segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Y somos desganados y argentinos en el espejo #8








Buenos Aires



Inspeção Anatômica




A dar crédito aos historiadores, Buenos Aires foi fundada duas vezes. A primeira por Pedro de Mendoza em 1536, a segunda por Juan de Garay em 1580.  Um dos descendentes de Garay foi Jorge Luís Borges.

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Foi num porão da avenida Juan de Garay, perto da Plaza de la Constituición, que Borges viu o Aleph. Como lhe explicou Carlos Argentino Daneri, dono da residência, o Aleph era um ponto donde se podia ver, sem se confundirem, todos os pontos do mundo, vistos de todos os ângulos. Isso aconteceu em outubro de 1941. A casa já não existe mais.

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A avenida Garay, que lembra o fundador de Buenos Aires, é imediatamente paralela à avenida Brasil. Talvez essa íntima proximidade entre as duas nações irmãs e rivais explique por qual razão o Abaporu, de Tarsila do Amaral, está exposto no Museu de Arte Latino-Americana (MALBA) e não em um museu brasileiro. É verdade que os nacionalistas verde-amarelo chiaram, mas o destino da obra foi literalmente fiel à proposta modernista de Oswald de Andrade: arte como riqueza exportável, arte como pau-brasil. E lá está o Abaporu brasileiro, junto com um autorretrato da mexicana Frida Kahlo, na coleção de um banqueiro argentino, no belo museu situado entre a Plaza República del Perú e a rua San Martin de Tours, o santo da Gália, num bairro cujo nome lembra a maior cidade da Sicília.  Esse é o verdadeiro Aleph.

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Embora descendente de Garay, Jorge Luís Borges duvidava que Buenos Aires  houvesse tido um começo no tempo. Num poema do Cuaderno de San Martín, de 1929, ele escreveu:

¿Y fue por este río de sueñera y de barro
que las proas vinieron a fundarme la patria?
(...)
Prendieron unos ranchos trémulos en la costa,
durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,
pero son embelecos fraguados en la Boca.
Fue una manzana entera y en mi barrio: en Palermo.

Un almacén rosado como revés de naipe
brilló y en la trastienda conversaron un truco;
el almacén rosado floreció en un compadre,
ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.

El primer organito salvaba el horizonte
con su achacoso porte, su habanera y su gringo.
El corralón seguro ya opinaba Yrigoyen,
algún piano mandaba tangos de Saborido.

Una cigarrería sahumó como una rosa
el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres,
los hombres compartieron un pasado ilusorio.
Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.

A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires:
La juzgo tan eterna como el agua y como el aire.
(Fundación mítica de Buenos Aires)

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Borges era de uma família burguesa e culta de Palermo, mas sentia fascinação pelos subúrbios de casas baixas que estavam desaparecendo com o crescimento de Buenos Aires na década de 20. Os compadritos que dançavam tango, jogavam truco e manejavam o punhal tinham lá uma sedução que não se encontra mais em parte alguma.

A cor local da Buenos Aires de hoje é outra: nas quitandas de bairro, as mocinhas da caixa registradora cantam cumbias; as bancas de jornais vendem adesivos do Gauchito Gil ao lado de exemplares do Clarín e da revista ¡HOLA!. Nas ruas de classe média, abundam os passeadores de cachorros. Os torcedores do Boca se empanturram de choripán e chimichurri. No centro, os descontentes fazem cazerolazos. Para um turista como eu, tudo isso é curioso, mas Borges observou há muito tempo que “podemos creer en la posibilidad de ser argentinos sin abundar en color local.” (El escritor argentino y la tradición)

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Buenos Aires é uma Paris subtropical que soberbamente se coloca à testa de uma nação que ela mesma arrenega. Contra a Argentina real da província, a elite de Buenos Aires cultivou o sonho de uma Argentina que fosse um enclave europeu imune à barbárie indígena, africana e mestiça da América.  

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Depois da chamada "Guerra contra o índio" ou "Conquista do Deserto", a grande campanha militar contra os mapuches e tehuelches, o General Julio Argentino de la Roca, líder do genocídio dos índios da Patagônia, tornou-se Presidente da República. Era o ano de 1880 e Buenos Aires tinha acabado de ser transformada em capital da Nação, depois de algumas escaramuças e disparos contra o partido que se opunha à federalização da cidade.

Como muitos militares sul-americanos do final do século XIX, Julio de la Roca era positivista. Como homem da elite urbana, era um amigo da civilização, quer dizer, daquele misto de emulação burguesa dos mores aristocráticos, uso adequado do vaso sanitário, admiração pelas conquistas da técnica e gosto pelos parques e bulevares de Hausmann.

O intendente Torcuato de Alvear, nomeado pelo presidente, tratou logo de abrir a Avenida de Mayo, o primeiro bulevar da capital federal. Planejou também um cinturão de parques ao redor da cidade. Um deles é o Paseo da Recoleta, hoje Plaza Torcuato de Alvear.

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Essa Buenos Aires pretendia ser uma proclamação. No entanto, as elites não são donas das cidades. A hýbris dos monumentos de bronze ou de concreto armado tem a sua própria nêmesis. Para cada estátua heroica de um general, há doze pombos para cobri-las de esterco; para cada catedral, doze mendigos; para cada mausoléu na Recoleta, doze mortos sem tumba; para cada Palermo, doze favelas – ou villas miseria, como se chamam por aqui.

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A caminho do hotel no Retiro, passamos pela Villa 31, a favela mais famosa de Buenos Aires, que sucessivos governos tentaram remover por bem ou por mal. Durante a Copa do Mundo de 1978, o governo do General Videla, também ele amigo da ordem, fez com que a favela desaparecesse por algum tempo, mas ela retornou. Outras sete ou oito mil pessoas não tiveram a sorte de voltar, como recordam las madres y las abuelas de la Plaza de Mayo. Os generais argentinos são implacáveis. A Argentina, conforme se esperava, ganhou a Copa.

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A partida final – Argentina x Holanda – foi disputada no dia 25 de junho de 78 no Monumental de Nuñez, sede do River Plate.  Pretendíamos visitar o estádio, mas o taxista boquense se recusou a nos levar “àquele lugar que fede a galinheiro”. Em troca, teve o gosto e a gentileza de nos ciceronear num breve passeio à Bombonera, cenário das glórias de Don Diego Maradona.

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Outra partida, dessa vez contra a Grã-Bretanha em 1982, foi um fiasco.  As Malvinas continuaram sendo as Ilhas Falkland, como já eram na época de Darwin e do capitão FitzRoy. Os implacáveis generais argentinos tiveram que sair da Casa Rosada no ano seguinte.

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Tantas proclamações da grandeza nacional me parecem menos sinal de arrogância e soberba do que da íntima insegurança e profunda insatisfação dos argentinos. Eles estão bem conscientes da grandeza ratée de seu país. Talvez por isso os portenõs sejam tão incrédulos, desganados e irônicos. E tão veementes.

Os brasileiros, pendurados numa nação cuja grandeza é apenas uma nota promissória, e os argentinos, obrigados a vender nos antiquários de San Telmo a velha porcelana de chá da bisavó e a cuia de prata em que o bisavô tomava o mate na estância, têm muito a dizer uns aos outros. O fato é que compartilhamos a satisfação malévola e a alegria perversa do Schadenfreude por nós mesmos. 

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Os anos neoliberais do governo Menem produziram mais uma proclamação da grandeza argentina: a revitalização do decrépito Puerto Madero. De maneira semelhante a outros projetos desse tipo (um exemplo é o Port Vell de Barcelona), o objetivo era obter um contraponto entre a área da intervenção e a cidade ao redor que resultasse em surpresa visual, espaço acolhedor e diálogo entre o novo e o antigo. Contudo, o que foi erguido se limitou a seguir as convenções que o mainstream internacional adota na construção desses não-lugares que são os aeroportos, shopping centers e centros culturais: vazios generosos, corredores larguíssimos, superfícies transparentes e espelhadas, a supremacia da forma sobre a função à maneira de Calatrava, Gehry e Foster. Uma arquitetura e um urbanismo destinados a explodir orçamentos e a reforçar a cumplicidade entre bancos, empreiteiras, escritórios de design e governos.

Esses espaços ambiciosos funcionam bem como décor e cenário para selfies e cartões postais, mas permanecem alheios à cidade, como navios de cruzeiro atracados no cais. Nisso as revitalizações portuárias têm o mesmo destino dos parques construídos para exposições internacionais, como os elefantes brancos da Expo 92 em Sevilha ou da Expo 98 em Lisboa. No entanto, a própria desconexão entre a área "revitalizada" e a cidade real tem um efeito magnético sobre os turistas. Em Puerto Madero, os guindastes pintados em cores vivas e os trapiches reformados não exigem dos turistas nenhum esforço mental de compreensão do passado, tampouco alguma empatia com as forças vivas que modelam a vida da cidade. Todo o ruído criado pela história e pelas tensões sociais é abafado.

Enquanto o Palácio das Águas Correntes, na avenida Córdoba, ocupa um quarteirão inteiro com o mais feérico ecletismo decorativo apenas para esconder as prosaicas caixas d´água que abastecem o centro, as torres de marfim de Puerto Madero se entregam inteiras ao olhar sem ocultar nada. 

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Não custa repetir que as nações são ficções produzidas e reforçadas pelos escritores, historiadores e juristas. Buenos Aires já foi um porto de mercadores portugueses; Jujuy e Salta já foram a quarta parte do Tahuantinsuyo e obedeciam aos ditames de Cusco; a Patagônia poderia ter sido chilena, como as Malvinas são britânicas. Ocorre que as ficções nacionais são tão persistentes quanto certas inescapáveis ilusões de ótica. Por isso, na manhã em que parti de Buenos Aires, o canto de um sabiá numa palmeira da Plaza San Martín confundiu meu coração.  







Pescadores no Rio da Prata pela manhã. Av. Costanera Rafael Obligado






Av. Pres. Figueroa Alcorta. À direita, a Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires





Floralis Generica (2002), do arquiteto Eduardo Catalano, na Plaza de las Naciones Unidas





Museo de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (MALBA), Palermo






Museo de Arte Latino-America de Buenos Aires (MALBA)






Museo de Arte Latino-America de Buenos Aires (MALBA)






Plaza Intendente Torcuato de Alvear, Recoleta






Cemitério da Recoleta: o túmulo de Sarmiento






Cemitério da Recoleta: Mausoléu dos Soldados Mortos na Guerra do Paraguai






Jardim Zoológico,  Palermo






Edificio Kavanagh visto da Av. del Libertador, Retiro






Av. del Libertador, Retiro





Palácio Estrugamou na Calle Esmeralda, Retiro





Sede do Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto, na esquina da Esmeralda com Arenales, Retiro. 




Monumento ao Libertador na Plaza San Martin





Plaza San Martín





Cruzamento da Avenida 9 de Julio com Santa Fé





Avenida de Mayo





Antiga sede do Cabildo na Plaza de Mayo





Palacio de Aguas Corrientes, avenida Cordoba





Av. Callao




Edifício residencial na esquina da Santa Fé com a Callao




Calle Garibaldi, perto de Caminito, La Boca





Uma rua de San Telmo




Mercado de San Telmo





Puerto Madero




Puerto Madero




Puerto Madero 







Jorge Luís Borges, Obras Completas 1927-1972, Emecé Editores, Buenos Aires, 1974 | Jorge Luís Borges, Nuestras Imposibilidades, Revista Sur, Buenos Aires, 1931 | Boris Fausto e Fernando J. Devoto, Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002), Editora 34, São Paulo, 2004 | Luís Augusto Fischer, Machado e Borges, Arquipélago Editorial, Porto Alegre, 2008 | David J. Keeling, Waterfront Redevelopment and the Puerto Madero, Project in Buenos Aires, Argentina | Luis Alberto Romero, Breve Historia Contemporánea de la Argentina 1916-2010, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 2012 | Nicolas Shumway, A invenção da Argentina: história de uma ideia, Edusp e EdUNB, 2009






















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