segunda-feira, 28 de julho de 2014

Quando a pátria que temos não a temos #8






Lisboa em tempo de seca




Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Exílio"



I

Post festum, pestum


Santiago Calatrava anda metido em problemas com a justiça de Valência. O Palau de les Arts Reina Sofia está a se desfazer em pedaços grandes e pequenos. Tomara que o mesmo não suceda à Estação do Oriente, ao menos não hoje, ao menos não agora que Ludmila e eu acabamos de desembarcar para conhecer o afamado sítio da Exposição Mundial de 1998.


Desde a Great Exhibition of the Works of Industry of all Nations em 1851, as grandes exposições celebram os consensos e as certezas hegemônicas da época. No Palácio de Cristal, de Paxton, o Capital da era vitoriana festejava a feérie da mercadoria, depois do esmagamento de todos os sonhos revolucionários de 48. No centenário da Revolução Francesa, a Exposition Universelle de 1889 oferecia ao mundo as primícias do progresso numa Paris que tentava esquecer Sedan, a Comuna e o recente golpismo boulangista e exaltava o triunfo da racionalidade das Luzes numa nação em que os medíocres homens públicos da Terceira República davam as mãos à Rússia retrógrada dos Romanov e se metiam em toda sorte de negociatas, quando não estavam eles mesmos metidos entre as coxas dalguma grisette. 


A Expo'98 deveria ser o contraponto à Exposição do Mundo Português que o Estado Novo organizou em Belém para festejar o Império e as tradições da hinterland lusitana. Em 1940, o regime de Salazar e do General Carmona voltava orgulhosamente suas costas ao continente. A exibição no ponto mais ocidental de Lisboa se iniciou apenas nove dias depois da ocupação de Paris pela Wehrmacht e se desenrolou ao longo daqueles meses em que a Inglaterra era submetida aos bombardeios da Luftwaffe. No Portugal de 1998 era a vez de celebrar o consenso europeísta e social-democrata, que empunhava o novíssimo catecismo ecológico da sustentabilidade. O pretexto histórico era os 500 anos da viagem de Vasco da Gama; o tema anunciado - os oceanos - era curiosamente vago e amplo o suficiente para conter as sugestões históricas, devidamente desfalcadas de seu contexto expansionista,  e as novas preocupações ambientais. O sítio escolhido - uma região outrora degradada de Lisboa oriental, onde o Tejo se alarga no Mar de Palha - era um tanto deslocado da ocasião e do tema: o Atlântico, a Torre de Belém e o túmulo de Vasco da Gama estão noutro lado da cidade. Porém, como tudo mais na União Europeia, a história era a um só tempo rememorada (como data do calendário) e recalcada (como processo real cheio de tensões) por meio de uma cuidadosa mise-en-scène neutralizadora, que está na base dos símbolos oficiais da UE e da indefinida historicidade dos monumentos exibidos nas cédulas do euro.  

Desde que Mário Soares assinara, numa cerimônia solene no Mosteiro dos Jerônimos em 1985, o ingresso de Portugal na Comunidade Económica Europeia, o país andava leve e feliz sobre ondas de prosperidade. A taxa de mortalidade infantil despencou, a escolarização deu passadas largas, os índices económicos seguramente convergiam com os da Europa Ocidental. Portugal não precisava mais de um D. Sebastião que retornasse glorioso das façanhas d'África. A salvação não vinha mais do Atlântico. Era melhor esquecer os ressentimentos antigos e negociar com a Espanha.  Em 1992, quando do Tratado de Maastricht, Portugal garantiu sua participação na recém-criada União Europeia e, apesar das condições draconianas exigidas para integrar a futura zona do euro, Jacques Delors, presidente da comissão europeia na época, fez de tudo para obter a participação de Portugal, da Irlanda, da Grécia e da Espanha, aqueles mesmos países que vinte anos depois seriam infamados como os PIGS.  

“At Bonn’s behest, Europe’s finance ministers would thus be bound, Ulysses-like, to the euro-mast: unable to respond to the Siren-calls of voters and politicians for easier money and increased public spending. These terms, designed to insure that the new euro would be as inflation-proof as the Deustschmark itself, were not universally popular – in the poorer member states it was widely and rightly feared that they would constrain public policy and perhaps even prevent growth. And so, in order to make the Maastricht conditions more palatable, cash bonuses were made available to recalcitrant governments: Jacques Delors, the Comission President, all but bribed the finance ministers of Greece, Spain, Portugal and Ireland, promising large increases in EU structural funds in return for their signatures on the Treaty.” 

(Tony Judt, Post-War a History of Europe since 1945, Penguin, London, 2005 p. 715)


Sim. Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha, os mesmos países que vinte anos depois seriam infamados como os PIGS. Mas quem pensava em vinte anos depois? Que poderia acontecer vinte anos depois? Não é que a história havia chegado ao seu fim com o colapso do mundo soviético?  Não é que o mundo entrara numa era de equilíbrio multipolar benigno em que todos concordavam com a eficiência do mercado livre e o caráter salutar da concorrência?  E não é que tudo andava muito bem no Extremo Ocidente europeu? 


A vizinha Espanha tivera seu Nobel de Literatura em 1989, atribuído a Camilo José Cela; três anos depois, sediara as Olimpíadas em Barcelona e a Exposição Universal em Sevilha. Agora Portugal também merecia uma festa e a consagração fácil de um Nobel. A Exposição Mundial de Lisboa terminou no dia 20 de setembro de 1998. Dezoito dias depois, o prêmio Nobel de Literatura foi concedido a José Saramago.

No Portal Eurocid, ligado ao Instituto de Informação Europeia Jacques Delors, há um desses documentos comemorativos que resume bem o discurso oficial e autocongratulatório da União Europeia em relação a seus Estados-membros. 


“Podemos concluir que a integração de Portugal nas Comunidades Europeias traduziu-se, a nível interno, na oportunidade de: 


•  Consolidar a democracia em Portugal;


• Garantir a segurança e a estabilidade do território português;


• Reforçar a salvaguarda dos direitos e das liberdades fundamentais dos cidadãos portugueses;


•  Cimentar a liberdade económica e a liberdade sindical;


• Reafirmar a confiança e estabilidade política através da integração numa Comunidade com os mesmos valores;


• Combater o desenvolvimento regional desequilibrado, conseguindo uma convergência real apoiada, também, por fundos comunitários.”

("Portugal  25 anos de integração europeia", Dezembro de 2010)

Esta é a simpática face civilista e social-democrata da Europa, que costuma aplaudir a si mesma, quando faz sol, com a mesma presteza com que se apequena diante da extrema-direita, quando nuvens cobrem o céu cinzento. 


Pois acontece que, em 2002, já se viam as primeiras sombras sobre a economia portuguesa. O dinheiro que viera dos juros baixos da CEE e da UE pavimentara a malha rodoviária do país e incentivara a compra de televisores, frigoríficos, computadores, automóveis e telemóveis. A taxa de poupança das famílias diminuíra; os acordos comerciais desmantelaram os setores exportadores portugueses: a agricultura e a indústria pesqueira estavam virtualmente extintas, enquanto a indústria têxtil perdia a concorrência para os chineses; as plantas industriais eram transferidas para os países do Leste, que dispunham de mão de obra mais barata que a portuguesa. Os défices se acumulavam e os investidores estrangeiros franziam o cenho. 



“Portugal aproveitou a expansão do Ocidente nos séculos XIX e XX, sobretudo na segunda metade do século XX. Nos princípio do século XXI, porém, não parecia capaz de explorar à mesma escala as oportunidades deste novo mundo ‘globalizado’. A partir de 2000, os portugueses começaram a empobrecer relativamente à Europa Ocidental. Segundo dados publicados pela Comissão Europeia, a média anual do crescimento do PIB português entre 2002 e 2004 foi cerca de 0,4%, enquanto as economias da UE-27 (a União Europeia com 27 estados-membros) registraram um crescimento de cerca de 1,6%. Esse diferencial manter-se-ia nos anos seguintes. Pior: o investimento em Portugal deixou de subir desde 2000 e caiu desde 2002. Portugal, no começo do século XXI, entrara no período de mais longo abrandamento do crescimento económico desde a Segunda Guerra Mundial. As taxas de crescimento anual permitem medir o declínio: 1960-1975, 6%; 1975-1990, 4%; 1990-2005, 2%. (...)
Outra preocupação do debate público sobre o país esteve na desigualdade. Segundo o Eurostat, o primeiro quintil da população em termos de rendimento situava-se numa relação 6,1 vezes com o último quintil em 2008, quando a média da UE-25 era de 5 vezes. Uma parte dessa desigualdade tinha a ver com o fato de os quadros das empresas já terem remunerações a nível europeu, por actuarem num mercado global, mas não os trabalhadores sem qualificações – e, com o facto de em Portugal este grupo ser muito importante.”
(Rui Ramos , História de Portugal, A esfera dos livros, Lisboa, 2010, pp. 775-776)


A instabilidade dos mercados especulativos desde a crise dos subprimes de 2008 acabou por abalar ainda mais as finanças das nações mais pobres da zona do euro. Em 2011, Portugal teve que aceitar a politica de austeridade da troika (Fundo Montário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu), quase ao mesmo tempo em que Dominique Strauss-Kahn, socialista francês e então presidente do FMI, assediou sexualmente a empregada de um hotel de luxo em New York. Belo exemplo de austeridade e preciosa indicação do que os chefes da troika estavam dispostos a fazer com os trabalhadores. 


O que podia fazer o governo de Portugal em 2011? O que podia fazer um governo que há tempos se condenara à irrelevância? A ser mero coadjuvante que se esmera em prometer o cumprimento de metas mutiladoras? O que se podia esperar de uma classe política desonesta e incapaz? Que resistência podia oferecer  um país fragmentado, em que a participação politica foi sufocada pela desconfiança individualista, como mostrou uma pesquisa recente? O que esperar de um povo que perdeu todo o ímpeto e grandeza e limita-se a espalhar rudes queixumes nas redes sociais? 


- Antonio (ou Maria João), por que não levantas o cu da cadeira e vais à rua protestar com teus vizinhos?

- Porque não confio nesse caralho dessa porra desse filho-da-puta do meu vizinho, que não passa de um cão sem colhões!

É nisso que hoje se resume a gente que outrora vencia Ouriques e Aljubarrotas?

No entanto, as dificuldades actuais não são de causar surpresa; todas as contradições do consórcio impossível estavam escancaradas em cada aspecto do êxito de Portugal naqueles anos em que tudo resultava. 

Que se pense na figura de António Guterres, primeiro-ministro de 1995 a 2002 (ano em que as vacas apareceram muito magrinhas no curral). Guterres, que operava milagres de conciliação ao pertencer ao Partido Socialista e a Opus Dei, era um desses burocratas opacos que vão galgando posições à custa da sua cooperação canina com as instituições em que se inserem. Foi fiel ao mercado e aos órgãos internacionais, como fora semper fidelis à sua igreja. Tal lealdade, mais do que o mérito, costuma ser recompensada na moeda das altas posições internacionais. Guterres foi presidente da Internacional Socialista e depois ganhou o Alto Comissariado para os Refugiados da ONU.  É claro que não podemos culpá-lo por ser mais um desses homens mornos, tão numerosos na vida política portuguesa desde que a turbulência posterior ao 25 de abril foi pacificada às custas de um pacto de mediocridade, que os áulicos de hoje honram com o nome de "estabilidade conquistada pelo Estado Português". Uma conquista feita de fraquezas, parasitismo, burocracia e corrupção endêmica; noutras palavras, a paz dos aldabrões. 


O Parque das Nações, que tomou o lugar da Expo'98 aí está, como os sobejos da Disneylândia de betão. Tem vista ampla para o Mar de Palha, algumas curiosidades arquitectónicas nem sempre felizes, uma bela passarela junto ao Tejo, sob a linha do teleférico. O Oceanário ainda conquista os corações. Ludmila e eu nos esprememos entre os franceses que se apinhavam nos corredores escuros naquela segunda-feira de sol. (Eu mesmo me encantei com ver vivo e sossegado um espécimen de gadus morhua, peixe que devidamente salgado, seco e acéfalo sempre apreciei nas suas muitas subespécies: à Gomes de Sá, à Lagareiro, à Zé do Pipo, à Braz e por aí vamos). Todavia, os urbanistas e sociólogos julgam que o projeto do Parque das Nações falhou e muitas oportunidades urbanísticas se perderam:


"Uma das questões que gerou maior polêmica na Expo'98 foi o anunciado custo zero - ou soma zero - segundo o qual a operação imobiliária pagaria os custos do empreendimento, numa equivalência entre receitas e despesas. Esse objetivo - não cumprido - terá criado uma grande pressão construtiva sobre a Zona de Intervenção. O que significa, nas leituras críticas do sociólogo Manuel Villaverde Cabral, o domínio de uma "lógíca contabilística" em detrimento do caráter regenerador da intervenção. Uma "febre especulativa" que prejudicou o desígnio de "fazer cidade" à escala metropolitana, trocado pela construção de um vulgar condomínio.

Uma das consequências apontadas à "lógica contabilística" da operação é a da densidade do construído. Mas mais do que isso, o problema é que os modelos de habitação são os das operações imobiliárias comuns, isto é, convencionais. A Parque Expo seria então, como escreve o sociólogo Vitor Matias Ferreira, "uma urbanização entre tantas", mas que "implicou custos econômicos, sociais e urbanos incomparavelmente maiores".
Sublinhe-se ainda a expressão "parque" no nome da urbanização - Parque Expo, agora Parque das Nações. Como diz o arquiteto Nuno Portas é "um apelido sintomático das intenções urbanísticas". A Parque Expo  é uma "ilha de excelência", com uma força centrípeta, e portanto pouco permeável ou "fomentadora" da regeneração alargada da cidade."  
(Jorge Figueira, A Expo '98 de Lisboa: Projeto e Legado, p. 158)


Depois da volta no teleférico e da inspeção maravilhada do Oceanário, almoçamos. No restaurante, fomos atendidos por um paranaense. Ele se mudara com a família para Portugal nos bons tempos de prosperidade, mas estava decidido a voltar ao Brasil. Nós outros regressaríamos dentro de dois dias, mas iríamos antes a Tomar, caso não nos impedisse a paralisação dos transportes anunciada para o dia seguinte. Como estávamos sem pressa e, sorte nossa, ainda nos sobravam alguns euros, andamos pelo Centro Comercial Vasco da Gama. Ludmila olhou as lojas de sapatos e eu entrei na Fnac à procura dos discos de Sean Riley & the Slowriders, formação portuguesa originária de Coimbra e liderada por Afonso Rodrigues, que canta maravilhosamente em inglês. Sem encontrar o que queria, dei-me por satisfeito com uma caixa de filmes do húngaro Béla Tarr. Isto também é a União Europeia.






II

Duas visões sobre a crise actual



O ponto de vista das autoridades portuguesas

"Uma das lições da actual crise da dívida soberana é que os destinos de Portugal não estão dependentes apenas das suas decisões. Para Portugal, o sucesso irá também depender da estabilização financeira da zona euro que, por seu lado, depende da forma como a UE continuar a gerir a crise. (...)

O dualismo moral afectou a gestão da crise. De facto, as origens económicas, políticas e institucionais da crise podem ser encontradas não só nos países mais afectados mas também na construção e gestão política da zona euro no seu todo. A narrativa segundo a qual alguns países do euro estão a ser castigados pelos seus pecados é claramente prejudicial à adopção de uma abordagem equilibrada. Para além disso, não corresponde à realidade. Na verdade, o problema esteve não só no desrespeito pelas regras (por parte de muitos membros da zona euro) mas também na inexistência de regras e mecanismos suficientes”

(Pedro Lourtie, Portugal no contexto da crise do euro, Relações Internacionais n.32, Lisboa, Dezembro de 2011)





O ponto de vista da esquerda

"Aquando da criação do euro, a moeda alemã foi subavaliada (a pedido da Alemanha) e as moedas dos países mais fracos foram sobrevalorizadas. Isso tornou as exportações alemãs mais competitivas no mercado dos outros países europeus e os países mais fracos foram particularmente afetados (Grécia, Portugal, Espanha, Europa Central e de Leste...).

Obviamente, os países que fazem parte da Zona Euro não podem desvalorizar a sua moeda, porque adotaram o euro. Países como a Grécia, Portugal e Espanha estão reféns da Zona Euro. As autoridades europeias e os governos nacionais aplicam a chamada desvalorização interna: impõem salários mais baixos, beneficiando as grandes empresas privadas. A desvalorização interna é sinónimo de salários mais baixos. A desvalorização interna é utilizada para aumentar a competitividade, mas constata-se que é muito pouco eficaz a fazer recuperar o crescimento económico, porque as políticas de austeridade e de repressão salarial são aplicadas em todos os países. Por outro lado, os patrões das empresas estão satisfeitos porque há muito que queriam reduzir salários. Desse ponto de vista, a crise na Zona Euro, que se agudizou em 2010-2011, é uma bênção para os patrões. O salário mínimo foi reduzido de forma significativa na Grécia, na Irlanda e noutros países.
Apesar de a crise ter tido origem nos Estados Unidos, em 2007, o impacto foi muito mais violento na União Europeia do que nas instituições políticas e monetárias norte-americanas. De facto, a crise que afeta a Zona Euro não é uma surpresa, é um avatar de dois princípios que regem a zona: o mercado único de capitais e a moeda única. Mais genericamente, é consequência das lógicas que dominam a integração europeia: a primazia dada aos interesses das grandes empresas industriais e financeiras privadas; a grande promoção de interesses privados; a concorrência no espaço europeu entre economias e produtores em condições de grande desigualdade; a vontade de retirar aos serviços públicos um número crescente de áreas de atividade; a concorrência entre trabalhadores, que pressupõe a recusa de unificar os sistemas de segurança social e as regras de proteção dos trabalhadores. Tudo isso tem um objetivo claro: favorecer a maior acumulação possível de lucros privados, nomeadamente colocando ao serviço do capital uma mão de obra flexível e precária.
A UE coloca-se, portanto, voluntariamente ao serviço dos mercados financeiros, porque normalmente os governos da Zona Euro estão totalmente dependentes do financiamento do setor privado. (...) Entre os investidores institucionais, foram os bancos privados que conseguiram maiores lucros, porque podiam financiar-se diretamente junto do Banco Central Europeu, pedindo emprestado a uma taxa de 1% e, ao mesmo tempo, emprestando à Grécia, por um período de três meses, a taxas entre 4 e 5%. Ao atacarem os mais fracos, os bancos e outros investidores institucionais estavam também convencidos de que o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia iriam, de uma forma ou de outra, ajudar os Estados vítimas de especulação concedendo-lhes empréstimos que lhes permitissem continuar com os reembolsos. E não se enganaram. (...)
Considerar que a política dos dirigentes europeus falhou porque o crescimento económico não está de volta, é em grande parte errar o critério de análise. Na verdade, os objectivos do BCE, da Comissão Europeia, dos governos das economias mais fortes da UE, das direções dos bancos e das grandes empresas privadas não é o regresso rápido ao crescimento nem a redução das assimetrias no seio da Zona Euro e da União Europeia para se conseguir um conjunto mais coerente onde a prosperidade estaria de volta.
Em Portugal, as medidas de austeridade são de tal violência e a degradação económica é tão grave que um milhão de portugueses saíram espontaneamente à rua, a 15 setembro de 2012, um número que apenas tinha sido alcançado em 1 de Maio de 1974, para festejar a vitória da Revolução dos Cravos."


(Eric Toussaint, As contradições Centro/Periferia na União Europeia e a crise do euro, 14 de novembro de 2013)





Estação do Oriente - projeto de Santiago Calatrava




Estação do Oriente:  entrada





Centro Comercial Vasco da Gama


À esquerda, o Pavilhão de Portugal - projeto de Álvaro Siza; à direita, a Torre São Gabriel




No primeiro plano, o cobertura do Pavilhão de Portugal - projeto de Álvaro Siza



Ao fundo, a Torre Vasco da Gama 



Ao fundo, a Ponte Vasco da Gama; à frente, uma das torres do sistema de teleférico



Passarela junto ao Tejo vista do teleférico



Acesso ao Oceanário














segunda-feira, 14 de julho de 2014

Quando a pátria que temos não a temos #7







Lisboa em dia de vento forte 


Parte I


A glória lusa segundo os áulicos



O autocarro 727 que tomamos na rua Braamcamp nos deixou em Belém.  Sexta-feira de vento forte, ora a ameçar a chuva, ora a sorrir o sol.  Um verdadeiro campo de monumentos à glória lusitana diante de nós. 

Quando comecei esta viagem, o sentido do cá e do lá me eram ditados pela Canção do Exílio, que todos os brasileiros conheceriam não houvesse tanta gente ágrafa e tantos analfabetos funcionais na terra das palmeiras onde canta o sabiá. 

"Não permita Deus que eu morra, 
Sem que eu volte para lá; 
Sem que desfrute os primores 
Que não encontro por cá."

O que o bardo brasileiro não viu nem podia ver, pois não é dado aos bardos enxergar o que está abaixo da linha d'água ou do próprio nariz, é que os Estados-nações têm poderosos dispositivos para polarizar emoções de pertencimento: as mobilizações guerreiras, as vitórias, as conquistas, os heróis. Essas máquinas de glória repousam sobre uma ideia toda factícia, que nos tentam incutir desde cedo: a ideia de pátria, isto é, de uma cena original do pertencimento. À primeira vista, a pátria seria o útero e o seio materno transpostos para a geografia. Melhor então ajustar o significante ao significado, chamando-a "mátria", mas isso já seria cair na armadilha de acreditar num pertencimento original, tão íntimo e umbilical quanto o da vida uterina.  O nome "pátria" está certo e diz muito. Pátria é mesmo pátria. Odeio dar razão a Lacan, mas é do nome do pai que se trata, ou seja, da lei, dos imperativos, dos deveres; o campo dos cerceamentos estruturadores; o campo das proscrições; o campo da pergunta decisiva que define os territórios e desenha pela primeira vez o cá e o lá: estás ou não estás conosco, pá? 

Paisagens natais, guerras, conquistas e mundiais de futebol são dispositivos que polarizam discursos de pertencimento, os quais podem ser tão suaves como uma berceuse, como o é a Canção do Exílio; tão belicosos e sanguinários como La Marseillaise, ou plenos de exaltação do absurdo auto-sacrifício como o poema de Lord Tennyson:

"When can their glory fade?
O the wild charge they made!
All the world wondered.
Honor the charge they made,
Honor the Light Brigade,
Noble six hundred."

No entanto, Ludmila e eu caminhávamos lentamente pela Praça do Império, tendo às costas o Mosteiro dos Jerônimos, à nossa direita o Centro Cultural, à nossa frente, o Padrão dos Descobrimentos, a nosso redor a Torre de São Vicente de Belém, o Palácio Nacional, a antiga praia do Restelo, as construções remanescentes da Exposição do Mundo Português de 1940 e não sei quantos outros templos da grandeza imaginária.  Dava uma vontade louca de declamar aos brados, contra o vento que soprava rijo da barra do Tejo:


Cannon to right of them,
Cannon to left of them,
Cannon behind them
Volley'd and thunder'd;
Storm'd at with shot and shell


Ou então de juntar-me aos áulicos vernáculos do tronco antigo, que faziam o milagre de extrair o mais puro azeite dos frutos mirrados de então, com o qual se esforçavam por untar e doirar a duríssima vida lusitana dos mil e quinhentos:


"E a gente portuguesa, católica por fé e verdadeira adoração do culto que se deve a Deus, arvorando aquela divina bandeira de Cristo, sinal de nossa redenção, de que a igreja canta Vexilla regis prodeunt, não somente à vista dos mouros de África, Pérsia e Índia, pérfidos a ela, mas diante de todo o paganismo destas partes que dela nunca tiveram notícia, e isto navegando por tantas mil léguas que vêm a ser antípodas de sua própria pátria, cousa tão nova e maravilhosa na opinião das gentes que até doutos e mui graves varões em suas escrituras puseram em dúvida de os haver; nas quais partes, ele houveram vitórias de todas as nações, contendendo com os perigos do mar, trabalhos de fome e sede, dores de novas enfermidades e, finalmente, com as malícias, traições e enganos dos homens, que é mais duro de sofrer; assim são próprias todas estas cousas em a nação portuguesa, e as tem por tão natural mantimento depois que nascem, que os faz fastientos do trabalho de as querer contar e escrever, como se tivesse a seus próprios feitos ódio para os ouvir, depois que os faz, como são apetitosos para os cometer e apressados no ato de os fazer, e constantes em os segurar."

João de Barros, Década Primeira, livro IV, capítulo XI  (1552)



O Padrão dos Descobrimentos


O Padrão dos Descobrimentos e a Ponte 25 de Abril




A Torre de Belém vista do Padrão dos Descobrimentos



A  Torre de Belém



A Torre de Belém



O Tejo visto das ameias da Torre




O mosteiro dos Jerônimos





O claustro do mosteiro



Corredores do andar superior do claustro



O gótico manuelino 



O corredor térreo do claustro



 O assim chamado túmulo de Camões



A igreja dos Jerônimos: colunas e nervuras da nave central



A igreja dos Jerônimos: o coro



A nave central vista do cruzeiro do coro



O mosteiro dos Jerônimos ao anoitecer



Parte II



Os antípodas de sua própria pátria

ou


"E quando não tiveres o que comer?"


Agoniado pelas falcatruas patrióticas do Estado - o Novo e o Velho -, tanto o dos salazares quanto o dos dom-manuéis, o quarto ou quinto de lusitanidade de meu coração se revolta e entorna. Não é dessa gente que vim. Não é desses antonios-ferro ou joões-de-barro que procedo. Se Portugal me fala e me diz, se a gente lusa me é tão familiar e simpática, é por me não falecer o sangue ruim da arraia-miúda que mourejava, do povinho que nunca aprendeu a nadar e sempre assistiu - perplexo e famélico -  ao desembarque dos tesouros dos Brasis e das Índias, dando por falta dos marinheiros seus parentes que ficaram no fundo do mar a alimentar a profusão dos peixes ou dos que se fartaram de fomes e se enriqueceram de febres no ultramar. 



1. 

"Sou capelão dum fidalgo
que não tem renda nem nada;
quer ter muitos aparatos
e a casa anda esfaimada;
toma ratinhos por pajens,
anda já a cousa danada.

(...)

Se vossas mercês não hão
cordel para tantos nós,
vivei vós aquém de vós,
e não compreis gavião,
pois que não tendes piós."

Gil Vicente, Farsa dos Almocreves (1526)



2.


"Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que, com muita razão, me posso queixar da ventura, que parece que tomou particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória, porque vejo que, não contente de me pôr na minha pátria, logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde, em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos."


Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, capítulo 1 (1614)


3. 


- "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

- "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?


Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Canto IV, 96-97  (1572)




4. 


"Dom Fulano — diz a piedade bem-intencionada — é um fidalgo pobre: dê-se-lhe um governo.  E quantas impiedades, ou advertidas ou não, se contém nesta piedade? Se é pobre, dêem-lhe uma esmola honestada com o nome de tença, e tenha com que viver. Mas por que é pobre, um governo, para que vá desempobrecer à custa dos que governar? E para que vá fazer muitos pobres à conta de tornar muito rico? Isto quer quem o elege por este motivo. Vamos aos do prêmio, e também aos do castigo. Certo capitão mais antigo tem muitos anos de serviço: dêem-lhe uma fortaleza nas conquistas. Mas se estes anos de serviço assentam sobre um sujeito que os primeiros despojos que tomava na guerra, eram a farda e a ração dos seus próprios soldados, despidos e mortos de fome, que há de fazer em Sofala ou em Mascate? Tal graduado em leis leu com grande aplauso no Paço; porém, em duas judicaturas e uma correição não deu boa conta de si: pois vá degradado para a Índia com uma beca. E se na Beira e Além-Tejo, onde não há diamantes nem rubis, se lhe pegavam as mãos a este doutor, que será na relação de Goa?
Encomendou el-rei D. João, o Terceiro, a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava por todos os modos. A frase parece jocosa em negócio tão sério, mas falou o servo de Deus como fala Deus, que em uma palavra diz tudo."

Padre Antonio Vieira, Sermão do Bom Ladrão, VIII (1655)




um graffiti no Chiado 




quinta-feira, 10 de julho de 2014

Quando a pátria que temos não a temos #6






Sintra sem tempo




A 5/ N 247 



Sábado de manhã,  Gi e Antonio nos vieram buscar. Antonio ao volante, tomamos a A5 rumo a Cascais, depois a N 247 até Azoia. Na Praia do Guincho, uma Ferrari Testarossa nos ultrapassou. No alto do espigão rochoso que se estende ao mar formando o Cabo da Roca, almoçamos no Moinho D. Quixote e conversamos a respeito da crise em Portugal e do europessimismo (ver Adendo ao Colóquio do Moinho). No meio da tarde, estávamos a Sintra. Não nos demoramos muito. Voltamos a Lisboa pelo IC 19.




IC 19


"O IC 19 (Itinerário Complementar), que liga Lisboa a Sintra, é a estrada mais perigosa de Portugal com um recorde de acidentes com vítimas, de acordo com o Relatório Anual da Sinistralidade Rodoviária de 2013.

Segundo o relatório divulgado na página da Internet da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) e citado hoje pelo jornal Correio da Manhã, o IC 19 tem seis "pontos negros", três dos quais com o maior indicador de gravidade dos 58 troços analisados.

Os "pontos negros" designam os lanços de estrada com o máximo de 200 metros de extensão, no qual se registaram, pelo menos, cinco acidentes no ano em análise.

O documento da ANSR indica que os seis 'pontos negros' do IC19 causaram no ano passado três mortos, quatro feridos graves e 51 ligeiros.

De acordo com o relatório, o troço mais grave do IC19 situa-se entre os quilómetros 4,6 e 4,8, junto à curva do Palácio de Queluz.

Neste troço registaram-se seis acidentes com um morto, dois feridos graves e sete ligeiros.


O IC19 é considerado a estrada mais perigosa do país, mas o IP7 é a via com mais "pontos negros" (sete), embora com acidentes menos gravosos."


(A estrada mais perigosa de Portugal, 7 de julho de 2014)




Palácio Nacional de Sintra: as janelas manuelinas


Um acidente gravoso no IC 19


"Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim..."

(Álvaro de Campos)



Rua das Padarias: o Castelo dos Mouros acima e ao fundo


Onde mora o perigo



Por que este poema nos parece um resumo da modernidade?

1. Por colocar em cena um automóvel de marca famosa, ainda em atividade, apesar dos percalços econômicos da General Motors.

2. Por representar a dualidade contraditória do automóvel como meio de satisfazer a liberdade individual de movimento e como cela metálica ambulante que isola e aprisiona o indivíduo.   


3. Por mostrar que, promovida a símbolo, a mercadoria "automóvel" reencanta o mundo daqueles que atribuem ao motorista-proprietário, apêndice reificado da coisa metálica fascinante, a faculdade de ser feliz e de corresponder a um papel principesco no imaginário das moças. Contudo, por guiar carro emprestado, o sujeito está ciente de seu status precário. 


4. Porque o livre ir e vir do sujeito individualista e solitário se dá num espaço esvaziado, que ele tenta fingir onírico.  Sua autonomia é vivida como pura errância. Ele tenta inutilmente fugir da falta de sentido e é acossado pela tentação do suicídio.


5. Porque o poema é justamente a declaração da autoconsciência dolorosa de tudo o que foi referido acima.




Mais uma figura do negativo


O poema é uma encenação niilista da condição moderna. Álvaro de Campos costuma ser apresentado como o heterônimo futurista de Fernando Pessoa, mas  ele só toma parte da modernidade subsumido no modo da negação: o não-ser, a ausência, a insatisfação, a destruição de si, o ressentimento quanto ao existente, o desejo impotente de estilhaçar-se numa miríade de sensações:


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
(A Tabacaria)


"Pensando nisto - ó raiva! pensando nisto - ó fúria!
Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,
Subitamente, tremulamente, extraorbitadamente,
Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,
Do volante vivo da minha imaginação,
Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,
O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.
(...)
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,
Sobre conveses, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, firais!
O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a cair das coisas marítimas"
(Ode Marítima)



"Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!  
Ser completo como uma máquina!  
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!  
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,  
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento  
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões  
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
(...)
Eu podia morrer triturado por um motor  
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.  
Atirem-me para dentro das fornalhas!  
Metam-me debaixo dos comboios!  
Espanquem-me a bordo de navios!  
Masoquismo através de maquinismos!  
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!"
(Ode Triunfal)


Esta subsunção da condição moderna à negatividade parece ter sido feita sob medida para satisfazer a Kulturkritik russo-germânica (Dostoiévski, Nietzsche, Weber, Simmel, Freud, Lukács, Adorno) que constitui a língua franca do pessimismo bem pensante de hoje. Um pessimismo bastante conservador, mas que aparenta ser lúcido e contestatário na medida em que repele a face mais ruidosa e reluzente do Capital, enquanto faz um meneio de cabeça cético diante das promessas do liberalismo político. E nada mais. Apenas o horizonte da crise (1). 

É muito tentador ver em Álvaro de Campos uma figura autenticamente moderna e aplicar-lhe quase mecanicamente os conceitos hauridos da Kulturkritik, mas isso deixaria passar o que mais importa, pois  não é a modernidade em si que Álvaro de Campos representa, mas a imagem negativa que o antimoderno Fernando Pessoa fazia dela no Portugal pobre e socialmente acanhado nas primeiras décadas do século XX, quando procurava ardentemente uma elevação mística da nação, fundada na recusa anti-materialista do industrialismo anglo-saxônico e da revolução bolchevique. 

Na verdade, Álvaro no seu Chevrolet, zanzando à noite pelas curvas da estrada de Sintra, é parente de certo cantor brasileiro que fez muito sucesso com esta canção:


Se você pretende saber quem eu sou
Eu posso lhe dizer
Entre no meu carro na Estrada de Santos
E você vai me conhecer

Você vai pensar que eu
Não gosto nem mesmo de mim
E que na minha idade
Só a velocidade anda junto a mim

Só ando sozinho e no meu caminho
O tempo é cada vez menor
Preciso de ajuda, por favor, me acuda
Eu vivo muito só

Se acaso numa curva
Eu me lembro do meu mundo
Eu piso mais fundo, corrijo num segundo
Não posso parar
(Roberto Carlos e Erasmo Carlos, "As curvas da estrada de Santos", álbum "Roberto Carlos", de 1969)


Se há proximidade entre a lírica da canção popular e a alta cogitação existencial do heterônimo de Pessoa é porque nelas a modernidade só é vivida como projeto autodestrutivo, que orgulhosamente volta as costas para o mundo existente. Em 1969, Roberto Carlos estava tão alheio aos atos institucionais do comando militar que governava o Brasil quanto aos atos anti-institucionais dos outros dois Carlos, Marighella e Lamarca.  O preço dessa consciência existencial - moderna à maneira de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos - é o alheamento abstrato, que deriva facilmente para a lamúria raivosa, para o sonho, induzido ou não pelo ópio, e para a especulação metafísico-social de rédeas soltas, do qual o Ultimatum é exemplo.

Se há quem tome por verdadeiras essas exasperadas caricaturas da modernidade é justamente porque a modernidade abre a possibilidade de ser vivida de maneira caricatural e exasperada. Mas isso é apenas uma das possibilidades de ser moderno (2).



Largo Rainha D. Amélia


Sábado à noite em Lisboa


É preciso lutar contra o consenso russo-alemão, contra esse Pacto Ribbentrop-Molotov metafísico. É preciso reconhecer nele não o diagnóstico de uma doença (metáfora tão ao gosto desses médicos), mas uma ilusão a ser desfeita. Tudo isso, porém, só pensei meses depois (ver a seção final de A claraboia e o holofote #12). Ainda estava anestesiado pela recordação de Álvaro de Campos no seu Chevrolet e de Roberto Carlos descendo as curvas da estrada velha de Santos, como eu fiz tantas vezes com meu pai. 

O colóquio sobre os impasses da União Europeia havia me chateado muito. Dentro do vagão do metro, voltando do Rossio, eu via as alças em que se apoiam os passageiros como pequenas forcas, mas a tristeza se desfez nas garfadas com que devoramos gulosamente o bacalhau à Braz no Laurentina. Na noite nublada, devidamente saciados e elevados pelas taças do Cartuxa de Évora 2009, Ludmila e eu descemos a Antonio Augusto de Aguiar e a Fontes Pereira de Melo até a Praça Marquês de Pombal. 

No dia seguinte, conforme o combinado, Fernando Henrique nos levaria a Mafra, Alcobaça, Batalha e Óbidos, não em um Chevrolet emprestado, mas no Toyota de sua propriedade, como o era o apartamento a Almada, segundo nos relatou com o orgulho de trabalhador que venceu.



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Notas:

(1) Há exatos dois anos, este blog teve início com um texto intitulado Dois Destinos, um exemplo do consenso russo-alemão que agora acredito necessário criticar e superar urgentemente.

(2) Todos os aspectos, mesmo os mais extremos, do que se convencionou chamar de post/hyper/ultra/liquid modernity  já estavam enfaticamente descritos na seção I do Manifesto Comunista como traços essenciais da modernidade capitalista, que viriam a ser dramatizados de modo metafísico-existencial pelo consenso russo-alemão. A novidade que pegou de surpresa muitos filósofos e sociólogos (em geral conservadores) a partir da década de 1950 foi constatar a difusão mundial e a transposição para a esfera do consumo de massa daqueles fenômenos que eram motivo de inquietação de uns poucos pensadores do século XIX e das elites culturais europeias do começo do século XX. "Pós-modernidade" não é, portanto, um nome para a dissolução recente da modernidade, mas sim um conceito que encobre a efetiva continuação do processo dissolvente/construtivo da modernidade capitalista segundo linhas que já eram vislumbradas desde o século XIX.  


Castelo dos Mouros


10 de julho

2012-2014

O Sobrinho de Enesidemo

2 anos

80ª edição