segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A claraboia e o holofote #27






Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




De Lenin a Lukács



Sempre foi mais fácil tentar unir os proletários do mundo do que fazer Marx se entender com Bakunin ou com Lassalle. A cisão e os anátemas recíprocos são elementos inevitáveis da prática da esquerda e constituem sua força vital, sua riqueza e seu nervo exposto. A polêmica suscitada pelo revisionismo de Bernstein entre os socialdemocratas alemães ou o "racha" de 1903 entre bolcheviques e mencheviques não foram simples desperdício de uma energia que seria melhor investida nas tarefas políticas imediatas. Foram debates preciosos justamente por definirem que tarefas eram essas e quais as opções políticas para realizá-las. Há, porém, cisões que, para além das disputas subjetivas, dividem objetivamente os grupos sobre a linha mesma das fraturas históricas. É o caso da dissidência dos socialdemocratas de esquerda, desiludidos com a traição ao internacionalismo operário cometida em 4 de agosto de 1914, quando a bancada do SPD no Reichstag votou unanimemente pela concessão de créditos de guerra ao Império alemão. Os dois partidos que emergiram dessa dissidência: o Partido Comunista Russo, de Lênin, e o Partido Comunista Alemão, de Liebknecht e Rosa Luxemburgo, não eram simples ramificações da socialdemocracia. Esses partidos constituíam um fenômeno novo, que redefiniu o desenho político da esquerda até o final do século XX. No entanto, embora novos, os dois partidos se proclamavam herdeiros do "partido comunista" da seção segunda do Manifesto, um partido que jamais foi fundado e cujas linhas gerais extremamente vagas exigiam um considerável trabalho de exegese e de imaginação teórica (ver A claraboia e o holofote #14).

Essa recuperação do Manifesto Comunista setenta anos depois de sua publicação é que deu caso ao longo excurso pela história do marxismo que há um ano faço (ver A claraboia e o holofote #15), que tanto deve impacientar os que creem que Marx e os grandes marxistas falam da história a partir de um balcão situado fora dela. 


Nessas questões, não se pode prescindir da cautela mais simples que é distinguir entre a continuidade das reimpressões e releituras de um texto e a descontinuidade das interpretações. O Manifesto foi um texto muito acessível na época da Segunda Internacional: vendido em brochuras baratas, era lido por militantes e operários dispostos a se iniciarem na obra de Marx. Entretanto, para os teóricos do SPD, como Kautsky, o Manifesto se tornara um panfleto datado, que contrapunha um proletariado miserável a uma burguesia revolucionária, situação que fora duplamente superada, seja pelas conquistas da classe operária do começo do século XX, seja pelo refluxo das revoluções burguesas na Europa ocidental. Mesmo assim, em sociedades atrasadas como a Rússia czarista, em que a burguesia ainda tinha tarefas revolucionárias a realizar, o panfleto de Marx poderia continuar a orientar os militantes (ver A claraboia e o holofote #26). 


Cartilha marxista para os neófitos ou venerável documento da infância do movimento operário para os eruditos, o Manifesto nos tempos da Segunda Internacional se resumia à sua seção primeira. Era ali que se procurava o endosso do patriarca Marx a uma crença positivista no progresso que tudo arrebata e tudo transforma, numa espiral que, partindo da Europa, alcançava as regiões mais atrasadas do mundo. Era ali, na seção primeira, que se via confirmado o deslizar mecânico da história, como se as classes, os povos, as sociedades e as nações estivessem sobre uma esteira rolante que isentava os socialdemocratas de qualquer dever ou iniciativa de fazer a história. Bernstein ou Kautsky podiam discordar quanto ao destino último (reforma ou revolução), mas não punham em dúvida o caráter automático do movimento histórico.


Essa era a interpretação com a qual a esquerda socialdemocrata dissidente desde 1914 tinha que romper. Nesse momento, a radical seção segunda do Manifesto voltou a despertar interesse como marco de um caminho que fora abandonado pela socialdemocracia, desde o início inclinada ao ecletismo e à rendição aos poderes do Estado, como Marx já apontara furiosamente na sua Crítica ao Programa de Gotha (ver A claraboia e o holofote # 23 e o Adendo ilustrativo)

Talvez pareça exagerado aos leitores, mas eu estou disposto a sustentar que, no momento em que o Manifesto foi recuperado como texto vivo pela dissidência esquerdista da socialdemocracia, a grande questão teórico-prática passou a ser articular a seção primeira do Manifesto (lida como uma filosofia da história subjacente a Das Kapital) com a seção segunda (em que se esboça o papel revolucionário do partido comunista à frente do proletariado revolucionário). Essa é a tarefa que Lenin, Rosa Luxemburgo e Lukács tentaram empreender do modo mais obstinado e violento, pondo em risco suas próprias vidas e a de muitos outros, numa aposta radical que não se via desde os tempos de Auguste Blanqui. 


Eis o que quero mostrar nos próximos capítulos de meu folhetim filosófico.