domingo, 31 de maio de 2015

A claraboia e o holofote #29 (II)








Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



Rosa Luxemburg



“Escrito está: ‘Era no início o Verbo!’
Começo apenas, e já me exacerbo!
Como hei de ao verbo dar tão alto apreço?
De outra interpretação careço;
Se o espírito me deixa esclarecido,
Escrito está: No início era o Sentido!
Pesa a linha inicial com calma plena,
Não se apresse a tua pena!
É o sentido então, que tudo opera e cria?
Deverá opor! No início era a Energia!
Mas, já, enquanto assim o retifico,
Diz-me algo que tampouco nisso fico.
Do espírito me vale a direção,
E escrevo em paz: Era no princípio a Ação!”
(Goethe, Fausto)


“Exercendo o poder, a massa deve aprender a exercer o poder. Não há nenhum outro meio de lhe ensinar isso. Felizmente, foi-se o tempo em que se tratava de ensinar o socialismo ao proletariado. (...) Não, a escola socialista dos operários não precisa de nada disso. Eles são educados quando passam à ação. No princípio era a ação, é aqui a divisa (...)”
(Rosa Luxemburg, Congresso de Fundação do Partido Comunista Alemão)




In principio erat Verbum


É preciso provisoriamente reestabelecer os direitos de João Evangelista contra as incursões de Fausto. Comecemos então pelas palavras de Rosa:

O socialismo é nesta hora a única tábua de salvação da humanidade. Sobre as muralhas da sociedade capitalista que desmoronam, brilha, em letras de fogo, a advertência do Manifesto Comunista: Socialismo ou queda na barbárie!” (O que quer a Liga Spartakus?)

A prosa tem vigor, mas o imaginário é compósito e disparatado. Há um naufrágio, muralhas que caem, inscrições fulgurantes. Onde estamos? Na Balsa do Medusa? No capítulo 6 de Josué ou no capítulo 5 de Daniel? E que advertência é essa que não se encontra em nenhuma parte do Manifesto Comunista?

É evidente quão longe estamos da niaiserie alemã de Kautsky, o mestre-escola, e da secura militar de Vladimir Ilitch, o general. Mas teríamos voltado à boa fonte? Teríamos voltado àquela energia de espírito livre que atravessa o Manifesto? Não exatamente. O Manifesto Comunista era a proclamação do mundo novo (o da burguesia) e o anúncio do mundo por vir (o da extinção da luta de classes). Setenta anos depois, falando entre escombros e esperanças em vias de dissiparem-se, Rosa compôs uma divisa a partir de retalhos do Manifesto: 

"Socialismo ou queda na barbárie!”

Estranhamente, não é o comunismo, mas o socialismo que Rosa opõe à “barbárie”, palavra que recebe um peso e uma tensão ausentes no Manifesto, no qual bárbaros são os povos e as nações que ainda não foram arrastadas pelo vórtice da civilização burguesa:

"Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga à capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de ruína total, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrangendo-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.

A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou os grandes centros urbanos, aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à dos campos e, com isso, arrancou uma grande parte da população da idiotia da vida rural. Do mesmo modo que subordinou o campo à cidade, os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados, subordina os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente.” (Manifesto Comunista, p. 44)

Para Marx e Engels em 1847, a barbárie estava em tudo o que se opunha à espiral ascendente do Ocidente, até mesmo as crises que sacudiam de tempos em tempos o modo de produção “burguês”: 

Basta mencionar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só a uma grande massa de produtos fabricados, mas também uma grande parte das próprias forças produtivas já criadas. (...) A sociedade vê-se subitamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea.” (Manifesto Comunista, p. 45)

Todavia, depois da carnificina de 14-18, tornou-se difícil, tanto à direita quanto à esquerda, acreditar que a sociedade burguesa europeia era ainda a portadora da civilização e das luzes contra a barbárie.  Face às razias imperialistas, à derrocada da social-democracia alemã e aos milhões de vítimas da guerra, a afirmação do Manifesto segundo a qual a luta de classes sempre termina ou com a transformação revolucionária da sociedade ou com a destruição das classes beligerantes passou a ter um sentido novo e crucial para Rosa Luxemburg.  A instauração de uma sociedade socialista, por meio da luta tenaz de auto-emancipação do proletariado, seria o único caminho para escapar das formas agressivas e brutais que o capitalismo assumira na sua fase imperialista.  "Socialismo ou queda na barbárie!” Era da salvação da humanidade que Rosa Luxemburgo falava. A sombria nuvem suspensa sobre a espécie humana só poderia ser afastada pela forma mais radical de democracia. 

Nada disso, é claro, estava nem poderia estar no Manifesto Comunista, texto luminoso e fundador. Foi Rosa quem viu o pesadelo e entreviu a sua saída. Na falta de uma elaboração teórica que a militância constante não lhe permitiu, Rosa Luxemburg apelou para as velhas formas imagéticas dos apocalipses da tradição judaico-cristã, em sua insistência no colapso das estruturas existentes.

Foi essa mulher, judia, polonesa e marxista, que seria brutalmente assassinada pelas milícias ultradireitistas sob o olhar conivente das lideranças social-democratas, e que, já morta, teria sua obra renegada pelos burocratas bolcheviques e seu nome espezinhado pelos esbirros de Stálin, foi essa mulher quem primeiro viu a face do inimigo.



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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.  


Die Befreiung der Arbeiterklasse muß das Werk der Arbeiterklasse selbst sein.





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