segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Y somos desganados y argentinos en el espejo #3









Terra do Fogo


III


Ushuaia está exposta ao rigor dos ventos que sopram de duas direções opostas. Há as massas polares empurradas pelos ventos austrais que vencem com rapidez os mil quilômetros entre o arquipélago fueguino e a Península Antártica. Mas há também os imprevisíveis ventos boreais, que sopram de Buenos Aires, distante três mil quilômetros, cuja intensidade resulta do efeito combinado de vários centros de alta pressão situados entre os paralelos 38 e 51 do Hemisfério Norte: Washington (38° 53’), Beijing (39° 54’), Nova York (40° 43’), Frankfurt (50° 07’), Londres (51° 30’). Ushuaia, portanto, padece o destino comuns dos rincões e das periferias do mundo. Uma vida econômica e social sem dinamismo próprio, sempre a reboque de decisões administrativas e ciclos econômicos gerados alhures.

Como sói acontecer com os territórios fronteiriços remotos que tardam em ser incorporados à nação, a soberania pátria se afirmou primeiro pela presença da força militar, na forma de uma base naval. Pouco depois, implantou-se a colônia penal e o presídio num simulacro argentino da Sibéria. Até 1947, quando Perón desativou o presídio, a cidade tinha pouco mais de duas mil almas e continuou a crescer lentamente até 1972, quando a lei 19.640 estabeleceu um novo regime fiscal e aduaneiro para promover a industrialização da Terra do Fogo. Gente de todo o país, especialmente das províncias do Norte vieram para Ushuaia atrás de emprego e de salários relativamente altos.

No entanto, a prosperidade industrial durou pouco tempo. A circulação global dos produtos chineses e a instabilidade da economia argentina entre 1999 e 2001 causaram o fechamento das fábricas e o desemprego, ao mesmo tempo que o setor de serviços ganhava impulso com a transformação de Ushuaia em polo turístico internacional. Hoje chegam quatrocentos cruzeiros por ano. O ritmo do setor de serviços – inclusive as contratações temporárias - é ditado pelas datas de chegada dos “buques” e pela previsão de número de passageiros. As duas avenidas mais importantes do centro, a Maipú e a San Martin, são movimentadas e têm uma aparência próspera. Ouvem-se muitas línguas nas lojas e nos restaurantes.

A possibilidade de emprego no variado setor de atendimentos aos turistas manteve a imigração interna e externa em direção a Ushuaia. A população saltou de cinco mil pessoas em 1970 para 50 mil em 2010. O resultado é que atualmente não há transporte nem moradias para todos. O relevo difícil faz com que os terrenos disponíveis sejam disputados pela rede hoteleira em expansão. Os mais pobres, dentre os quais muitos bolivianos vistos com preconceito, são obrigados a construir barracos frágeis em terrenos invadidos nas encostas. Além de enfrentarem o frio e o ventos, os moradores das favelas de Ushuaia estão expostos aos riscos de deslizamento seja por causa das chuvas, seja por causa dos eventuais abalos sísmicos, já que a falha geológica que passa pelo fundo do Lago Fagnano está apenas a cem quilômetros dali.

Nós, turistas, porém, não queremos saber de nada disso. Não vemos a falha geológica, ignoramos a favela do Bairro Escondido, andamos por aquelas montanhas e lagos que assistiram ao genocídio dos selk'nam com a despreocupação inocente dos pássaros e dos lírios do campo e avançamos para as mercadorias das lojas tax free com as mesmas mãos ávidas que os canoeiros yámanas estendiam para os marinheiros do Beagle em 1833.







Calle Aldo Motter  na região Oeste de Ushuaia: região de ocupação recente em rápido crescimento. 







Vista da Calle Aldo Motter. Ao fundo, Canal de Beagle e Ilha Navarino (Chile).







Ao fundo à esquerda, Bairro Escondido: favela surgida pela ocupação irregular da encosta em área de preservação florestal.







Avenida da Prefectura Naval. Ao fundo, à direita, as instalações do porto.







Avenida da Prefectura Naval. Ao fundo, à esquerda, o glaciar El Martial.






Em Ushuaia, a guerra das Malvinas ainda não terminou. Por toda a parte, os nomes dos logradouros, os graffitis e os monumentos públicos proclamam a soberania da Nação Argentina sobre o arquipélago disputado com a Grã-Bretanha em 1982.









O cais do porto de Ushuaia. Ao fundo , o glaciar El Martial.








O porto e o centro da cidade ao fundo.







Porto de Ushuaia. Vista do Canal de Beagle depois de uma tarde de mau tempo.





E. Lucas Bridges, Uttermost Part of the Earth, Dover, New York 1988 | Arnoldo Canclini, Así nació Ushuaia, Editorial Dunken, Buenos Aires, 2006 | Anne Chapman, Darwin en Tierra del Fuego, Emecé, Buenos Aires, 2009 | Rita de Cássia Novais e Silva Daniel, Urbanização de Ushuaia: do estigma da prisão à Ilha da Fantasia, dissertação de mestrado, 2010 | Charles Darwin, The Voyage of the Beagle in From so simple a beggining: the four great books of Charles Darwin edited with introduction by Edward O. Wilson, W.W. Norton & Company, New York, 2006





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