à rua estreita e reta que desce à praça 25 de abril.


Rua Dom Mauro Cocheril

Em casa

Enquanto Fernando Henrique procurava lugar para estacionar, Ludmila e eu paramos na praça para cumprirmos os ritos de turistas. Chovia uma chuva mansa, mas sem trégua, tão triste que parecia vir do tempo em que eu, fechado no quarto com sarampo ou caxumba, olhava com pena as sempre-vivas da minha mãe aturdidas pelas gotas pesadas que despencavam do beiral. 

Viemos para fazer nossa journée du patrimoine, mas no degrau da soleira tropecei na minha infância. Das paredes do interior da igreja, lixiviadas segundo aquele irritante método francês que, a pretexto de limpar a sujeita, remove o pó e a gordura da história, deixando a pedra nua e devastada, numa obscenidade de coisa nova; do interior da igreja, dizia, junto aos azulejos da Sala dos Reis ou dos cantos do Claustro do Silêncio vinha, incerto, um odor fino de círios queimados, de mofo e de morrinha, igual ao que vinha dos santos ensebados e fuliginosos do oratório doméstico de minha avó Ana Consuelo Sampaio e de meu avó Manuel Pereira dos Santos.

Almoçamos n’A Casa, bem em frente. Quando soube que Fernando Henrique e eu escolhéramos o polvo à lagareiro, Teresa, dona do lugar, lamentou que não tivéssemos pedido o frango na púcara de Alcobaça. Para molhar a garganta, apeteceu-me uma garrafa de Cartuxa de Évora 2002. Teresa pôs-se a falar de vinhos e, por uma dessas coincidências que fazem do mundo grande lugar tão pequeno, Ludmila e eu ficamos sabendo que dona Henriqueta, proprietária do nosso estimado Gruta de Santo Antonio, lá em Niterói, vem buscar o licor de Baco na vasta garrafeira que Teresa administra. E, de garfada em garfada, ela, que almoçava na mesa ao lado, foi puxando de memória os casos de uma viagem que fez, quando menina, ao Ceará em época de Carnaval. 

O lá e o cá se confundiam no idioma, no paladar e nos cheiros. 

Na saída, o ter esquecido nossos guarda-chuvas agora que saíra o sol me fez atravessar novamente a praça 25 de abril, olhando para o mosteiro contra o céu que exibia uma nesguinha de azul. Igual àquele céu que gosto tanto de ver do terraço de casa quando findam as chuvas de setembro. De nada valia, porém, iludir-me. Atrás do mosteiro, as águas do Alcoa continuavam sua corrente rumo ao imenso mar Oceano que nos separa do lar. 


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Porta da Sacristia Nova, da época manuelina



William Beckford, Recollections of an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha (1835) | Bernardo de Claraval, Carta a Roberto, seu sobrinho, que mudou da ordem cisterciense à cluniacense  | Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Porto Editora, Porto, 1972 |  Maur Cocheril, Abadias Cistercienses Portuguesas, Lusitania Sacra Revista do do Centro de Estudos de História Eclesiástica, 1ª série  tomo IV Lisboa 1959 |  Almeida Garrett, Viagens na minha terra, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1965  | Jacques Le Goff (direção), Homens e Mulheres da Idade Média, Estação Liberdade, São Paulo, 2013  | Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt, Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Imprensa Oficial de São Paulo, Edusc, São Paulo, 2002  |  Fernão Lopes, Crônicas de Fernão Lopes, seleção, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, Lisboa, 2000  |   Rui Ramos (coordenador), História de Portugal, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010 | Jorge Rodrigues, Mosteiro de Alcobaça, Instituto Português do Patrimônio Arquitetônico, Scala, 2007 | José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal, Publicações Europa-América, Sintra, 2006 | Jacopo de Varazze, Legenda Áurea: Vidas de Santos, Companhia das Letras, São Paulo, 2006 


Painel de azulejos do século XVIII que integra o ciclo sobre a fundação do Mosteiro de Alcobaça,com inscrições da Crônica de Cister, do Frei Bernardo de Brito









segunda-feira, 26 de maio de 2014

Aviso aos navegantes portugueses






O autor, cansado e sedento com percorrer a senda difícil que desce da Comuna de 71 até as portas do Soviete de 17, suspende por algum tempo o relato da fortuna vária e traiçoeira do Manifesto Comunista. 

Enquanto se refaz para as modestas tarefas políticas que ele mesmo há de realizar (não queira saber quais, indiscreto leitor), ocorreu ao autor fazer uma viagem na terra de Garrett, a quem não há jamais de perdoar  o se ter feito recluso justamente naquele 48 de emoções tão desencontradas. Liberal que fosse, o que não chegava a ser mau no tempo, não lhe faltava certa clarividência que, mais do que ouro, valia uma alma num mundo em que elas já se iam fazendo raras. Que se leiam, a propósito, as palavras do próprio:

"Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazei caminhos-de-ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. — No fundo de tudo isto, o que lucrou a espécie humana?
Que há mais umas poucas de dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? — Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já deve de andar orçado o número de almas que é preciso vender ao Diabo, o  número de corpos que se têm de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel — seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis."
(Viagem na minha terra, capítulo 3)

Logo se vê que os liberais de antanho tinham bem outra têmpera, mas já o leite está derramado e chorar não é do feitio do Sobrinho de Enesidemo que, como dizia, resolveu andar em terras que são e não são suas, um tanto por desfastio, outro tanto por curiosidade e um bocado por saudade do antigo reino lusitano, hoje tão espezinhado pelos novos liberais que se assenhoraram de tudo.

A esses senhores do mundo, o presente autor, ora refestelado à sombra dos laranjais, só pode repetir o sábio conselho do irmão mais velho:

"Plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra."

Plantai batatas!







domingo, 25 de maio de 2014

A claraboia e o holofote #26




Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A social-democracia alemã (parte 5)




Kautsky



"O Partido Social-Democrata é um partido revolucionário, mas não um partido que faz revoluções"

1. Esboço de verbete 

Kautsky nasceu em 1854 em Praga. Na universidade de Viena, estudou história, economia e filosofia. Em 1875 filiou-se ao Partido Social-Democrata austríaco. Ao mudar-se para Zurique em 1880, tornou-se amigo de Eduard Bernstein. Mais tarde, foi para Londres onde colaborou com Engels de 1885 a 1890.  O fim da  lei anti-socialista o levou para a Alemanha. Nos quadros do SPD, sua preeminência intelectual foi logo reconhecida devido ao seu trabalho na redação da parte teórica do programa de Erfurt (1891).

As ásperas divisões internas do partido lançaram Kaustsky na dissidência. Em 1917, ele ingressou no Partido Social-Democrata Independente (USPD), mas voltou aos quadros do SPD em 1922, sem conseguir recuperar a influência anterior, embora continuasse prolífico como escritor. Com a ascensão de Hitler, voltou para Praga, porém o avanço nazista o forçou a exilar-se em Amsterdam, onde faleceu em 1938.

Ao assumir a direção da revista Die Neue Zeit a partir de 1883,  Karl Kautsky desempenhou um papel central na consolidação do marxismo como teoria social e econômica. O periódico defendia uma interpretação "ortodoxa" das obras de Marx e Engels, primeiro contra a ala direita revisionista do SPD, depois contra a ala esquerda revolucionária. De 1889 a 1914, ele foi o teórico mais proeminente da Segunda Internacional, contudo as críticas de Kautsky à revolução bolchevique suscitaram a reação furiosa de Lênin,  que o infamou como “renegado”, epíteto que as gerações futuras de militantes de esquerda conservaram junto ao nome daquele que foi o “papa do marxismo”. 



"Portanto algumas coisas tiveram um desfecho diferente daquele que os autores do Manifesto esperavam na época em que o escreveram"


2. Kautsky lê o Manifesto

O Leipziger Volkszeitung, periódico editado por Rosa Luxemburgo, Parvus e Franz Mehring, figuras de proa da ala esquerda do SPD, publicou em 1904 um artigo de Kautsky que fora escrito originalmente como introdução a uma tradução polonesa do Manifesto do Partido Comunista

O artigo de Kautsky - “Até que ponto o Manifesto Comunista está obsoleto” - se volta para a famosa obra de Marx e Engels para recordar aos revisionistas certas verdades políticas que eles negligenciavam e que, no entanto, constituíam o núcleo central do marxismo. A "ortodoxia" de Kautsky não consiste em declarar sagradas as palavras de Marx e Engels, mas sim em reconhecer que as transformações sociais e políticas ao longo de quase seis décadas desde a publicação do Manifesto, embora tenham deixado nele profundas marcas de envelhecimento, acabaram por depurar e confirmar suas verdades fundamentais.

Se a obra se mantinha atual por causa de seus princípios, de seu método, de sua caracterização do modo de produção capitalista e do importante papel atribuído à luta de classes, também era forçoso reconhecer que o proletariado e a burguesia haviam sofrido muitas mudanças desde 1848. 

O antigo proletariado miserável e oprimido era apenas um objeto de piedade para os reformadores sociais. Foi preciso a visão de Marx e Engels para entender o caráter revolucionário dessa classe social. Sessenta anos depois, o proletariado nos países mais avançados da Europa estava altamente organizado e adquirira instrução política. Enquanto isso, os camponeses e os pequeno-burgueses, colocados à margem do desenvolvimento capitalista, tornaram-se os defensores intransigentes da reação.  

Seria errôneo, porém, acreditar que o avanço do proletariado se devia à superação da exploração capitalista:

“O aumento enorme das forças produtivas que foi desencadeado pelo capitalismo não passou pelo proletariado sem deixar sua marca. Podemos falar de uma melhora da condição de muitos estratos do proletariado, se compararmos com as condições da pequena burguesia e do campesinato, mas ele fica muito aquém comparado ao crescimento da força social da produção, que do qual o capital se apropria e explora em sua própria vantagem. Comparado com o padrão de vida do capitalista e com a acumulação do capital a condição do proletariado se deteriora (...)”

Tão surpreendente quanto a transformação do proletariado foi a da burguesia. Marx e Engels achavam que uma revolução burguesa na Alemanha seria o prelúdio de uma revolução proletária, já que o proletariado alemão se encontrava mais organizado que o proletariado na revolução inglesa e na revolução francesa, todavia essa expectativa não se realizou.

Em 1848, a burguesia, apoiada por um proletariado bastante forte, derrotou facilmente as forças residuais do absolutismo. Como não houve uma guerra prolongada que exigisse a união de burgueses e proletários contra um inimigo comum, a burguesia vitoriosa logo passou a lutar contra o proletariado, que levantara a bandeira da democracia social. O massacre de junho de 1848 marca o momento em que a burguesia deixou de ser uma classe revolucionária. A possibilidade de que uma revolução burguesa pudesse ser prolongada e radicalizada até que o proletariado conquistasse o poder ficou cada vez mais remota. Sem uma burguesia revolucionária, nada de revolução permanente. Depois de 1848 ficou cada vez mais evidente que uma revolução só poderia vir do proletariado. Mesmo nas condições sociais atrasadas da Rússia, a iniciativa da revolução deveria partir do proletariado, mesmo que não conduzisse à sua dominação exclusiva. 

“O fortalecimento da classe trabalhadora e sua ascensão ao momento em que seja capaz de conquistar e manter o poder político não pode mais ser esperada de uma revolução burguesa que, ao se tornar permanente, vá além de seus limites e desague numa revolução proletária. Este fortalecimento e amadurecimento deve ter lugar fora da revolução e antes dela. Ele deve ter alcançado um certo nível antes que uma revolução seja possível. Deve ocorrer por métodos de paz, não de guerra – se é permitido fazer um distinção entre métodos belicosos e pacíficos de luta de classes.”

Nessa nova etapa histórica, a legislação de proteção aos trabalhadores e o papel dos sindicatos assumem toda sua importância. E não foram os revisionistas que viram isso, mas sim Marx e Engels que, muito antes, perceberam que a época das revoluções estava chegando ao fim, o que não quer dizer que o antagonismo de classes tivesse desaparecido, ao contrário do que supõem os revisionistas.  

Os socialistas que pregam a colaboração com os liberais e a participação nos ministérios se justificam dizendo que é preciso apoiar a burguesia revolucionária, conforme a lição antiga de Marx. Neste caso, eles deveriam se lembrar da Mensagem ao Comitê Central da Liga dos Comunistas, de março de 1850  (A claraboia e o holofote #18), na qual Marx ensinava que era preciso ter cautela e desconfiança em relação à burguesia potencialmente revolucionária. Se é assim, o que dizer da aliança com uma burguesia que deixou de ser revolucionária há tanto tempo? 

Os revisionistas se esquecem de que a estratégia revolucionária foi trocada por uma estratégia evolucionária justamente porque não há mais revoluções burguesas e nem a possibilidade de uma revolução permanente.

“onde quer que a cooperação da burguesia com o proletariado seja necessária hoje, com exceção da Rússia, ela é feita com propósito de conservação e não de revolução, para a preservação e garantia dos magros rudimentos de democracia existentes contra o assalto da reação.” 

De qualquer modo, a discussão a respeito da cooperação com partidos burgueses no parlamento e da participação nos ministérios diz respeito aos partidos socialistas da Europa Ocidental.  Na Rússia, a situação tinha contornos especiais. Por um lado, a situação econômica e política era semelhante à da Alemanha de 1848; por outro lado, uma vez que as lutas de classes no interior das nações se inter-relacionam no plano internacional, a burguesia russa -modificada pela burguesia ocidental - já se tornara reacionária:

“Os socialistas ativos na Rússia absolutista devem levar em consideração as condições mais primitivas de seu país, assim como as condições mais desenvolvidas dos outros países. A burguesia da Rússia ainda tem tarefas revolucionárias para realizar, mas já tem a maneira de pensar reacionária da burguesia ocidental."

Nessa Rússia em plena efervescência pré-revolucionária do proletariado, os russos deveriam procurar orientação no texto mais revolucionário de Marx, sem dar ouvidos aos revisionistas:

"O melhor e mais confiável guia que os socialistas russos podem ter é o Manifesto”



“Nós não somos homens da legalidade a qualquer preço, nem revolucionários a qualquer preço” 

3. O kautskismo 

Na seu artigo, Kautsky cita poucas passagens do Manifesto Comunista. É claro que talvez fosse ocioso retomar palavras que haviam se tornado demasiado famosas para todos os militantes socialistas, mas essa ausência de citações vai de par com a ideia de que, depois de quase sessenta anos, o Manifesto havia se tornado um documento histórico, que não poderia mais ser tomado a sério literalmente, mas ainda era válido por suas ideias gerais.

Os poucos trechos citados por Kautsky são exemplos de erros que, devidamente estudados, poderiam ser instrutivos. Longe de ser uma evangelho, o Manifesto é “um documento histórico que deve ser sujeito à crítica, mas a uma crítica que não se limite a mostrar como algumas afirmações não são mais verdadeiras; para uma crítica que, além disso, se esforce em compreendê-lo e também compreender aquelas afirmações que são obsoletas hoje, tirando um novo conhecimento delas.”

Essa leitura “militante” do Manifesto deveria fornecer orientação política para os que lutam no campo do proletariado.

“Para aquele que estuda o Manifesto dessa maneira, ele é uma bússola no oceano tempestuoso da luta de classes do proletariado.”

Para Kautsky, o que sustentava o valor do Manifesto (além do método materialista e das análises econômicas do capitalismo, que viriam a ser muito mais desenvolvidas n’O Capital) era a afirmação do caráter fundamental da luta de classes, que não cessou de ser comprovada pela história a partir de 1848:

“Nunca foi tão universalmente aceito o princípio de que toda a história civilizada até aqui foi a história da luta de classes; e nunca foi apareceu de modo tão evidente que o grande motor de nosso tempo é a luta de classes entre a burguesia e o proletariado.”

assim como  a afirmação do caráter revolucionário do proletariado:

“O proletariado, pela sua própria condição de classe, é uma classe completamente revolucionária, e hoje é a única classe revolucionária (...) Sua força só pode se desenvolver e crescer pela ação revolucionária e pela propaganda revolucionária, e ela destrói as raízes de sua força se se limita ao papel conservador de guardiã da burguesia liberal contra o ataque do clero, da aristocracia rural e dos mercenários. “ 

A política dos partidos social-democratas de toda a Europa não deveria perder de vista esses dois aspectos. Foram as lutas do proletariado contra a burguesia desde 1848 que lhe deram força para se fazer representar nos parlamentos europeus. Se agora a luta era feita por meios legais e pacíficos isso não significava de modo algum o fim dos antagonismos de classe. O que aconteceu foi o esgotamento da possibilidade de que uma revolução burguesa se tornasse permanente, já que a própria burguesia se tornou conservadora a partir de 48. Agora que apenas revoluções proletárias poderiam acontecer, elas deveriam ser preparadas e amadurecidas ao longo do período em que a classe operária obtivesse ganhos por meios pacíficos.  Era essa imbricação entre reformismo e revolução que os revisionistas não entendiam, quando recusavam a luta de classes e a revolução, propondo coalizações com os partidos liberais e a prática ministerialista de assumir pastas em governos conservadores. 

A tarefa de Kaustky como teórico da Segunda Internacional e como um dos líderes do SPD era justamente articular a relação entre a necessidade conjuntural de adotar práticas parlamentares e sindicais (visando a proteção e melhoria da condição dos trabalhadores) e a necessidade lógica do desenvolvimento capitalista, que aguça a luta de classes e conduz inevitavelmente à tomada revolucionária de poder pelo proletariado. Num artigo de 1893 na revista Die Neue Zeit, Kautsky resumiu claramente essa conciliação difícil:

“O Partido Social Democrata é um partido revolucionário, mas não um partido que faz revoluções. Sabemos que nossos objetivos somente podem ser alcançados por meio de uma revolução, contudo também sabemos temos tão pouco poder de fazer uma revolução quanto de preveni-la. Assim nem mesmo nos ocorre de querer fomentar uma revolução ou preparar as condições para uma (...) Sabemos que a luta de classes entre a burguesia e o proletariado não terminará até que o último tenha se apoderado completamente do poder político, que ele usará para introduzir a sociedade socialista. Sabemos que a luta de classes deve se tornar mais extensa e intensa; que o proletariado está crescendo tanto em tamanho quanto em força moral e econômica; que, portanto, sua vitória e a derrota do capitalismo são inevitáveis. 

Uma vez que nada sabemos a respeito das batalhas decisivas da guerra social, com certeza temos pouco a dizer se elas serão sangrentas, se a força física desempenhará um papel importante nelas, ou se elas farão uso exclusivamente dos meios econômicos, legislativos e de pressão moral.

O que se pode dizer, porém, é que com toda probabilidade é que nas lutas revolucionárias do proletariado o último tipo de meios irão predominar sobre os meios físicos, isto é, sobre a força militar, mais do que acontecia na lutas revolucionárias da burguesia.”
(Karl Kautsky, The Road to Power, pp 41-42)

A crença no determinismo histórico, a confiança na vitória final do proletariado, a incerteza sobre como e quando se daria essa vitória e, especialmente, a declaração de que estava fora do alcance do partido apressar ou promover a transformação revolucionária – todas essas características do kautskismo que podiam por algum freio ao avanço dos revisionistas no SPD tornaram-se motivo de impaciência para a ala esquerda radical, que se animava com a iminência de uma revolução na Rússia.

A possibilidade de uma revolução russa projeta uma sombra no artigo de Kautsky sobre o Manifesto Comunista. Para lidar com essa sombra, Kautsky recorre à ideia de que o atraso russo gerou condições de exceção: uma combinação de industrialização incipiente e herança feudal-absolutista semelhante à da Alemanha de 48:

“Por essa razão, o Manifesto é ainda mais válido para eles [os socialistas russos] do que para os Socialistas da Europa Ocidental, não somente no que concerne a seus fundamentos e métodos e sua apresentação do caráter geral do modo capitalista de produção, aspectos que ainda hoje formam as sólidas fundações para qualquer movimento proletário consciente de qualquer país, mas também em muitos detalhes que se tornaram obsoletos na Europa Ocidental”.

Kautsky, porém, reconhece que a situação era mais complicada que isso:

“A relação politica entre a burguesia e o proletariado, entre Liberalismo e Socialismo, é muito mais complexa e difícil na Rússia do que na Europa Ocidental. Para compreendê-la corretamente, os socialistas em atividade sob o absolutismo russo deverão levar em consideração a condição muito primitiva de seu país tanto quanto o elevado desenvolvimento das condições de outros países. A burguesia russa ainda tem tarefas revolucionárias para realizar, mas já tem a maneira de pensar reacionária da burguesia ocidental.”

Kautsky tinha o mérito de reconhecer o descompasso e o embaralhamento das etapas históricas na Rússia. Todavia, a estranheza do caso russo era principalmente um efeito da perspectiva alemã. À medida que o bem sucedido SPD fazia aliança com o crescente chauvinismo germânico, a especificidade do próprio caso alemão foi esquecida e a história da classe operária franco-alemã se tornou o modelo "ortodoxo" das etapas do desenvolvimento político do proletariado. A hegemonia dos teóricos do SPD nos meios socialistas europeus acabou por obliterar a visão de que o caso alemão era tão excepcional quanto o caso russo, o caso francês, o caso italiano, o caso inglês etc.

Portanto, era a exceção alemã que escapava a Kautsky (mas ele não estava sozinho). A comédia de erros ficou mais confusa quando, no seu afrontamento com os revisionistas, Kautsky publicou em 1909 o seu panfleto mais duro – O Caminho do Poder-, sublinhando o caráter revolucionário do partido e as condições que tornariam necessária uma revolução. O livro desagradou profundamente o Comitê Executivo do SPD, mas foi elogiado por Vladimir Ilich Lênin, que voltaria atrás (sempre pensando que foi Kautsky que voltou atrás), acusando-o de “renegado”.

A sombra russa cobriria Kautsky e o SPD muito em breve, mas antes viria a catástrofe de 1914.


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Tom Bottomore, Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997 | François Châtelet, Olivier Duhamel, Evelyne Pisier (org), Dicionário de obras políticas, Civilização Brasileira, 1993 | Karl Kautsky, The Road to Power, Center fo Socialist History, Berkeley, 2007 | Karl Kautsky, To What Extent is the Communist Manifesto Obsolete? | Leszek Kolakowski, Main currents of marxism, volume II, Clarendon Press, Oxford, 1978  |  George Lichtheim, El Marxismo: un estudio histórico y crítico, Editorial Anagrama, Barcelona, 1977  |  Carl E. Schorske, German Social Democracy 1905-1917 The Development of the Great Schism, Harvard University Press, Cambridge, 2014