domingo, 28 de junho de 2015

A claraboia e o holofote #29 (V)







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista






Rosa Luxemburg


Greve de massas, partido e sindicatos (1906)




Rosa e a  Revolução Russa de 1905

Foi assim que Lenin resumiu, no Pravda de 22 de janeiro de 1925, os eventos daquele Domingo Sangrento que desencadearam a primeira Revolução Russa:

“Milhares de trabalhadores - não social-democratas, mas súditos leais e tementes a Deus - conduzidos pelo padre Gapon, afluíam de todas as partes da capital até o centro, à praça em frente ao Palácio de Inverno, para levar uma petição ao czar. Os trabalhadores carregavam ícones. Gapon, líder naquele momento, garantia em carta ao czar a segurança pessoal dele e lhe solicitava que aparecesse diante do povo.
Tropas foram convocadas. Ulanos e cossacos, com espadas desembainhadas, atacaram a multidão. Dispararam sobre os trabalhadores desarmados, que se ajoelhavam implorando aos cossacos que lhes permitissem ir até o czar. Naquele dia, mais de mil pessoas foram mortas e duas mil feridas, de acordo com os relatórios da polícia. A indignação dos trabalhadores era indescritível”.

Na Alemanha, as notícias da revolução na Rússia eletrizaram as massas e a ala esquerda do SPD:

"Quando as novas da Revolução Russa chegaram ao país, ele se encontrava em meio à primeira e maior das intensas lutas operárias de 1905: a greve dos mineiros de carvão na bacia do Ruhr. Esta greve era diferente das precedentes tanto na sua escala quanto pelo seu caráter totalmente espontâneo. Embora os líderes dos quatro sindicatos dos mineiros tentassem em vão impedir que o conflito se espalhasse, o ressentimento reprimido dos mineiros contra suas árduas condições de trabalho mão podia mais ser contido. (...) Enquanto a Revolução Russa tomou forma de greves de massas, a maior greve da Alemanha, que começara espontaneamente entre os empregados por razões econômicas, rapidamente adquiriu objetivos políticos. Os teóricos radicais rapidamente ligaram esses dois acontecimentos e anunciaram a greve política de massas como arma da nova era de revolução." 
(Carl E, Schorske, German Social Democracy 1905-1917, p. 37). 

Para desagrado das altas lideranças do SPD, Rosa Luxemburg tomou parte da agitação revolucionária na Polônia e na Rússia. Dessa experiência, a mais importante da sua vida, ela extraiu as conclusões que apresentou no opúsculo Greve de massas, partido e sindicatos, que ela escreveu na Finlândia em setembro de 1906, pouco antes de se dirigir a Mannheim para o congresso do SPD. Tratava-se nada menos do que propor, à luz do êxito das greves de massas espontâneas na Rússia, uma nova definição da relação entre o movimento social-democrata dos países avançados e o dos atrasados; entre o partido e as massas; entre o partido e os sindicatos. 

A premissa básica da abordagem de Rosa Luxemburg à natureza da Revolução Russa de 1905 é a ideia que Parvus formulara com notável ênfase em 1905. Parvus sugerira que o marxismo tinha que pensar em termos de um mundo capitalista unificado maduro para a transição para o socialismo. ‘A revolução na Rússia concretiza os resultados gerais do desenvolvimento capitalista internacional no ambiente específico do absolutismo político. A revolução na Rússia não é a retardatária de uma série que se estende de 1789 a 1848, mas a precursora de uma série nova de revoluções proletárias vindouras na Europa Ocidental’ [in Rosa Luxemburgo, Greve de massas, partido e sindicatos]. Ao invés da concepção de Estados-nações que se desenvolviam de acordo com o seu progresso econômico em direção ao socialismo, com os países avançados dando exemplo aos países atrasados, Parvus formulou uma abordagem completamente diferente. Dentro do contexto de um mundo capitalista intimamente conectado, uma revolução política em uma área nacional específica acelerava consideravelmente o progresso histórico e comprimia as realizações de toda uma época num breve momento histórico. A revolução era o laboratório de alquimista que transformava escória em ouro. Por um grande salto adiante a consciência política da classe trabalhadora de um país atrasado ultrapassava o nível alcançado por décadas de trabalho parlamentar e sindical nos países avançados. A revolução causa um reviravolta súbita na relação tradicional entre mestre e discípulo, entre a classe trabalhadora da Alemanha e a da Rússia.” (H. Schurer, The Revolution of 1905 and the Origins of German Communism, pp. 463-4)

Desde 1899, ao fulminar o revisionismo de Bernstein, Rosa aparecia como uma campeã do Programa de Erfurt, que tentava distinguir e conciliar os objetivos finais a serem obtidos pela revolução proletária e o movimento cotidiano de melhora gradual das condições dos trabalhadores, através de conquistas parlamentares e sindicais. Agora era a própria Rosa que se colocava como uma revisionista de esquerda,  erguendo a bandeira da greve espontânea de massas contra o conformismo dos burocratas líderes sindicais e dos parlamentaristas da ala direita do partido.

“No Congresso Sindical de Colônia (1905) esses burocratas, que se tinham como os únicos especialistas competentes, apesar de não estarem à altura da circunstância histórica, avançaram em fileiras cerradas. (...) Esse setor tinha exercido durante o último ano uma indubitável influência sobre os destinos do movimento operário alemão e haviam conseguido submeter o Comitê Diretivo do Partido. Quando Rosa Luxemburg redigiu seu escrito sobre a greve de massas se sentia impelida a colocar no seu devido lugar a esses inimigos empedernidos de toda política revolucionária e moderna”. 
(Paul Frölich, Rosa Luxemburgo vida y obra, p. 208)

Eis a razão pela qual Karl Rádek declarou que “com Greve de massas, partido e sindicatos começa a separação do movimento comunistas da social-democracia na Alemanha”. (apud J. P. Nettl, Rosa Luxemburgo, p. 254)



Excertos do artigo de Rosa

"A greve de massas na Rússia não foi posta em prática como meio de, repentinamente, feito um golpe teatral, passar à revolução social, desviando das lutas políticas da classe trabalhadora e especialmente do parlamentarismo, mas, em primeiro lugar, como meio para o proletariado criar as condições da luta política diária, especialmente as do parlamentarismo. A luta revolucionária na Rússia, na qual a greve de massas é empregada como a arma mais importante, é realizada pelo povo trabalhador e, em primeiro lugar, pelo proletariado, justamente em prol dos mesmos direitos e condições políticas, cuja necessidade e significado na luta pela emancipação da classe trabalhadora foram demonstrados por Marx e Engels e, em oposição ao anarquismo, defendidos com toda a força na Internacional. Assim, a dialética histórica, o rochedo sobre o qual toda a teoria do socialismo de Marx está assentada, teve como resultado que, hoje, o anarquismo, que estivera inseparavelmente ligado à ideia da greve de massas entrou em oposição à prática da greve de massas; em contrapartida, a greve de massas, combatida como oposta à atividade política do proletariado, aparece hoje como a arma mais poderosa da luta pelos direitos humanos. Se, portanto, a Revolução Russa torna necessária uma revisão minuciosa da antiga posição do marxismo sobre a greve de massa, é novamente apenas o marxismo que com seus métodos e pontos de vista gerais obtém a vitória sob nova forma". (p. 267) 

"Se a Revolução Russa nos ensina algo, é, sobretudo, que a greve de massas não é ‘feita artificialmente, não é ‘decidida’ e nem ‘propagada’ a partir do nada, mas é um fenômeno histórico que, num determinado momento, resulta como uma necessidade histórica, da situação social". (p. 271)

"A greve de massas tornou-se, agora, o centro do interesse vivo do operariado alemão e internacional, pois é uma forma de luta e, como tal, o sintoma seguro de uma profunda guinada interna nas relações de classe e nas condições da luta de classes. Isso diz muito do saudável instinto revolucionário e da viva inteligência da massa proletária alemã, que ela – não obstante a resistência obstinada de seus líderes sindicais – se volte com tão ardente interesse para o novo problema". (p. 272)

"A greve de massas, como nos é mostrada pela Revolução Russa, é um fenômeno tão mutável, que reflete em si todas as fases da luta política e econômica, todos os estágios e momentos da revolução. (...) Ela é o pulso vivo da revolução e, ao mesmo tempo, seu motor mais poderoso. Em suma: a greve de massas, como nos é mostrada pela Revolução Russa, não é um meio astuto, inventado para reforçar o efeito da luta proletária, mas é o modo de movimentação da massa proletária, a forma de expressão da luta proletária na revolução.

Pode-se avaliar o problema da greve de massas a partir de alguns pontos de vista gerais:

1. É completamente incorreto conceber a greve de massas como um ato, uma ação isolada. A greve de massas é, antes, a denominação, o conceito aglutinador de todo um período de anos, talvez de décadas de lutas de classes. (...) Todas as outras greves de massas e greves gerais grandes e parciais não foram greves de protesto, mas de luta, e como tais originaram-se no mais das vezes de modo espontâneo, a cada vez por motivos locais casuais e específicos, sem planejamento e sem intenção, e cresciam com um poder elementar até tornarem-se grandes movimentos; assim ‘não batiam em retirada ordenadamente’, mas se transformavam ora em luta econômica, ora em luta de rua, ora desmoronavam sozinhas.
Nesse retrato geral, as greves de protesto puramente políticas desempenham um papel completamente subordinado – o de pequenos pontos isolados numa superfície enorme. Do ponto de vista temporal, pode-se apreender aí o seguinte: as greves de protesto, que, diferentemente das greves de luta, apresentam o maior nível de disciplina partidária, de direção consciente e de pensamento político, ou seja, de acordo com o esquema deveriam transparecer como a forma mais madura e elevada da greve de massa, na verdade desempenham o maior papel nos primórdios do movimento.

2. Quando, porém, enfocamos a greve de luta em vez do tipo subordinado da greve de protesto, o que chama a atenção é que é impossível separar os elementos políticos e econômicos uns dos outros. (...)
Cada novo arranque e cada nova vitória da luta econômica se transforma num grande impulso para a luta econômica, expandindo simultaneamente suas possibilidades externas e o ímpeto interno dos trabalhadores para melhorar a sua situação. Após cada onda espumante sobra um sedimento fértil onde imediatamente surgem milhares de brotos da luta econômica. E inversamente. O incessante estado de guerra econômico dos trabalhadores contra o capital mantém acesa a energia combativa em todas as pausas políticas; ele forma, por assim dizer, o reservatório permanentemente fresco da força da classe proletária, do qual a luta política sempre volta a tirar seu poder, e, ao mesmo tempo, a incansável perfuração econômica do proletariado leva a todo momento, ora aqui ora ali, a agudos conflitos isolados a partir do qual explodem repentinamente conflitos políticos em grande escala.

3. Por fim, os acontecimentos na Rússia nos mostram que a greve de massas é inseparável da revolução. (...) A revolução é algo diferente e algo mais do que derramamento de sangue. Diferentemente da concepção policial, que apreende a revolução exclusivamente do ponto de vista das manifestações de rua e dos tumultos, isto é, do ponto de vista da ‘desordem’, o socialismo científico concebe a revolução, sobretudo, como uma transformação interna profunda nas relações sociais de classes.
(...) Só no período revolucionário, em que os fundamentos sociais e os muros da sociedade de classes são sacudidos e se encontram em constante mudança, é que aquela ação política de classe do proletariado é capaz, em poucas horas, de arrancar da imobilidade camadas do operariado até então inatingidas, o que logo se expressa em uma luta econômica tormentosa. (...)
Assim, é a revolução que primeiramente cria as condições sociais nas quais é viabilizada aquela transformação imediata da luta econômica em política e da luta política em econômica, que encontra sua expressão nas greves de massas.

4. Se a greve de massas não significa um ato isolado, mas todo um período da luta de classes, e se esse período é idêntico a um período de revolução, está claro que a greve de massas não pode ser livremente desencadeada, mesmo que a decisão para tanto parta da mais alta instância do mais forte partido social-democrata.
(...) Justamente durante a revolução é bastante difícil para qualquer órgão dirigente do movimento proletário prever e calcular qual motivo e quais momentos poderão levar a explosões e quais não. Também aqui a iniciativa e a direção não consistem em comandar voluntariamente, mas em adaptar-se à situação o mais habilmente possível, mantendo o mais estreito contato com o moral da massa. O elemento da espontaneidade desempenha, como vimos, um grande papel em todas as greves de massas russas, sem exceção, seja como elemento propulsor ou como elemento repressor. (...) A revolução, até mesmo quando o proletariado desempenha o papel de liderança com a social-democracia na direção, não é uma manobra do proletariado em campo aberto, mas é, antes, uma luta em plena quebra, fragmentação e alteração de todos os fundamentos sociais. Em suma, se nas greves de massas na Rússia, o elemento espontâneo desempenha um papel tão importante, não é porque o proletariado “não é instruído”, mas porque a revolução não admite instrutores.
(...) Dar  as palavras de ordem, uma direção à luta, estabelecer a tática da luta política de modo que em cada fase e em cada momento da luta toda soma do poder existente do proletariado, já deflagrado e mobilizado, se realize e se expresse na posição de luta do partido, que a tática da social-democracia, pela sua determinação e pelo seu rigor, nunca esteja abaixo do nível da verdadeira correlação de forças, mas antecipe essa correlação, eis a tarefa mais importante da ‘direção’ no período da greve de massas". (p.298-309)

"Os sindicatos, assim como todas as organizações de luta do proletariado, não podem manter-se duradouramente a não ser justamente na luta, e não no sentido apenas da guerra de gato e rato nas águas paradas do período parlamentar-burguês, mas antes no sentido de períodos turbulentos e revolucionários da luta de massas. O entendimento rígido, mecânico-burocrático, só admite a luta como produto da organização que atinja uma certa força. O desenvolvimento dialético vivo leva, ao contrário, à organização como produto da luta". (p. 318)

"Se a greve de massas ou, antes, se as greves de massas, se a luta de massas deve obter sucesso, ela precisa tornar-se um verdadeiro movimento popular, isto é, trazer as camadas mais amplas do proletariado para a luta. – Já na forma parlamentar o poder da luta de classes proletária nâo reside sobre um pequeno núcleo organizado, mas sobre a periferia circundante, ampla do proletariado revolucionariamente organizado". (p. 319)

"Enquanto na Alemanha, França, Itália, Holanda os mais fervorosos conflitos sindicais não provocam nenhuma ação geral da classe trabalhadora – nem mesmo da parcela organizada -, na Rússia o menor motivo desencadeia toda uma tempestade, Mas isso só quer dizer – por mais paradoxal que possa soar – que atualmente o instinto de classe entre o proletariado russo jovem, desqualificado, fracamente esclarecido e ainda mais fracamente organizado é infinitamente mais forte do que entre o operariado qualificado e esclarecido da Alemanha ou de qualquer outro país da Europa Ocidental. E essa não é uma virtude particular do ‘oriente jovem e inexperiente’ em comparação com o ‘ocidente apodrecido’, mas o simples resultado da ação de massas revolucionária direta. Entre o trabalhador alemão esclarecido a consciência de classe plantada pela social-democracia é teórica, latente; no período de dominação do parlamentarismo burguês, ela geralmente não pode atuar como ação de massas direta (...) Na revolução, onde a massa propriamente dita aparece na praça pública, a consciência de classe se torna prática, ativa. Por isso, um ano de revolução deu ao proletariado russo aquela ‘instrução’ que trinta anos de luta sindical e parlamentar não puderam dar artificialmente ao proletariado alemão". (p. 321)

"Caso se chegue a greves de massas na Alemanha, então quase certamente não serão os mais bem organizados – certamente não serão os tipógrafos -, porém os mais mal ou nada organizados, os mineiros, os trabalhadores têxteis, talvez até mesmo os trabalhadores do campo, que desenvolverão a maior capacidade de ação". (p. 322)

"Pois então deixemos o esquema pedante de uma greve de massas apenas de protesto , artificialmente comandada pelo partido e pelo sindicato e executada pela minoria organizada e voltemo-nos para a imagem viva de um verdadeiro movimento popular que se origina com força elementar do extremo acirramento das oposições e da situação política, que irrompe em tumultuosas lutas de massas, quer econômicas, quer políticas, em greves de massas; então a tarefa da social-democracia não constituirá evidentemente na preparação e na direção técnica da greve de massas, mas sobretudo na liderança política de todo o movimento.
A social-democracia é a vanguarda mais esclarecida, mas consciente do proletariado. Ela não pode e nem deve esperar, de modo fatalista e de braços cruzados, pela chegada da ‘situação revolucionária’, esperar que o movimento popular espontâneo caia do céu. Pelo contrário, ela precisa, como sempre, preceder o desenvolvimento das coisas, procurar acelerá-las. Não o conseguirá lançando de repente a torto e a direito a ‘palavra de ordem’ de greve de massas, mas antes explicando às mais amplas camadas do proletariado a irremediável chegada deste período revolucionário, os fatores sociais internos que a ele conduzem, e suas consequências políticas. Caso se queira ganhar amplas camadas proletárias para uma ação política de massas da social-democracia e, inversamente, caso queira a social-democracia assumir e manter a verdadeira direção do movimento de massas, dominar todo o movimento no sentido político, então ela precisa com toda clareza, consequência e determinação, delimitar para o proletariado alemão a tática e os objetivos para o período das batalhas vitoriosas". (p. 322-3)

"O proletariado industrial urbano é, agora, a alma da revolução na Rússia. Mas para levar a cabo alguma ação política direta como massa, o proletariado precisa, primeiramente, unir-se em massa, e para tanto é preciso, sobretudo, sair das fábricas e oficinas, dos túneis e dos casebres, precisa superar a pulverização e o esfacelamento das oficinas individuais, a que está condenado pelo jugo diário do capital. A greve de massas é, assim, a primeira forma natural, impulsiva de toda grande ação revolucionária do proletariado, e quanto mais a indústria se torna a forma dominante da economia social, tanto mais o proletariado desempenha um papel extraordinário na revolução, e quanto mais desenvolvida a oposição entre capital e trabalho, tanto mais poderosas e decisivas precisam se tornar as greves de massas. A incipiente forma de luta da revoluções burguesas, a batalha de barricadas, o encontro aberto com os poderes armados dos Estado, é, na revolução atual, apenas um evento externo, apenas um momento de todo processo da luta proletária de massas. (...)
Assim, a greve de massas prova ser não um produto especificamente russo, originado do absolutismo, mas uma forma geral da luta de classes proletária, que se origina do estágio atual do desenvolvimento capitalista e das relações de classes. As três revoluções burguesas: a grande Revolução Francesa, a Revolução de Março alemã e, agora, a Russa constituem, desse ponto de vista, uma corrente de desenvolvimento contínuo, na qual se espelham o êxito e o fim do século capitalista. Na grande Revolução Francesa, as contradições internas da sociedade capitalista, ainda não inteiramente desenvolvidas, durante um longo período dão espaço a lutas violentas, em que todos aqueles contrastes que nasceram e amadureceram rapidamente no calor da revolução se exaurem desimpedidos e desobrigados, com um radicalismo audacioso. Meio século depois, a revolução da burguesia alemã que eclodiu a meio caminho do desenvolvimento capitalista é minada pela oposição de interesses e pelo equilíbrio de forças entre capital e trabalho e sufocada por um compromisso burguês-feudal, abreviada em seu andar a um episódio curto e lamentável. Mais meio século, a atual Revolução Russa encontra-se em um ponto histórico do caminho, que já avançou para além da montanha, para além do cume da sociedade capitalista, onde a revolução burguesa não pode mais ser sufocada pelo contraste entre burguesia e proletariado, porém, inversamente, desdobra-se em um  novo e longo período de lutas sociais das mais violentas, nas quais acertar a antiga conta com o absolutismo parece um detalhe diante das muitas novas contas que a própria revolução abre.

(...) Mais importante é que os trabalhadores alemães aprendem a enxergar a Revolução Russa como seu próprio problema, não apenas no sentido da solidariedade internacional de classes com o proletariado russo, mas sobretudo como um capítulo da sua própria história política e social". (p. 325-7)

"A separação entre a luta política e a luta econômica e a autonomização de ambas nada mais é que um produto artificial, ainda que historicamente condicionado, do período parlamentar. De um lado, durante o andar tranquilo, ‘normal’ da sociedade burguesa, a luta econômica é fragmentada, dissolvida em uma multiplicidade de lutas isoladas em cada empresa, em cada setor da produção. Do outro lado, a luta política não é direcionada pela própria massa para uma ação direta, mas, correspondentemente às formas do Estado burguês, para o caminho representativo, pela pressão exercida sobre os representantes do legislativo. Assim que tem início um período de lutas revolucionárias, isto é, assim que a massa aparece na arena, tanto a fragmentação da luta econômica quanto a forma parlamentar indireta da luta política caem por terra; em uma ação revolucionária de massas a luta política e a luta econômica são uma só, e a barreira artificial entre o sindicato e a social-democracia como duas formas separadas, completamente autônomas do movimento operário, é simplesmente varrida. (...) Não há duas diferentes lutas de classes da classe trabalhadora, uma econômica e outra política, mas há apenas uma luta de classes, orientada simultaneamente para a limitação da exploração capitalista no interior da sociedade burguesa e para a abolição da exploração junto com a sociedade burguesa". (p. 333)

"A mera junção dos números de eleitores social-democratas com os números das organizações sindicais na Alemanha é suficiente para tornar claro, para qualquer criança, que os sindicatos alemães não recrutam suas tropas na massa não esclarecida e orientada pela burguesia, como na Inglaterra, mas antes buscam os proletários entre a massa que já foi sacudida pela social-democracia e levada para a ideia de luta de classes. Os líderes sindicais repudiam, indignados – esse é um requisito da ‘teoria da neutralidade’ – a ideia de enxergar os sindicatos como escolas de recrutamento para a social-democracia. De fato, essa suposição que lhes parece tão acintosa, e que, na verdade, é bastante lisonjeita, na Alemanha tornou-se fantasia pelo simples motivo de que a situação está invertida: na Alemanha é a social-democracia que constitui a escola de recrutamento para os sindicatos. (...)
A conclusão mais importante dos fatos trazidos é que, para as lutas de massas vindouras na Alemanha, precisa existir de fato unidade total entre o movimento operário sindical e o social-democrata". (p. 340-1)

"A ocultação dos limites objetivos postos pela ordem social burguesa à luta sindical transforma-se numa hostilidade direta contra toda e qualquer crítica teórica que aponte para esses limites em conexão com os objetivos finais do movimento operário. A bajulação incondicional e o otimismo ilimitado tornam-se obrigação de todo ‘amigo do movimento sindical’. Mas dado que a posição social-democrata consiste justamente em combater o otimismo sindical acrítico, acaba-se por fazer frente contra a própria teoria social-democrata: os sindicalistas procuram às apalpadelas uma ‘nova teoria’, isto é, uma teoria que, em oposição à teoria social-democrata, abrisse perspectivas ilimitadas de ascensão econômica à luta sindical, no terreno da ordem capitalista". (p. 343)

"Assim se constituiu um estado peculiar, em que o mesmo movimento sindical que embaixo, com a social-democracia, na ampla massa proletária, está completamente unificado, em cima, na superestrutura administrativa, separa-se bruscamente da social-democracia, e se coloca como uma segunda potência independente, em contraste com ela. O movimento operário alemão ganha, assim, a forma peculiar de uma pirâmide dupla, cuja base e corpo são constituídos da mesma massa, sendo que as duas pontas, porém, encontram-se uma longe da outra. (p. 346)

O movimento sindical não é aquilo que se espelha nas ilusões inteiramente explicáveis mas equivocadas de algumas dúzias de líderes sindicais, e sim aquilo que vive na consciência da grande massa dos proletários que foram ganhos para a luta de classes. Nessa consciência, o movimento sindical é uma parte da social-democracia". (p. 349) 


Comentários

“A maioria dos chefes social-democratas se atinham ao axioma: A greve geral é um disparate geral. Se em alguma ocasião consideravam necessário esgrimir argumentos, eles se remetiam às palavras de Engels, que havia rechaçado a greve geral que os anarquistas preconizavam. Em 1893, Engels havia combatido em sua obra Os bakuninistas em ação a ideia de debilitar as classes possuidoras mediante uma greve o de obligá-las a responder violentamente, com o que a classe trabalhadora teria justificação para um levante armado. Assinalou que os próprios bakuninistas consideravam necessária uma organização completa dos trabalhadores e um caixa cheio para levar adiante o empreendimento. Nisto residia o erro, porque nenhum governo permitiria tais preparativos e, ‘por outro lado, os acontecimentos políticos e os abusos das classes privilegiadas acarretariam a libertação dos trabalhadores muito tempo antes que o proletariado conseguisse essa organização ideal e essas reservas colossais. E se ele as tivesse, não necessitaria do recurso da greve geral para chegar ao objetivo’.
A maioria dos social-democratas alemãs que se ocuparam de questões táticas viram a confirmação desta opinião no fracasso da greve geral belga de 1902. (...) Rosa Luxemburg tinha opinião diferente. Já começo da luta belga criticou energicamente as condições sob as quais eram levadas a cabo e em uma investigação profunda estabeleceu conclusões que ninguém mais havia se atrevido a extrair. O erro não estava em haver recorrido à greve geral, mas em haver permitido que os liberais prescrevessem as formas que essa deveria adotar. Com isso os trabalhadores parados foram convertidos em meros comparsas de uma ação parlamentar. Renunciando em nome da legalidade a toda reunião dos grevistas e a toda manifestação, relegando os trabalhadores a suas casas, foi privado a eles a sensação de sua própria massa e de sua própria força, causando-lhes um sentimento de insegurança. O essencial é que a greve geral seja o emissário, a primeira fase de uma revolução nas ruas, mas ela havia sido cuidadosamente despojada precisamente deste caráter”.
(Paul Frölich, Rosa Luxemburgo vida y obra, pp. 194-6)


Nota bene

“A Revolução Russa [de 1905] foi a experiência capital da vida de Rosa. (...) Porque, definitivamente, o que trouxera da Rússia não era análise nem conhecimento, mas a profilaxia nova da revolução como estado de ânimo. Independentemente da política, era este estado de ânimo que importava, a liberação moral de fazer e não planejar, de participar e não ensinar. Crendo que isso estava acima de toda necessidade de prova e demonstração, as receitas de Rosa Luxemburg em 1906 não devem ser julgadas duramente em função de seu conteúdo prático. Eram para ela um experimento, não para uma Revolução Russa triunfante mas para a Alemanha, para a transposição da ação russa para as circunstâncias alemãs. Rosa resumia a essência de sua doutrina com extrema simplicidade: A revolução é algo magnífico, todo o resto é pura bobagem”.
(J. P. Nettl, Rosa Luxemburgo,  pp. 299-300)



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Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, Companhia das Letras, São Paulo, 1987  |  Gilbert Badia, Le Spartakisme et sa problématique, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 21e Année, No. 3 (May - Jun., 1966), pp. 654-667  |  Riccardo Bellofiore, Rosa Luxemburg and the Critique of Political Economy, Routledge, Abindgon, New York, 2009  |  George Castellan, A propos de Rosa Luxemburg, Revue d'histoire moderne et contemporaine (1954) T.23e, No. 4 (Oct. - Dec,. 1976), pp. 573-582  |  Charles F. Elliott, Lenin, Rosa Luxemburg and the dilemma of non-revolutionary proletariat, Midwest Journal of Political Science, vol. IX number 4 november 1965  |  Paul Frölich, Rosa Luxemburgo: vida y obra, Editorial Fundamentos, Madrid, 1976 | Norman Geras, A Actualidade de Rosa Luxemburgo, Antídoto, Lisboa 1978  |  J. W. von Goethe, Fausto, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1987  |  Daniel Guérin, Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária, Editora Perspectiva, São Paulo, 1982  |  Eric J. Hobsbawn (org), História do Marxismo, O Marxismo na época da Segunda Internacional (3 volumes), Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1982, 1984  |  Hajo Holborn, A History of Modern Germany 1840-1945, Princeton University Press, Princeton, 1982 | M.C. Howard and J. E. King, A History of Marxian Economics, volume 1 1883-1929, Princeton University Press, New Jersey, 1989  |  Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism (3 vol.), Clarendon Press, Oxford, 1978 | Gérard Bensussan, George Labica, Dictionnaire Critique du Marxisme, Quadrige/PUF, Paris, 1999 |  Isabel Maria Loureiro, Rosa Luxemburg: os dilemas da ação revolucionária, Editora Unesp, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2004  |  Georg Lukács, Histoire et Conscience de Classe, Les Éditions de Minuit, Paris, Paris, 1976  | Ralph Haswell Lutz, The German Revolution 1918-1919, Cambridge University Press, 1967  |  Rosa Luxemburgo, Textos Escolhidos, 3 volumes, Isabel Loureiro (org.), Editora Unesp, São Paulo, 2011  |  Rosa Luxemburg, A Acumulação do Capital e Anticrítica, 2 volumes, coleção "Os Economistas", Nova Cultural, São Paulo, 1988  |  Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, Boitempo, São Paulo, 1998  |  J. P. Nettl, Rosa Luxemburgo, Ediciones Era, México, 1974; Rosa Luxemburg, Il Saggiatore, Milano, 1978 |  Carl E. Schorske, German Social Democracy 1905-1917, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2014 | H. Schurer, The Russian Revolution of 1905 and the Origins of German Communism, The Slavonic and East European Review, Vol. 39. N. 93 (Jun. 1961) pp. 459-471



Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.  


Die Befreiung der Arbeiterklasse muß das Werk der Arbeiterklasse selbst sein.







segunda-feira, 22 de junho de 2015

A claraboia e o holofote #29 (IV)







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista






Rosa Luxemburg



Questões de organização da social-democracia russa (1904)




Pela primeira vez, Lenin


Em 1903, as disputas internas do Partido Operário Social-democrata Russo levaram à cisão entre mencheviques e bolcheviques. As duas facções se apressaram em conquistar o apoio das autoridades do SPD. Por serem mais conhecidos, os mencheviques, tendo à frente Martov, Axelrod e Dan pediram contribuições dos aliados alemães para o jornal Iskra, que agora controlavam.  Os únicos membros do SPD que sabiam algo da situação russa eram Parvus e Rosa. Ele não quis se comprometer, mas Rosa - que não era amiga dos mencheviques, mas tinha pendências com Lenin a respeito da questão da autodeterminação dos povos - aceitou escrever um longo artigo em que criticava a concepção de partido que Lenin apresentara em Que Fazer? 

O Lenin de 1903 era praticamente um desconhecido ("Veja, esse tal de Lenin nós não o conhecemos. Ele é uma incógnita para nós; mas conhecemos bem Plekhanov e Axelrod" disse Kaustky na época - apud J. P. Nettl, Rosa Luxemburgo, p. 241), ao passo que Rosa Luxemburgo ganhara projeção e certa influência no SPD. De fato, desde a crítica a Bernstein em Reforma social ou revolução, a jovem e brilhante marxista polonesa se tornara a mais séria defensora do compromissos assumidos pelo SPD no Programa de Erfurt (1891): a preparação dos trabalhadores para conquista do poder a longo prazo e a luta pelas reformas sociais a curto prazo. Portanto, quem respondia a Lenin era uma guardiã convicta dos objetivos e das táticas da social-democracia alemã e não uma burocrata do partido. 

A organização partidária social-democrata que Rosa contrapunha ao ultracentralismo de Lenin não era realmente a do SPD alemão. Não era aquela que existia, mas a que deveria ser: um partido democrático que se integrasse ao movimento da massa operária, que o orientasse, sem querer comandá-lo. Um partido que aprendesse com o processo histórico e que resolvesse dialeticamente a oposição entre o enclausuramento numa seita dogmática e a dissolução nas negociações do parlamentarismo burguês.


Excertos do artigo de Rosa


A situação peculiar da social-democracia russa
"Coube à social-democracia russa uma tarefa singular e sem precedentes na história do socialismo: criar, num Estado absolutista, uma tática social-democrata, baseada na luta de classes proletária. A costumeira comparação que se faz entre a atual situação da Rússia e a situação alemã na época das leis antissocialistas é infundada, pois encara a situação russa de um ponto de vista policial e não político. (...) Na Rússia deve-se realizar o experimento contrário: criar uma social-democracia sem a dominação política imediata da burguesia". (Questões de organização da social-democracia russa, Textos Escolhidos, volume I, p. 152)

"Isso moldou, de modo particular, não apenas a questão da transplantação da doutrina socialista para solo russo, não apenas a questão da agitação, como também a da organização. (...) A questão da organização é, por conseguinte, particularmente difícil para a social-democracia russa, não apenas porque deve fazê-la surgir sem todos os auxílios formais da democracia burguesa, mas sobretudo, porque deve criá-la, por assim dizer, como o amado Deus Pai, “do nada”, no ar rarefeito, sem a matéria-prima política que, de outra maneira, é preparada pela sociedade burguesa". (p. 153)

A posição de Lenin: o ultracentralismo
“Assim, o Comitê central aparece como o verdadeiro núcleo ativo do partido, e todas as demais organizações apenas como seus instrumentos executivos. Lenin vê justamente na união do mais rigoroso centralismo organizativo com o movimento de massas social-democrata um princípio específico do marxismo revolucionário e traz uma série de fatos em apoio à sua concepção”. (pp. 154-5)

Centralismo social-democrata X ultracentralismo jacobino-blanquista
“Destinada a representar, nos limites de um dado Estado, a totalidade dos interesses do proletariado como classe, em oposição a todos os interesses parciais e de grupo do proletariado, a social-democracia esforça-se naturalmente, em toda parte, por unir todos os grupos nacionais, religiosos e profissionais da classe operária num único partido comum, unificado. (...)
Do ponto de vista das tarefas formais da social-democracia como partido de luta, o centralismo organizativo aparece desde o início como uma condição de cuja realização dependem, numa relação direta, a capacidade de luta e a energia do partido. Entretanto, as condições históricas específicas da luta proletária são aqui muito mais importantes que o ponto de vista das exigências formais de qualquer organização de luta.
Na história da luta de classes, o movimento social-democrata foi o primeiro que sempre contou, em todos os seus momentos e em todo o seu percurso, com a organização e a ação autônoma e direta da massa.
Assim sendo, a social-democracia cria um tipo de organização totalmente diferente dos anteriores movimentos socialistas, como os de tipo jacobino-blanquista.
Lenin parece subestimar isso quando, no seu livro, exprime a opinião de que o revolucionário social-democrata nada mais é que 'um jacobino indissoluvelmente ligado à organização do proletariado com consciência de classe'. Para Lenin, toda a diferença entre a social-democracia e o blanquismo consiste na organização e na consciência de classe do proletariado, em lugar da conspiração de uma pequena minoria. Esquece-se que com isso produz-se uma completa reavaliação do conceito de organização, um conteúdo inteiramente novo para o conceito de centralismo, uma concepção inteiramente nova da relação recíproca entre a organização e a luta.
O blanquismo não levava em consideração a ação imediata da massa operária e, portanto, também não precisava de uma organização de massa. Ao contrário, como a grande massa  popular só devia aparecer no campo de batalha no momento da revolução, e a ação temporária consistia na preparação de um golpe revolucionário, dado por uma pequena minoria, o sucesso da tarefa exigia diretamente a clara demarcação entre as pessoas encarregadas dessa ação determinada e a massa popular. Mas isso igualmente possível e realizável porque não existia nenhuma ligação interna entre a atividade conspirativa de uma organização blanquista e a vida cotidiana da massa popular.
Ao mesmo tempo, a tática, bem como as tarefas detalhadas da ação, já que sem ligação com o solo da luta de classes elementar, eram livremente improvisadas, elaboradas em detalhe, fixadas e prescritas de antemão, como um plano determinado. Assim, os membros ativos da organização transformavam-se naturalmente em simples órgãos executivos de uma vontade predeterminada fora de seu próprio campo de ação, em instrumentos de um comitê central. Com isso estava dado também o segundo momento do centralismo conspirador: a submissão absoluta e cega das células do partido às autoridades centrais e a extensão do poder decisivo destas últimas até a mais extrema periferia da organização partidária.
Radicalmente diversas são as condições da ação social-democrata. Esta nasce historicamente da luta de classes elementar. E move-se na contradição dialética de que só na própria luta é recrutado o exército do proletariado e de que também, só na luta, as tarefas da luta se tornam claras. Organização, esclarecimento e luta não são aqui momentos separados, mecânica e temporalmente distintos, como num movimento blanquista, mas são apenas diferentes aspectos do mesmo processo. Por um lado, exceto quanto aos princípios gerais da luta, não existe um conjunto detalhado de táticas, já pronto, preestabelecido, que um comitê central possa ensinar aos membros da social-democracia, como se estes fossem recrutas. Por outro lado, o processo de luta que cria a organização conduz a uma constante flutuação da esfera de influência da social-democracia.
Disso resulta que a centralização social-democrata não pode fundar-se na obediência cega, na subordinação mecânica dos militantes a um poder central. E, por outro lado, nunca se pode erguer uma parede divisória absoluta entre o núcleo do proletariado com consciência de classe, solidamente organizado no partido, e as camadas circundantes, já atingidas pela luta de classes, que se encontram em processo de esclarecimento de classe. O estabelecimento da centralização na social-democracia sobre estes dois princípios [subordinação cega e separação do núcleo organizativo do partido] parece-nos uma transposição mecânica dos princípios organizativos do movimento blanquista de círculos de conspiradores para o movimento social-democrata das massas operárias. (...) [O centralismo social-democrata] é por assim dizer , um ‘autocentralismo’ da camada dirigente do proletariado, é o domínio da maioria no interior da sua própria organização.
Essa análise do conteúdo próprio da social-democracia mostra claramente que não podem ainda hoje existir plenamente na Rússia as condições necessárias para ele. Essas condições são: a existência de uma importante camada de proletários já educados na luta política e a possibilidade de exprimirem sua capacidade de ação por meio da influência direta exercida sobre os congressos públicos do partido, a imprensa partidária etc". (pp. 155-8)



Crítica ao conceito de disciplina partidária de Lenin
"Tanto mais surpreendente é a certeza oposta de Lenin de que todas as precondições para a constituição de um grande partido operário, fortemente centralizado, já existem na Rússia. Ele mostra novamente uma concepção demasiado mecânica da organização social-democrata quando proclama, com otimismo, que agora já ‘não é o proletariado, mas certos intelectuais, na social-democracia russa, que carecem de autoeducação, no sentido da organização da disciplina”, e quando glorifica o valor educativo da fábrica para o proletariado, a qual o tornaria maduro, desde o início, para a ‘disciplina e a organização’. A disciplina que Lenin tem em vista não é, de forma alguma, inculcada no proletariado apenas pela fábrica, mas também pela caserna e pelo moderno burocratismo, numa palavra, por todo o mecanismo do Estado burguês centralizado. É apenas fazer mau uso dessa palavra de ordem designar-se igualmente por ‘disciplina’ dois conceitos tão opostos quanto a ausência de vontade e de pensamento numa massa de carne de muitas pernas e braços que executa movimentos mecânicas de acordo com a batuta, e a coordenação voluntária de ações políticas conscientes de uma camada social, dois conceitos tão opostos quanto a obediência cadavérica de uma classe dominada e a rebelião organizada de uma classe, combatendo pela sua libertação. Não é partindo da disciplina nele inculcada pelo Estado capitalista, com a mera transferência da batuta da mão da burguesia para a de um comitê central social-democrata, mas pela quebra, pelo extirpamento desse espírito de disciplina servil, que o proletariado pode ser educado para a nova disciplina, a autodisciplina voluntária da social-democracia". (p. 159)


Onde entra o conceito de espontaneidade
"O ultracentralismo de Lenin só teria um objetivo politico se usasse o seu poder para criar uma tática comum de luta para desencadear uma grande ação política na Rússia. O que vemos, porém, nas transformações do movimento russo até hoje? As mais importantes e fecundas mudanças táticas dos últimos dez anos não foram 'inventadas' por determinados dirigentes do movimento e, muito menos, por organizações dirigentes, mas foram sempre o produto espontâneo do próprio movimento desencadeado. Assim ocorreu na Rússia, na primeira etapa do movimento proletário propriamente dito, iniciada no ano de 1896 com a explosão elementar da gigantesca greve de São Petersburgo, que inaugurou a ação econômica de massas do proletariado russo. Do mesmo modo foi aberta a segunda fase, totalmente espontânea, a das manifestações políticas de rua, pela agitação dos estudantes de São Petersburgo em março de 1901. A significativa mudança de tática que veio a seguir, abrindo novos horizontes,  foi a greve de massa em Rostov sobre o Don, que rebentou 'por si mesma', com suas improvisadas agitações de rua ad hoc, comícios populares ao ar livre, discursos públicos que, poucos anos antes, o mais audacioso e temerário social-democrata, vendo nisso uma quimera, não teria ousado imaginar. Em todos esses casos, no começo era 'a ação'. A iniciativa e a direção consciente das organizações social-democratas representaram aí um papel extremamente insignificante". (p. 160-1)


Vantagens da tática conservadora da social-democracia alemã
"Em suas grandes linhas, a tática da social-democracia não é de modo algum ‘inventada’, mas é o resultado de uma série ininterrupta de grandes atos criadores da luta de classes experimental, frequentemente elementar. Também aqui o inconsciente precede o consciente, a lógica do processo histórico objetivo precede a lógica do processo histórico subjetivo dos seus portadores. O papel da direção social-democrata é, portanto, de caráter essencialmente conservador, como o demonstra a experiência: cada vez que um novo terreno de luta é conquistado e levado até às últimas consequências, é logo transformado num baluarte contra posteriores inovações em maior escala. A atual tática da social-democracia alemã, por exemplo, é universalmente admirada em virtude da sua notável multiformidade, flexibilidade e, ao mesmo tempo, firmeza. Porém, isso apenas significa que o nosso partido, na sua luta cotidiana, adaptou-se admiravelmente, até nos menores detalhes, ao atual terreno parlamentar, que sabe explorar todo o terreno de luta oferecido pelo parlamentarismo, fazendo-o de acordo com seus princípios. Mas, ao mesmo tempo, esta forma tática encobre a tal ponto os horizontes mais além que, em grande medida, aparece a tendência a eternizar e a considerar a tática parlamentar como pura e simplesmente a tática da luta da social-democracia". (p. 162)

"Porém, atribuir à direção partidária tais poderes absolutos de caráter negativo, como faz Lenin, é fortalecer artificialmente, e em perigosíssimo grau, o conservadorismo inerente à essência de qualquer direção partidária. (...) O ultracentralismo preconizado por Lenin parece-nos, em toda a sua essência, ser portador, não de um espírito positivo e criador, mas do espírito estéril do guarda-noturno. Sua preocupação consiste, sobretudo, em controlar a atividade partidária e não em fecunda-la, em restringir o movimento e não em desenvolvê-lo, em importuná-lo e não em unificá-lo". (p. 163)

É o desenvolvimento histórico que dá à social-democracia o seu papel de representar os oprimidos e os interesses progressistas
"A proposição segundo a qual a social-democracia representa os interesses de classe do proletariado e, por conseguinte, o conjunto dos interesses progressistas da sociedade e de todas as vítimas oprimidas pela ordem social burguesa não é para ser meramente interpretada no sentido de que no programa da social-democracia todos esses interesses estão idealmente sintetizados. Essa proposição torna-se verdadeira por meio do processo de desenvolvimento histórico, em virtude do qual a social-democracia, também como partido político, gradualmente tornar-se o abrigo dos elementos mais variados e mais insatisfeitos da sociedade, transformando-se realmente no partido do povo contra uma ínfima minoria da burguesia dominante". (p. 172)



O ultracentralismo de Lenin visa afastar o oportunismo, mas isso é impossível. O oportunismo é um risco tão inevitável à  social-democrata, quanto à queda no estado de seita 
"O afluxo de elementos burgueses está longe de ser a única fonte da corrente oportunista na social-democracia. A outra fonte reside na essência da própria luta social-democrata, nas suas contradições internas. O avanço histórico-mundial do proletariado até a vitória consiste num processo cuja particularidade reside no fato de que aqui, pela primeira vez na história, as próprias massas populares, contra todas as classes dominantes, impõem sua vontade. Porém, esta vontade só pode ser realizada fora e além da atual sociedade. Mas, por outro lado, as massas só podem formar essa vontade na luta cotidiana, contra a ordem estabelecida, portanto dentro dos seus limites. A unificação da grande massa do povo com um objetivo que vai além de toda a ordem estabelecida, da luta cotidiana com a transformação revolucionária, nisto consiste a contradição dialética do movimento social-democrata, que, de acordo com o processo de desenvolvimento como um todo, precisa avançar entre dois obstáculos: entre a perda do seu caráter de massa e o abandono do objetivo final, entre a recaída no estado de seita e a queda no movimento reformista burguês. Por isso é uma ilusão totalmente a-histórica pensar que a tática social-democrata em sentido revolucionário possa ser garantida, previamente e de uma vez por todas; que o movimento operário possa, de uma vez por todas, ser defendido contra desvios oportunistas". (pp. 173-4)      

Os erros do movimento operário são fecundos
"E, por fim  precisamos admitir francamente: os erros cometidos por um movimento operário verdadeiramente revolucionário são, do ponto de vista histórico, infinitamente mais fecundos e valiosos que a infalibilidade do melhor ‘comitê central’". (p. 175)



Dois comentários


“O debate [entre Rosa e Lenin] não deve – embora seja costume – ser visto com uma colisão entre dois conceitos fundamentalmente irreconciliáveis da organização e também da revolução. Em primeiro lugar, o conhecimento que Rosa tinha das condições da Rússia era em realidade muito mais reduzido do que parecia (...) Ela enaltecia as virtudes alemãs com muito mais energia do que estava autorizada por sua fé nelas, ou do que faria em qualquer outro contexto que não fosse o russo.(...) Em segundo lugar, suas próprias atitudes com o partido polonês dificilmente se conciliavam com esse afã de ‘democracia’.
(...) Porém, por baixo disso havia uma questão fundamental, relativa não à organização mas à consciência de classe, à sua índole e ao seu desenvolvimento. Lenin acreditava que sem o esforço de uma minoria seleta revolucionária a consciência de classe do operário estava condenada a um círculo vicioso de impotência, que nunca poderia se elevar acima da atividade sindical. Essa havia sido a matéria de sua luta com os economicistas (os quais de fato teriam concordado com muitas de suas proposições; como costumava fazer, Lenin radicalizava sua análise atribuindo a seus contrários uma opinião extremada que tinha pouca relação com a realidade). Mas, em verdade, ele via o desenvolvimento da consciência de classe em função de um esforço crítico mínimo de um modo semelhante ao dos modernos economistas em relação à “decolagem” do desenvolvimento: uma quantidade de esforço injetado num sistema maior que ele permitiria que ele se tornasse capaz de se engendrar a si mesmo. Por outro lado, Rosa Luxemburgo acreditava que a consciência de classe era essencialmente um problema de atrito entre a social-democracia e a sociedade. O atrito era então a principal função da consciência de classe. Quanto mais intimamente estava a social-democracia confrontada com a sociedade burguesa em todas as frentes – econômica e política, industrial e social, mental e física – tanto maior e mais rápido seria o crescimento da consciência de classe. (...) A solução de Rosa era sempre mais atrito, maior confronto, um enfrentamento cara a cara, punho a punho, em lugar de uma injeção específica e peculiar de energia por alguma elite. Com sua própria experiência e seu modo de vida, ela demonstrava que as elites eram necessárias, mas que se lhes devesse atribuir uma função específica na teoria ou na estratégia marxista era outra coisa muito distinta. Ela não era analista nem praticante do poder, mas da influência; no lugar de um dínamo que movesse toda a fábrica socialista, a elite deveria ser um imã com um forte campo de influência sobre as estruturas existentes, e além disso um imã cuja intensidade efetiva crescesse à medida que mais atrito aumentasse a voltagem da corrente elétrica. Uma vez mais, o atrito era a fonte de toda a energia revolucionária, análise já indicada em seu artigo Reforma social ou revolução e muito elaborado depois de 1910”.
(J.P. Nettl, Rosa Luxemburgo, pp. 244; 245-6)


"No seu artigo de 1904, Rosa argumentou que a elite organizacional de Lenin, à maneira de Blanqui, acabaria se isolando das massas e que perseguiria apenas táticas rígidas e predeterminadas que falhariam em levar em conta a criatividade espontânea das massas revolucionária. Na realidade, Rosa Luxemburg estava bem errada, pois Lenin era infinitamente flexível em suas táticas (por exemplo, as súbitas reviravoltas dos bolcheviques em sua atitude para com os sovietes no verão de 1917, ou a política de ‘pausa para respirar’ de Brest-Litovsk, ou a instituição de uma ‘retirada estratégica’ da NEP em 1921). De fato, ele era muito mais flexível em sua estratégia e táticas do que ela. Como pode ser visto na seu escrito sobre a Revolução Bolchevique, ela permaneceu inflexível e intransigente a respeito do campesinato e da questão das nacionalidades até o final de sua vida.
Lenin não tinha nenhuma intenção de isolar a facção bolchevique em relação às massas russas à maneira de Bakunin, Nechaev e Tkachev. Seu artigo Um passo à frente era acima de tudo uma acusação da ineficácia da ‘mentalidade de círculo’. Ele queria uma elite revolucionária como queria Blanqui, mas também pretendia reunir em volta desta elite um movimento de massa. Em seu discurso no Segundo Congresso do Partido Operário Social-democrata Russo, ele comentou que a organização partidária não poderia consistir apenas de revolucionários profissionais. Ao contrário, Lenin sustentava, ‘nós precisamos das mais diversas organizações de todos os tipos, níveis e matizes, desde as organizações pequenas e secretas até as organizações mais amplas e livres, lose Organisationen’. Era essa mistura habilidosa de elitismo e influência na massa que foi o produto do gênio organizacional de Lenin”.
(Charles F. Eliott, Lenin, Rosa Luxemburg and the dilema of the non-revolutionary proletariat, p. 333)



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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.  


Die Befreiung der Arbeiterklasse muß das Werk der Arbeiterklasse selbst sein.