quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A claraboia e o holofote #29 (IX)









Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



 


Rosa Luxemburg


A  Revolução Russa (1918)




Excertos



I

A Revolução Russa é o fato mais marcante da guerra mundial. (...) O alcance prodigioso obtido pela revolução na Rússia, seu efeito profundo que abala todas as relações de classe, revelando o conjunto dos problemas econômicos e sociais, fazendo-a avançar com a fatalidade de sua lógica interna, do primeiro estágio da república burguesa pra fases novas –não tendo sido a queda do czarismo senão um pequeno episódio, quase uma ninharia- tudo isso mostra claramente que a libertação da Rússia não foi obra da guerra nem da derrota militar do czarismo, não foi mérito das ‘baionetas alemãs em punhos alemães’, como prometia o editorial da Neue Zeit dirigida por Kautsky, mas que ela possuía raízes profundas no próprio país e atingira a plena maturidade interna. (...)
Porém, para todo observador que reflita, esse desenvolvimento é uma prova flagrante contra a teoria doutrinária que Kautsky compartilha com o partido dos socialistas governamentais, segundo a qual a Rússia, país economicamente atrasado, essencialmente agrário, não estaria maduro para a revolução social nem para uma ditadura do proletariado. Essa teoria que só admite como possível na Rússia uma revolução burguesa – concepção de que resulta igualmente a tática da coalização dos socialistas com o liberalismo burguês na Rússia – é, ao mesmo tempo, a da ala oportunista do movimento operário russo, os chamados mencheviques, sob a experimentada direção de Axelrod e Dan. Tanto os oportunistas russos quanto os alemães estão totalmente de acordo com os socialistas governamentais alemães nessa concepção fundamental da Revolução Russa, da qual decorre naturalmente a tomada de posição em questões de detalhes da tática. Na opinião dos três, a Revolução Russa deveria ter parado no estágio da derrubada do czarismo, nobre tarefa que, na mitologia da social-democracia alemã, os estrategistas militares do imperialismo haviam estabelecido. Se foi além, se estabeleceu como tarefa a ditadura do proletariado, isso aconteceu, segundo essa doutrina, por simples erro da ala radical do movimento operário russo, os bolcheviques; e todas as intempéries que a revolução enfrentou no seu desenvolvimento posterior, todas as confusões de que foi vítima, nada mais são que o simples resultado desse erro fatal. Teoricamente, essa doutrina, apresentada tanto por Vorwärts de Stampfer quanto por Kautsky como fruto do ‘pensamento marxista’, chega à descoberta ‘marxista’ original de que a transformação socialista é assunto nacional, por assim dizer doméstico, de cada Estado moderno em particular. Nas brumas desse esquema abstrato, um Kautsky sabe, de maneira natural, descrever com minúcias as imbricações econômicas mundiais do capitalismo, que fazem com que todos os países modernos sejam organicamente interdependentes.
A revolução na Rússia – fruto do desenvolvimento internacional e da questão agrária – não pode ser resolvido nos limites da sociedade burguesa.
(...)
É claro que só uma crítica aprofundada e refletida, não uma apologia acrítica, será capaz de recolher esses tesouros de experiências e ensinamentos. De fato, seria loucura imaginar que o primeiro experimento histórico mundial de ditadura da classe operária, realizado nas mais difíceis condições – em plena conflagração mundial e em pleno caos provocado pelo genocídio imperialista, preso na armadilha de ferro da potência militar mais reacionária da Europa, em face da completa omissão do proletariado internacional -, que num experimento de ditadura operária em condições tão anormais, tudo o que se fez ou deixou de fazer na Rússia alcançasse o cúmulo da perfeição. Ao contrário, os conceitos elementares da política socialista e a compreensão dos pressupostos históricos necessários à realização dessa política obrigam a reconhecer que, em condições tão fatais, nem o mais gigantesco idealismo nem a mais inabalável energia revolucionária seriam capazes de realizar a democracia e o socialismo, mas apenas rudimentos frágeis e caricaturais de ambos.
Encarar isso com clareza, em todas as suas implicações e consequências profundas, é, incontestavelmente, o dever elementar dos socialistas de todos os países; pois somente a partir dessa compreensão amarga é que se poderá medir toda a extensão da responsabilidade específica do proletariado internacional no que se refere ao destino da Revolução Russa. Aliás, é apenas por esse meio que se verá a importância decisiva de uma ação internacional conjunta na revolução proletária – condição fundamental, sem a qual a maior habilidade e os mais sublimes sacrifícios do proletariado de um único país enredam-se inevitavelmente numa confusão de contradições e erros.
(...)
Seria igualmente errado temer que um exame crítico dos caminhos seguidos até aqui pela Revolução Russa possa abalar perigosamente o prestígio e o exemplo fascinante do proletariado russo, o único capaz de vencer a inércia fatal das massas alemãs. Nada mais falso. O despertar da combatividade revolucionária da classe operária alemã não pode provir, como que por encanto, de qualquer operação de sugestão praticada segundo o espírito dos métodos de tutela da social-democracia alemã – que Deus a tenha -, que incitaria a massa a crer cegamente numa autoridade imaculada, que a das próprias ‘instâncias’, quer a do ‘exemplo russo’. A capacidade de o proletário alemão realizar ações históricas não pode nascer da fabricação de um entusiasmo revolucionário acrítico; ao contrário, só nascerá da compreensão da terrível gravidade, de toda a complexidade das tarefas a cumprir, da maturidade política e da autonomia intelectual, da capacidade de julgamento crítico das massas, sistematicamente abafadas ao longo de décadas, sob os mais diversos pretextos pela social-democracia alemã.

II

O primeiro período da Revolução Russa, desde a sua explosão em março até a revolução de outubro, corresponde exatamente, em seu curso geral, ao esquema evolutivo das grandes revoluções inglesa e francesa. É o desenvolvimento típico de todo primeiro grande conflito generalizado das forças revolucionárias engendradas no seio da sociedade burguesa, contra as amarras da velha sociedade.

Ela progride naturalmente em linha ascendente: moderados no início, os objetivos radicalizam-se cada vez mais e, paralelamente, passa-se da coalizão de classes e partidos à dominação exclusiva do partido mais radical.
(...)
Desde o primeiro momento, a força motriz da revolução havia sido a massa do proletariado urbano. Mas sua reivindicações não se esgotavam com a democracia política; ao contrário, dirigiam-se para a questão candente da política internacional: a paz imediata. Ao mesmo tempo, a revolução se apoiava na massa do exército, que fazia a mesma reivindicação de paz imediata, e na massa dos camponeses, que punha em primeiro plano a questão agrária, pivô da revolução desde 1905. Paz imediata e terra - esses dois objetivos implicavam a cisão no interior da falange revolucionária. A reivindicação de paz imediata estava em contradição absoluta com a tendência imperialista da burguesia liberal, cujo porta-voz era Miliukov; a questão agrária era, no início, um espantalho para a outra ala da burguesia, a nobreza proprietária de terras, mas, em seguida, foi considerada um atentado à sacrossanta propriedade privada em geral, tornando-se um ponto sensível para o conjunto das classes burguesas.

Assim, no dia seguinte ao da primeira vitória da revolução, começou em seu seio uma luta interna em torno das duas questões principais: a paz e a questão agrária. A burguesia liberal adotou uma tática diversionista e evasiva. As massas trabalhadoras, o exército e os camponeses pressionavam cada vez mais violentamente. Não há dúvida de que o próprio destino da democracia política da República estava ligado à questão da paz e à questão agrária. As classes burguesas que, submersas pela primeira vaga tempestuosa da revolução, se tinham deixado arrastar até a forma do Estado republicano, começaram imediatamente a procurar pontos de apoio na retaguarda e a organizar em segredo a contrarrevolução.
(...)
Nessa situação, coube à tendência bolchevique o mérito histórico de ter proclamado e seguido, desde o início, com uma coerência férrea, a única tática que podia salvar a democracia e fazer avançar a revolução. Todo o poder exclusivamente nas mãos das massas trabalhadoras e camponesas, nas mãos dos sovietes - essa era de fato a única saída para as dificuldades em que a revolução havia caído, o golpe de espada que cortava o nó górdio -, tirava a revolução do impasse e deixava o campo livre para que ela continuasse a se desenvolver sem entraves.

O partido de Lênin foi, assim, o único na Rússia que compreendeu, nesse primeiro período, os verdadeiros interesses da revolução. foi o elemento que a fez avançar e, nesse sentido, o único partido que praticou uma política realmente socialista.
(...)
Com isso, a Revolução Russa apenas confirmou a lição fundamental de toda grande revolução, cuja lei vital é a seguinte: ela precisa avançar muito rápida e decididamente, abater com mão de ferro todos os obstáculos e pôr seus objetivos sempre mais longe, ou será logo jogada aquém de seu frágil ponto de partida e esmagda pela contrarrevolução. Parar, marcar passo, contentar-se com o primeiro objetivo alcançado, isso não existe numa revolução. E quem quiser transpor para a tática revolucionária essa sabedoria caseira das guerrinhas parlamentares mostra apenas que a psicologia, que a própria lei vital da revolução lhe é tão estranha quanto toda experiência histórica, que permanece um livro fechado a sete chaves.
(...)
Kautsky e seus correlegionários russos, que desejavam que a Revolução Russa conservasse o 'caráter burguês' de sua primeira fase, são a exata contrapartida dos liberais alemães e ingleses do século passado que distinguiam assim os dois célebres períodos da grande Revolução Francesa> a 'boa' revolução da primeira fase, a fase girondina, e a 'má', após a tomada do poder pelos jacobinos. Essa concepção liberal, superficial da história, não precisava naturalmente compreender que, sem a tomada do poder por esses jacobinos 'sem medida', até mesmo as tímidas meias conquistas da fase girondina logo teriam sido soterradas sob as ruínas da revolução, e que a alternativa real à ditadura jacobina, tal como posta pela marcha inexorável do desenvolvimento histórico no ano de 1793, não era a democracia 'moderada', e sim a restauração dos Bourbon! Em nenhuma revolução o 'justo meio' pode ser mantido, pois sua lei natural exige decisões rápidas: ou a locomotiva subirá a encosta histórica a todo vapor até o cume, ou, arrastada pelo próprio peso, voltará à planície de onde partiu, arrastando consigo para o abismo os que, sem esperança de salvação, com suas fracas forças, queriam detê-la no meio do caminho.
(...)
Os bolcheviques resolveram dessa forma a célebre questão da 'maioria do povo', pesadelo que sempre oprimiu os social-democratas alemães. Pupilos incorrigíveis do cretinismo parlamentar, eles transpõem simplesmente para a revolução a sabedoria caseira do jardim da infância parlamentar: para fazer alguma coisa, é preciso ter antes a maioria. Portanto, também na revolução, conquistemos primeiro a 'maioria'. Mas a dialética real das revoluções inverte essa sabedoria de toupeira parlamentar: o caminho não leva à tática revolucionária pela maioria; ele leva à maioria pela tática revolucionária. Só um partido que saiba dirigir, isto é,  fazer avançar, ganha seguidores na tempestade. A resolução com que Lênin e seus companheiros lançaram no momento decisivo a única palavra de ordem mobilizadora - todo o poder ao proletariado e ao campesinato! - fez de uma minoria perseguida, caluniada, 'ilegal', cujos dirigentes, como Marat, preciavam esconder-se em caves, quase de um dia para outro, a dona absoluta da situação.
Os bolcheviques também estabeleceram imediatamente, como objetivo da tomada de poder, o mais avançado e completo programa revolucionário: não se tratava de garantir a democracia burguesa, e sim a ditadura do proletariado, tendo como fim a realização do socialismo. Eles adquiram assim o imperecível mérito histórico de terem proclamado, pela primeira vez, os objetivos finais do socialismo como programa imediato da prática política.


III

A palavra de ordem lançada pelos bolcheviques - apropriação imediata e repartição das terras pelos camponeses - (...) não só não é uma medida socialista como bloqueia o caminho que para lá conduz, acumulando dificuldades insuperáveis para a reestruturação das condições agrárias em sentido socialista.

A tomada das terras pelos camponeses conforme a sumária e lapidar palavra de ordem de Lênin a seus amigos - Vão e tomem as terras! - levou simplesmente a uma passagem brusca e caótica da grande propriedade fundiária à propriedade fundiária camponesa. Não foi criada a propriedade social, e sim uma nova propriedade privada: dividiu-se a grande propriedade em médias e pequenas propriedades, a grande exploração relativamente avançada em pequenas explorações primitivas que, no plano técnico, trabalham com os meios da época dos faraós. E mais: essa medida e a maneira caótica, puramente arbitrária, como foi aplicada não eliminaram as diferenças de propriedade no campo, mas as agravaram. Embora os bolcheviques recomendassem ao campesinato formar comitês de camponeses, a fim de fazer da apropriação das terras da nobreza uma espécie de ação coletiva, é claro que esse conselho genérico não podia mudar nada no tocante à prática efetiva e à real correlação de forças no campo. Com ou sem comitês, os camponeses ricos e os usurários, que formavam a burguesia rural e que de fato detinham o poder local em toda a aldeia russa,  foram certamente os principais beneficiários da revolução agrária. Mesmo sem ver, é evidente para todo mundo que, no fim da partilha das terras, as desigualdades econômicas e sociais no seio do campesinato não foram eliminadas e sim exacerbadas, assim como acabaram agravados os antagonismos de classe. Mas esse deslocamento de forças ocorreu, incontestavelmente, em detrimento dos interesses proletários e socialistas.

Discurso de Lênin sobre a centralização necessária na indústria, a nacionalização dos bancos, do comércio e da indústria. Por que não das terras? Aqui, ao contrário, descentralização e propriedade privada.
(...)
Agora, após a 'tomada de posse', a coletivização socialista da agricultura tem um novo inimigo, uma massa de camponeses proprietários que aumentou, se fortaleceu enormemente e que defenderá com unhas e dentes, contra todo  atentado socialista, sua propriedade recentemente adquirida.

Os bolcheviques são em parte culpados pela transformação da derrota militar no colapso e na desagregação da Rússia. Eles próprios agravaram de maneira considerável as dificuldades objetivas da situação com uma palavra de ordem, que puseram em primeiro plano na sua política, o assim chamado direito à autodeterminação dos povos, ou o que na realidade se escondia por trás desse palavreado: a desagregação do Estado russo.
(...)
Em primeiro lugar, o que choca na obstinação e na intransigência com que Lênin e seus companheiros se agarraram a essa palavra de ordem é o fato de ela estar em flagrante contradição, não só com seu anterior pronunciado centralismo político, mas também com sua atitude perante os outros princípios democráticos. Enquanto manifestava um desprezo glacial pela Assembleia Constituinte, pelo sufrágio universal, pela liberdade de imprensa e de reunião, em suma, por todo o aparato das liberdades democráticas fundamentais das massas populares, cujo conjunto constituía o 'direito à autodeterminação' na própria Rússia, eles tratavam o direito das nações à autodeterminação como a joia da política democrática, por amor da qual era preciso calar todas as considerações práticas da crítica realista. Enquanto não se tinham deixado impressionar minimamente pelo voto popular para a Assembleia Constituinte da Rússia - voto popular fundado no sufrágio mais democrático do mundo, dado na plena liberdade de uma república popular - e, após austeras considerações críticas, simplesmente declararam nulo seu resultado, em Brest defenderam o 'voto popular' das nações não russas para decidir fazer, ou não, parte do Estado Russo, apresentando-o como verdadeiro paládio da liberdade e da democracia, a quinta-essência inalterada da vontade popular, a instância suprema, a instância decisiva na questão do destino político das nações.

Essa contradição flagrante é tanto mais incompreensível que as formas democráticas da vida política em todos os países, como veremos em seguida, constituem de fato os mais preciosos e indispensáveis fundamentos da política socialista, ao passo que o ilustre 'direito à autodeterminação' não passa de oca fraseologia pequeno-burguesa, disparate.
(...)
Os bolcheviques tiveram que aprender, em seu detrimento e no da revolução, que, sob a dominação do capitalismo, não existe autodeterminação da 'nação', que, numa sociedade de classes, cada classe da nação aspira a se 'autodeterminar' de um modo diferente, que, para as classes burguesas, as considerações sobre a liberdade nacional vêm muito depois das considerações sobre a dominação de classe. A burguesia finlandesa, assim como a pequena burguesia ucraniana, pôs-se totalmente de acordo ao preferir a dominação alemã à liberdade nacional, caso esta tivesse de estar ligada aos perigos do 'bolchevismo'.
(...)
Como é possível que em todos esses países a contrarrevolução triunfe de maneira súbita? Foi precisamente separando-o da Rússia que o movimento nacionalista paralisou o proletariado e o entregou à burguesia nacional dos países limítrofes.
(...)
A melhor prova é a Ucrânia, que deveria representar um papel tão fatal nos destinos da Revolução Russa. O nacionalismo ucraniano na Rússia era completamente diferente do tcheco, do polonês ou do finlandês, nada mais que um simples capricho, uma frivolidade de algumas dúzias de intelectuais pequeno-burgueses, sem raízes na situação econômica, política ou intelectual do país, sem qualquer tradição histórica, pois a Ucrânia nunca formou um Estado ou uma nação, não tinha nenhuma cultura nacional, exceto os poemas românticos e reacionários de Chevtchenko. (...) E com sua agitação doutrinária sobre o 'direito à autodeterminação', Lênin e seus companheiros inflaram artificialmente essa farsa ridícula de alguns professores e estudantes universitários, transformando-a num fator político. 


IV

É fato que Lênin e seus companheiros, até a vitória de outubro, exigiam com estardalhaço a convocação de uma Assembleia Constituinte, e que justamente a política de contemporização do governo Kerenski nesse ponto constituía uma das acusações dos bolcheviques contra esse governo, dando-lhe motivos para os mais violentos ataques. (...) E agora, depois dessas declarações, o primeiro passo de Lênin após a Revolução de Outubro foi dispersar essa mesma Assembleia Constituinte à qual a revolução deveria conduzir.

Com base nas insuficiências específicas da Assembleia Constituinte reunida em outubro, Trotsky conclui que toda Assembleia Constituinte é supérflua e generaliza mesmo essas insuficiências, proclamando a inutilidade, durante a revolução, de toda representação popular de eleições populares gerais.

'Graças à luta aberta e direta pelo poder governamental, as massas trabalhadoras acumulam em muito pouco tempo uma experiência política considerável e sobem rapidamente, em seu desenvolvimento a um nível mais elevado. O pesado mecanismo das instituições democráticas segue tanto mais dificilmente esse desenvolvimento, quanto maior for o país e mais imperfeito seu aparato técnico'. (in Trotsky, Da revolução de Outubro ao tratado de paz de Brest)

Pode-se objetar, antes de tudo, que essa apreciação das instituições representativas exprime uma concepção um tanto esquemática e rígida, que contradiz expressamente a experiência histórica de todas as épocas revolucionárias.
(...)
Tudo isso mostra que o 'pesado mecanismo das instituições democráticas' encontra um corretivo exatamente no movimento vivo e na pressão constante da massa. E quanto mais democrática a instituição, quanto mais viva e forte a pulsação da vida política da massa, tanto mais imediata e precisa é a influência que ela exerce - apesar das etiquetas partidárias rígidas, das listas eleitorais obsoletas etc. É claro que toda instituição democrática tem seus limites e lacunas, o que aliás, compartilha com todas as instituições humanas. Só que o remédio encontrado por Lênin e Trotsky - suprimir a democracia em geral - é ainda pior que o mal que devia impedir; ele obstrui a própria fonte viva a partir da qual podem ser corrigidas todas as insuficiências congênitas das instituições sociais: a vida política ativa, sem entraves, enérgica das mais largas massas populares.
(...)
Quando após a Revolução de Outubro, toda a camada média, a intelligentsia burguesa e pequeno-burguesa boicotaram durante meses o governo soviético, paralisando as estradas de ferro, os correios, o telégrafo, as escolas e o aparelho administrativo, insurgindo-se assim contra o governo dos trabalhadores, impunham-se todas as medidas de pressão para quebrar com mão de ferro a resistência contra ele: privação dos direitos políticos, dos meios de subsistência etc. Dessa forma, se exprimia com efeito a ditadura socialista, que não deve recuar perante nenhum meio coercitivo para impor ou impedir certas medidas no interesse de todos. Em contrapartida, um direito de voto [exclusivo àqueles que vivem do próprio trabalho] que priva vastas camadas da sociedade de direitos, que as exclui politicamente do quadro social, sem ser capaz, economicamente, de criar um lugar para elas no interior desse quadro; uma privação de direitos que não é uma medida concreta visando a um fim concreto, mas uma uma regra geral de efeito duradouro, não constitui uma necessidade da ditadura e sim uma improvisação incapaz de sobreviver. 
(...)
As tarefas gigantescas que os bolcheviques enfrentaram, com coragem e determinação, exigiam precisamente a mais intensiva formação política das massas e acúmulo de experiências... Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido - por mais numerosos que sejam -, não é liberdade. Liberdade é sempre liberdade de quem pensa de modo diferente. Não por fanatismo pela 'justiça', mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a 'liberdade' se torna privilégio.
(...)
A prática do socialismo exige uma transformação completa no espírito das massas, degradadas por séculos de dominação da classe burguesa. Instintos sociais em vez de instintos egoístas; iniciativa das massas em vez de inércia; idealismo, que faz superar todos os sofrimentos etc. Ninguém sabe disso melhor, nem descreve com mais precisão, nem repete com mais obstinação do que Lênin. Só que ele se engana completamente quanto aos meios. Decretos, poder ditatorial dos contramestres, punições draconianas, domínio do terror, tudo isso são paliativos. O único caminho que leva ao renascimento é a própria escola da vida pública, a mais ampla e ilimitada democracia, opinião pública. É justamente o domínio do terror que desmoraliza. 
(...)
O erro fundamental da teoria de Lênin-Trotsky consiste precisamente em opor, tal como Kautsky, a ditadura à democracia. 'Ditadura ou democracia', assim é posta a questão, tanto pelos bolcheviques quanto por Kautsky. Este se decide naturalmente pela democracia, isto é, pela democracia burguesa, visto que é a alternativa que propõe à transformação socialista.  Em contrapartida, Lênin-Trotsky se decidem pela ditadura em oposição à democracia e, assim, pela ditadura de um punhado de pessoas, isto é, pela ditadura burguesa. São dois polos opostos, ambos igualmente afastados da verdadeira política socialista. Quando o proletariado toma o poder (...) tem o dever e a obrigação de tomar imediatamente medidas socialistas da mais maneira mais enérgica, mais inexorável, mais dura, por conseguinte, exercer a ditadura, mas a ditadura de classe, não a de um partido ou de uma claque. (...) Nunca fomos idólatras da democracia formal só pode significar que sempre fizemos distinção entre o núcleo social e a forma política da democracia burguesa; que sempre desvendamos o áspero núcleo da desigualdade e da servidão sociais escondido sob o doce invólucro da igualdade e da liberdade formais - não para rejeitá-las, mas para incitar a classe trabalhadora a não se contentar com o invólucro, incitá-la a conquistar o poder político para preenchê-lo com um conteúdo social novo. A tarefa histórica do proletariado, quando toma o poder, consiste em instaurar a democracia socialista no lugar da democracia burguesa, e não em suprimir a democracia. (...) A democracia socialista começa com a destruição da dominação de classe e a construção do socialismo. Ela começa no momento da conquista do poder pelo partido socialista. Ela nada mais é que a ditadura do proletariado.
(...)
Os bolcheviques procederiam também dessa maneira se não sofressem a terrível pressão da guerra mundial, da ocupação alemã e de todas as dificuldades anormais daí decorrentes, dificuldades que obrigatoriamente desfiguram qualquer política socialista, mesmo impregnada das melhores intenções e dos mais belos princípios. (...) O perigo começa quando querem fazer da necessidade virtude,  fixar em todos os pontos da teoria uma tática que lhes foi imposta por essas condições fatais e recomendar ao proletariado internacional imitá-la como modelo de tática socialista.
(...)
O que permanece como mérito histórico imperecível [dos bolcheviques] é que, conquistando o poder político e colocando o problema prático da realização do socialismo, abriram caminho ao proletariado internacional e fizeram progredir consideravelmente, no mundo inteiro, o conflito entre capital e trabalho. Na Rússia, o problema só podia ser colocado. Ele não podia ser resolvido na Rússia, ele só podia ser resolvido internacionalmente. E, nesse sentido, o futuro pertence por toda parte ao 'bolchevismo'.

(A Revolução Russa in Textos Escolhidos, volume II, pp 174-212)
  
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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.  


Die Befreiung der Arbeiterklasse muß das Werk der Arbeiterklasse selbst sein.





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