terça-feira, 17 de novembro de 2015

Y somos desganados y argentinos en el espejo #1








Terra do Fogo



I



Os sul-americanos que vivem debaixo do Trópico de Capricórnio acreditam que é lá que o continente acaba: naquele ponto em que os Andes fazem a sua última arremetida antes de mergulhar no oceano, deixando à vista - como a barbatana dorsal de algum célebre monstro marinho- um mosaico de ilhas recortadas de baías, fiordes e vales profundos cobertos de florestas escuras que desaparecem pouco antes da alva linha glacial das montanhas íngremes. Depois do Cabo Horn, vêm a vastidão das águas, a passagem descoberta por Francis Drake e a extensa frialdade antártica.

Contudo, façamos um experimento mental. Imaginemos que o Novo Mundo brotasse daquela geografia estilhaçada num espetáculo de orogênese explícita, de cosmogonia em andamento. Nessa fantasia de eclosão da América nascitura, elevaríamos, num ato de justiça poética, o belo nome Terra do Fogo ao muito que ele deveria ser, a designação de um lugar mítico primordial, ao invés do pouco que ele é, um exemplo banal da impropriedade toponímica dos navegantes quinhentistas, vezeiros em espalhar seus equívocos pelo globo.

O direito a esse experimento mental, a essa cosmogonia fantástica é o único que me assiste. É ele que sustenta minha reivindicação de fazer da Terra do Fogo o ponto de partida de uma jornada através de meu continente. No entanto, embora eu seja um bicho geográfico, sou avesso às durações demasiado longas da geologia e, nas minhas preces, costumo pedir ao Altíssimo o conforto da história em sua escala modesta e humana. Necessito de datas e nomes. Necessito sobretudo de precursores, aqueles que minha imaginação evoca obsessivamente. São eles que dão a medida do caminho que posso percorrer porque a extensão de uma viagem nunca é maior do que o perímetro de nossas obsessões. Decidi então navegar rumo à Finisterra austral no brigue britânico comandado pelo capitão Robert FitzRoy. O jovem naturalista Charles Darwin viaja conosco.

Ao contornarmos a Ilha Navarino vindos do lado atlântico, chegamos ao gargalo da passagem Murray, que se abre subitamente para o Canal de Beagle no seu ponto mais largo: um grande anfiteatro desenhado, ou antes talhado, por algum artista supremo à toa nesses confins. No lado oposto – o da Ilha Grande da Terra do Fogo – a cordilheira de topos nevados, a despeito do verão meridional, parece uma muralha levantada por titãs acintosos com o único intuito de defender a baía generosa e quieta junto à qual se aninhará a cidade futura, essa Ushuaia turística e duty free na qual Ludmila, Ivan, Bia e eu colocaremos nossos pés no dia 12 de janeiro de 2014, vindos da imensa urbs brasileira que jaz sob o Trópico de Capricórnio.

Não tenho pressa, porém. Os passeios de Land Rover com guias locais pagos em dólares podem esperarAinda estou com meus precursores a bordo do Beagle a navegar pelo canal no verão de 1833, espantados com a variedade da vida, mas inquietos com os grandes rebanhos de nuvens que, num átimo, percorrem todos os tons entre o azul e o chumbo nesses céus fustigados pelo frio que não cessa de soprar do extremo Sul.  













































































E. Lucas Bridges, Uttermost Part of the Earth, Dover, New York 1988 | Arnoldo Canclini, Así nació Ushuaia, Editorial Dunken, Buenos Aires, 2006 | Anne Chapman, Darwin en Tierra del Fuego, Emecé, Buenos Aires, 2009 | Rita de Cássia Novais e Silva Daniel, Urbanização de Ushuaia: do estigma da prisão à Ilha da Fantasia, dissertação de mestrado, 2010 | Charles Darwin, The Voyage of the Beagle in From so simple a beggining: the four great books of Charles Darwin edited with introduction by Edward O. Wilson, W.W. Norton & Company, New York, 2006







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