quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A claraboia e o holofote #29 (XII)







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista






Rosa Luxemburg


A ordem reina em Berlim (1919)



‘A ordem reina em Berlim!’, proclama triunfante a imprensa burguesa, proclamam Ebert e Noske, proclamam os oficiais das ‘tropas vitoriosas’ que a ralé pequeno-burguesa de Berlim acolhe nas ruas, acenando com o lenço e gritando hurra! Perante a história mundial, a glória e a honra das armas alemãs estão salvas. Os lamentáveis vencidos de Flandres e Argonne restabeleceram sua reputação com brilhante vitória – sobre 300 ‘spartakistas’ no Vorwärts. Os tempos  da gloriosa invasão da Bélgica pelas tropas alemãs, os tempos do general Von Emmich, o vencedor de Liège, empalidecem diante dos feitos dos Reinhardt e cia. nas ruas de Berlim. Massacre de parlamentares que queriam negociar a rendição do Vorwärts e que foram mortos a coronhadas pela soldadesca do governo até ficarem irreconhecíveis, a ponto de a identificação dos corpos ser impossível; prisioneiros postos contra a parede e assassinados de tal maneira que o crânio e o cérebro esguicharam. Perante feitos tão memoráveis quem poderia ainda pensar nas lamentáveis derrotas diante dos franceses, ingleses e norte-americanos? ‘Spartakus’ é o inimigo, e Berlim, o lugar onde nossos oficiais pretendem vencer; Noske, o ‘trabalhador’, é o general que sabe organizar a vitória ali onde Ludendorff foi derrotado.
(...)
‘A ordem reina em Varsóvia!’, ‘A ordem reina em Paris!’, ‘A ordem reina em Berlim!’ É assim que a cada meio século, de um centro a outro da luta histórico-mundial, se propalam os anúncios dos guardiões da ‘ordem’. E os exultantes ‘vencedores’ não percebem que uma ‘ordem’ que precisa ser periodicamente mantida com carnificinas sangrentas vai, de maneira inexorável, ao encontro de seu destino histórico, de sua queda. O que foi essa última ‘semana spartakista’ em Berlim, o que ela trouxe, o que ela nos ensinou? Em meio à luta, em meio aos gritos de vitória da contrarrevolução, os proletários revolucionários devem prestar contas sobre o que aconteceu, medir os eventos e seus resultados por um amplo parâmetro histórico. A revolução não tem tempo a perder, ela continua se precipitando em direção a seus grandes objetivos – por cima de túmulos ainda abertos, por cima de ‘vitórias’ e ‘derrotas’. Seguir conscientemente suas linhas de força, seus caminhos é a primeira tarefa dos que combatem pelo socialismo internacional.

Era de se esperar, nesse enfrentamento, uma vitória decisiva do proletariado revolucionário, podia-se esperar a queda de Ebert-Scheidemann e a instauração da ditadura socialista? Certamente que não, se se levam em conta todos os elementos decisivos sobre a questão. Nesse momento, o ponto fraco da causa revolucionária consiste na imaturidade política da massa de soldados, que continuam a deixar-se utilizar por seus oficiais em função de objetivos contrarrevolucionários inimigos do povo; só isso já é uma prova de que neste conflito não era possível uma vitória duradoura da revolução. Por sua vez, a imaturidade dos próprios militares é apenas um sintoma da imaturidade geral da revolução alemã.

O meio rural, de onde provém uma grande porcentagem da massa dos soldados, quase não foi tocado, nem antes nem depois da revolução. Até agora Berlim ainda está praticamente isolada do resto do Reich. É certo que os centros revolucionários da província – Renânia, costa do Mar do Norte, Brunswick, Saxônia, Wüttemberg – estão de corpo e alma ao lado do proletariado berlinense. Mas, antes de tudo, o que falta é a coordenação imediata da ofensiva, a ação comum direta que daria à investida e à rapidez de resposta do operariado berlinense uma eficácia incomparavelmente maior. Em seguida – somente nesse contexto mais profundo é que se encontram as insuficiências políticas da revolução – as lutas econômicas, a verdadeira fonte vulcânica que alimenta continuamente a luta de classes, estão somente em seu estágio inicial.

O que resulta de tudo isso é que não se podia contar nesse momento com uma vitória definitiva, duradoura. Será que por isso a luta das últimas semanas foi um ‘erro’? Sim, caso se tratasse de uma ‘investida’, de um assim chamado ‘golpe’!  Mas o que foi o ponto de partida das últimas semanas de combate? Como em todos os casos precedentes (...) – uma brutal provocação do governo! (...) A revolução não opera à sua vontade, em campo raso, segundo um plano preparado por hábeis ‘estrategistas’. Seus adversários também tomam a iniciativa, sim, em regra geral, muito mais que a própria revolução.

Posto diante da grosseira provocação dos Ebert-Scheidemann, o operariado revolucionário era compelido a pegar em armas. Sim, para a revolução era uma questão de honra rechaçar imediatamente o ataque com toda a energia, se não se quisesse encorajar o contínuo avanço da contrarrevolução, se não se quisesse que as fileiras revolucionárias do proletariado e o crédito moral da revolução alemã na Internacional fossem abalados.

De resto, a imediata resistência das massas berlinenses surgiu espontaneamente com uma energia tão natural que, desde o primeiro arranque, a vitória moral ficou do lado da ‘rua’.

Ora, a lei vital interna da revolução consiste em nunca parar no estágio atingido, em não cair na inatividade, na passividade. A melhor parada é um golpe certeiro. Essa regra elementar da luta domina justamente todos os passos da revolução. É muito compreensível – e mostra o instinto sadio, o frescor da força intrínseca do proletariado berlinense – que ele não se contentasse em reinstalar Eichhorn em seu posto [*Eichhorn, membro do USPD, havia sido afastado da chefia de policia em Berlim por ser leal aos companheiros operários revoltosos], que avançasse espontaneamente para a ocupação de outros postos de poder da contrarrevolução: a imprensa burguesa, o escritório oficioso da agência de notícias, o Vorwärts. Todas essas medidas tomadas pelas massas eram consequência do conhecimento instintivo de que, por sua vez, a contrarrevolução não se satisfaria com a derrota que lhe fora infligida, mas que preparava uma demonstração de força geral.

(...) Assim que o problema fundamental da revolução foi posto claramente – e nesta revolução ele consiste na queda do governo Ebert-Scheidemann como primeiro obstáculo para a vitória do socialismo -, esse problema ressurge em toda a sua atualidade e, com a fatalidade de uma lei natural, cada episódio isolado da luta põe o problema em toda a sua abrangência, mesmo que a revolução ainda esteja muito pouco madura. (...)

Dessa contradição, numa fase inicial do desenvolvimento revolucionário, entre o agravamento da tarefa e a falta de condições prévias para sua solução, resulta que as lutas isoladas da revolução acabem formalmente em derrota. Mas a revolução é a única forma de ‘guerra’ – esta é também uma de suas peculiares leis vitais – em que a vitória final só pode ser preparada por uma série de ‘derrotas’!

O que nos mostra toda a história das revoluções modernas e do socialismo? A primeira labareda da luta de classes na Europa, a rebelião dos tecelões de seda de Lyon em 1831, terminou com uma pesada derrota; o movimento cartista na Inglaterra – com uma derrota. O levante do proletariado parisiense nas jornadas de junho de 1848 acabou numa derrota esmagadora. A Comuna de Paris terminou com uma derrota terrível. O caminho do socialismo – levando em consideração as lutas revolucionárias – está inteiramente pavimentado de derrotas.

E, no entanto, essa mesma história leva irresistivelmente, passo a passo à vitória final! Onde estaríamos nós hoje sem essas ‘derrotas’ das quais extraímos experiência histórica, conhecimento, poder, idealismo? Hoje, que estamos no limiar da batalha final da luta de classes proletária, nós nos apoiamos precisamente nessas derrotas, sem poder prescindir de nenhuma delas, pois cada uma faz parte de nossa força e de nossa clareza de objetivos.




Os combates revolucionários estão em oposição direta com as lutas parlamentares. Na Alemanha, durante quatro décadas, tivemos gritantes ‘vitórias’ parlamentares, caminhávamos literalmente de vitória em vitória. E o resultado na grande prova histórica de 4 de agosto de 1914 foi uma esmagadora derrota política e moral, um colapso inaudito, uma bancarrota sem precedentes. As revoluções trouxeram-nos até agora derrotas gritantes, mas essas derrotas inevitáveis são justamente a garantia reiterada da futura vitória final.

Contudo, com uma condição! É preciso perguntar em que condições cada derrota se seu: se resultou do fato de que a energia bélica das massas, avançando, se chocou contra a falta de maturidade das condições históricas prévias, ou se a própria ação revolucionária foi paralisada por meias medidas, indecisões, fraquezas internas.

Os exemplos clássicos de ambos os casos são, de um lado, a Revolução de Fevereiro na França, e, de outro a Revolução de Março na Alemanha. A ação heroica do proletariado parisiense em 1848 tornou-se fonte viva de energia de classe para todo o proletariado internacional. As ridicularias da Revolução de Março alemã são como uma bola de ferro presa aos pés de todo moderno desenvolvimento alemão. Elas atuam, por meio da história particular da social-democracia alemã oficial, até os recentes acontecimentos da revolução alemã, até a crise dramática que acabamos de vivenciar.

Como aparece, à luz da questão histórica mencionada, a derrota da assim chamada ‘semana spartakista’? Será que foi uma derrota por causa da impetuosidade da energia revolucionária e da insuficiência maturidade da situação ou por causa da fraqueza e da irresolução da ação?

Ambas! O duplo caráter dessa crise, a contradição entre a atitude vigorosa, resoluta, ofensiva das massas berlinenses e a indecisão, a hesitação, as meias medidas da direção, eis as características particulares desse último período.

A direção fracassou. Mas a direção pode e deve ser novamente criada pelas massas e a partir delas. As massas são o decisivo, o rochedo sobre o qual se estabelecerá a vitória final da revolução. As massas estiveram à altura, elas fizeram dessa ‘derrota’ um elo daquelas derrotas históricas que constituem o orgulho e a força do socialismo internacional. E por isso a vitória futura florescerá dessa ‘derrota’.

‘A ordem reina em Berlim!” Esbirros estúpidos! A sua ‘ordem’ está construída sobre areia. Amanhã a revolução ‘se levantará de novo ruidosamente’, proclamando ao som de trompa:
Ich war, ich bin, ich werde sein
(Eu era, eu sou, eu serei! – Ferdinand Freiligrath)

(A ordem reina em Berlim in Textos Escolhidos, volume II, pp. 395-401)



Nota


Este artigo - o último de Rosa Luxemburg -  foi publicado no jornal spartakista Die Rote Fahne em 14 de janeiro de 1919. No dia seguinte, ela e Karl Liebknecht foram presos e assassinados pelos Freikorps, as brutais milícias de voluntários que Gustav Noske - social-democrata “especialista” em assuntos militares - utilizava para manter a “ordem” em Berlim. Os corpos dos dois grandes líderes spartakistas foram jogados no canal Landwehr. 

Sobre esse duplo assassinato, Nettl comenta: Sem dúvida nenhuma, o governo [*encabeçado pelos social-democratas Ebert e Scheidemann] não ordenou explicitamente que os dois líderes sparkistas fossem mortos. Todavia, Noske não fez nada para frear os seus colaboradores sedentos de sangue. Os membros do Freikorps estavam convencidos, na época e mais tarde, de que podiam contar com o apoio de Noske no decurso de um eventual processo. Além disso, já havia o precedente de fuzilamentos que tinham permanecido impunes.
(...)
Depois da derrota de janeiro, começou uma nova fase na relação entre Spartakus e o restante da sociedade. O abismo do qual até aquele momento os comunistas tinham falado em termos teóricos, com os assassinatos se tornou real: era o abismo da tumba. Se o SPD não tinha instigado de maneira direta o assassinato dos dois grandes dirigentes, pelo menos o havia tolerado. Esta culpa pesava mais do que qualquer divergência sobre a teoria e a tática revolucionária.” (J.P. Nettl, Rosa Luxemburg, Il Saggiatore, Milano1978pp. 386 e 390)







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Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios, Companhia das Letras, São Paulo, 1987  |  Gilbert Badia, Le Spartakisme et sa problématique, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 21e Année, No. 3 (May - Jun., 1966), pp. 654-667  |  Riccardo Bellofiore, Rosa Luxemburg and the Critique of Political Economy, Routledge, Abindgon, New York, 2009  |  George Castellan, A propos de Rosa Luxemburg, Revue d'histoire moderne et contemporaine (1954) T.23e, No. 4 (Oct. - Dec,. 1976), pp. 573-582  |  Charles F. Elliott, Lenin, Rosa Luxemburg and the dilemma of non-revolutionary proletariat, Midwest Journal of Political Science, vol. IX number 4 november 1965  |  Paul Frölich, Rosa Luxemburgo: vida y obra, Editorial Fundamentos, Madrid, 1976 | Norman Geras, A Actualidade de Rosa Luxemburgo, AntídotoLisboa 1978  |  J. W. von Goethe, Fausto, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1987  |  Daniel Guérin, Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária, Editora Perspectiva, São Paulo, 1982  | Eric J. Hobsbawn (org), História do Marxismo, O Marxismo na época da Segunda Internacional (3 volumes), Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1982, 1984  |  Hajo Holborn, A History of Modern Germany 1840-1945, Princeton University Press, Princeton, 1982 | M.C. Howard and J. E. King, A History of Marxian Economics, volume 1 1883-1929, Princeton University Press, New Jersey, 1989  |  Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism (3 vol.), Clarendon Press, Oxford, 1978 | Gérard Bensussan, George Labica, Dictionnaire Critique du Marxisme, Quadrige/PUF, Paris, 1999 |  Isabel Maria Loureiro, Rosa Luxemburg: os dilemas da ação revolucionária, Editora Unesp, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2004  |  Georg Lukács, Histoire et Conscience de Classe, Les Éditions de Minuit, Paris, Paris, 1976  | Ralph Haswell Lutz, The German Revolution 1918-1919, Cambridge University Press, 1967  |  Rosa Luxemburgo, Textos Escolhidos, 3 volumes, Isabel Loureiro (org.), Editora Unesp, São Paulo, 2011  |  Rosa Luxemburg, A Acumulação do Capital e Anticrítica, 2 volumes, coleção "Os Economistas", Nova Cultural, São Paulo, 1988  |  Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, Boitempo, São Paulo, 1998  |  J. P. Nettl, Rosa Luxemburgo, Ediciones Era, México, 1974; Rosa Luxemburg, Il Saggiatore, Milano, 1978 |  Carl E. Schorske, German Social Democracy 1905-1917, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2014 | H. Schurer, The Russian Revolution of 1905 and the Origins of German CommunismThe Slavonic and East European Review, Vol. 39. N. 93 (Jun. 1961) pp. 459-471




Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.  


Die Befreiung der Arbeiterklasse muß das Werk der Arbeiterklasse selbst sein.






sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A claraboia e o holofote #29 (XI)







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista






Rosa Luxemburg



Congresso de fundação do KPD -  Partido Comunista Alemão  (1919)


Nosso programa e a situação política


A tarefa que hoje enfrentamos – discutir e adotar nosso programa – vai além da circunstância formal de que ontem nos constituímos em um novo partido autônomo e que um novo partido precisa oficialmente adotar um programa; a discussão de hoje sobre o programa é motivada por grandes acontecimentos históricos, sobretudo pelo fato de que nos encontramos num momento em que o programa social-democrata, o programa socialista do proletariado, deve ser erigido em novas bases. Camaradas, retomamos assim a trama urdida por Marx e Engels no Manifesto Comunista há exatamente setenta anos. Como vocês sabem, o Manifesto Comunista considera o socialismo, a realização dos objetivos socialistas a tarefa imediata da revolução proletária. Foi a concepção que Marx e Engels defenderam na revolução de 1848 e que considerava igualmente a base da ação proletária em sentido internacional. Ambos acreditavam então – assim como todos os dirigentes do movimento proletário – que se estava perante a tarefa imediata de introduzir o socialismo; que bastava realizar a revolução política, apoderar-se do poder político estatal para que o socialismo imediatamente se tornasse carne e osso. Depois, como vocês sabem, os próprios Marx e Engels revisaram totalmente esse ponto de vista. Eis o que dizem da própria obra no primeiro prefácio, que ainda assinaram juntos, para a edição do Manifesto Comunista de 1872:


“Atualmente, essa passagem, [o fim da seção II, isto é as medidas práticas a serem tomadas para realizar o socialismo] seria hoje diferente em muitos aspectos. Tendo em vista o imenso desenvolvimento da grande indústria nos últimos 25 anos e, com ele, o progressivo desenvolvimento da organização da classe operária em partido; tendo em vista as experiências práticas, primeiro da revolução de fevereiro e depois, sobretudo, da Comuna de Paris, que pela primeira vez permitiu ao proletariado durante dois meses a posse do poder político, esse programa está hoje obsoleto em alguns pontos. A Comuna, especialmente, demonstrou que ‘a classe operária não pode simplesmente se apoderar da máquina estatal já pronta e colocá-la em movimento para seus próprios fins”.

E o que diz essa passagem considerada obsoleta? Lemos o seguinte na página 23 [da edição alemã de 1894] do Manifesto Comunista:

"O proletariado utilizará seu domínio político para arrancar pouco a pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos nas mãos do Estado, ou seja, do proletariado organizado, como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível a massa das forças produtivas.
Isso naturalmente só poderá ser realizado, no princípio, por uma intervenção despótica no direito de propriedade e nas relações burguesas de produção, isto é, por medidas que parecem economicamente insuficientes e insustentáveis, mas que, no curso do movimento, ultrapassam a si mesmas e são inevitáveis como meios para revolucionar todo o modo de produção.
Tais medidas, é claro, serão diferentes nos diferentes países.
Contudo, nos países mais avançados, as seguintes medidas poderão geralmente ser aplicadas:
1º) Expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra nas despesas do Estado.
2º) Imposto fortemente progressivo.
3º) Abolição do direito de herança.
4º) Confisco da propriedade de todos os emigrados e rebeldes.
5º) Centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio de um banco nacional com capital do Estado e monopólio exclusivo.
6º) Centralização dos meios de transporte nas mãos do Estado.
7º) Multiplicação das fábricas nacionais e dos instrumentos de produção, cultivo e melhoramento das terras segundo um plano comum.
8º) Trabalho obrigatório igual para todos; constituição de exércitos industriais, especialmente para a agricultura.
9º) Unificação dos serviços agrícolas e industriais; medidas tendentes a eliminar gradualmente as diferenças entre a cidade e o campo.
10º) Educação pública e gratuita de todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fábricas em sua forma atual. Combinação da educação com a produção matéria etc".

Como vocês veem, exceto por alguns detalhes, essas são as mesmas tarefas com que hoje, imediatamente nos defrontamos: a execução, a realização dos socialismo. Setenta anos separam o atual momento do tempo em que esse programa foi estabelecido; e a dialética histórica levou-nos hoje de volta à concepção que Marx e Engels haviam abandonado por considerá-la errada. Eles tinham então boas razões para considerá-la erada e abandoná-la. O desenvolvimento do capitalismo que, entretanto ocorreu, fez com que o erro de outrora hoje seja verdade, e hoje é tarefa imediata realizar o que Marx e Engels enfrentavam em 1848. Contudo, entre aquele ponto do desenvolvimento, o início, e a nossa concepção e tarefas atuais, existe todo o desenvolvimento não apenas do capitalismo, mas também do movimento proletário socialista e, em primeiro lugar, do movimento operário na Alemanha, país guia do proletariado moderno. Esse desenvolvimento ocorreu numa forma singular. Após as decepções da revolução de 1848, em que Marx e Engels abandonaram o ponto de vista segundo o qual o proletariado se encontrava na situação de poder imediata e diretamente realizar o socialismo, nasceram em todos os países partidos socialistas, social-democratas que adotaram um ponto de vista totalmente diferente. Proclamou-se como tarefa imediata a luta cotidiana no plano econômico e político para, pouco a pouco, formar os exércitos do proletariado, que seriam chamado a realizar o socialismo quando o desenvolvimento socialita tivesse alcançado a maturidade. Essa reviravolta, essa base totalmente diferente sobre a qual o programa socialista foi estabelecido adquiriu, sobretudo na Alemanha, uma forma bastante típica. Na Alemanha, até o colapso do 4 de agosto, predominava na social-democracia o Programa de Erfurt em que as chamadas tarefas mínimas urgentes ficavam em primeiro plano e o socialismo era transformado numa longínqua estrela distante, em objetivo final. Porém, mais importante do que aquilo que está escrito no Programa é a maneira pela qual é compreendido; e a compreensão do Programa era determinada por um documento histórico importante para a história de nosso movimento operário, a saber, o prefácio que Friedrich Engels escreveu em 1895 para Lutas de classes na França. Camaradas, não é apenas por interesse histórico que examino essas questões; pelo contrário, é uma questão bem atual e um dever histórico que nos incumbe, ao pormos nosso Programa no terreno em que Marx e Engels se encontravam em 1848. Em virtude das transformações introduzidas pelo desenvolvimento histórico, temos o dever de fazer, de maneira clara e consciente, uma revisão da concepção predominante na social-democracia alemã até o colapso de 4 de agosto. É aqui que essa revisão deve ser oficialmente feita.

Camaradas, como entendeu Engels a questão naquele famoso prefácio escrito em 1895 para Lutas de classes na França, de Marx, portanto já depois da morte deste? Voltando a 1848, ele mostrou em primeiro lugar que a concepção segundo a qual a revolução seria iminente tornara-se obsoleta. Em seguida, continua sua descrição:

“A história não nos deu razão, nem a nós nem a todos que como nós pensávamos. Ela mostrou que o grau de desenvolvimento econômico no continente ainda estava muito pouco maduro para permitir a eliminação da produção capitalista; mostrou-o por meio da revolução econômica que desde 1848 se estendeu a todo continente, implantou a grande indústria na França, Áustria, Hungria, Polônia e recentemente na Rússia, fazendo mesmo da Alemanha um país industrial de ponta – tudo isso em bases capitalistas, ainda perfeitamente suscetíveis de expansão em 1848”.

Expõe em seguida como, a partir daquela época, tudo mudou e aborda a questão das tarefas do partido na Alemanha:

“A guerra de 1870-71 e a derrota da Comuna de Paris deslocaram provisoriamente, como Marx havia predito, o centro de gravidade do movimento operário europeu da França para a Alemanha. A França precisou evidentemente de anos para se refazer da sangria de maio de 1871. Na Alemanha, em contrapartida, onde a indústria, favorecida pela benção dos bilhões franceses, se desenvolvia verdadeiramente como numa estufa e sempre mais rapidamente, a social-democracia crescia de maneira bem rápida e constante. Graças à inteligência dos trabalhadores alemães na utilização do sufrágio universal introduzido em 1866, o espantoso crescimento do partido manifestou-se aos olhos do mundo inteiro com números indiscutíveis”.

Segue-se a célebre enumeração, descrevendo nosso crescimento de uma eleição para a outra para o Reichstag, até chegarmos aos milhões de votos, e Engels conclui:

“Graças a essa eficaz utilização do sufrágio universal, uma forma de luta do proletariado, inteiramente nova, foi posta em ação e continuou a desenvolver-se rapidamente. Descobriu-se que as instituições estatais, nas quais se organiza a dominação da burguesia, ofereceu novas oportunidades para que a classe trabalhadora possa combater essas mesmas instituições estatais. Participou-se das eleições para certas Dietas, conselhos municipais, conselhos de notáveis, disputou-se à burguesia cada uma de suas posições em que uma boa parte do proletariado tinha algo a dizer. E assim o governo e a burguesia chegaram a temer mais a ação legal que a ação ilegal do partido operário, seus êxitos nas eleições mais do que os da rebelião”.

E aqui Engels começa uma crítica detalhada da ilusão segundo a qual, nas modernas condições do capitalismo, o proletariado poderia obter qualquer coisa nas ruas, com a revolução. Na medida em que estamos em plena revolução, uma revolução de rua com tudo o que ela comporta, penso que já é tempo de polemizar com uma concepção que oficialmente até o último minuto era habitual na social-democracia e que é corresponsável pelo que passamos em 4 de agosto de 1914.

Não quero dizer com isso que Engels, com suas declarações, compartilhe pessoalmente a culpa pela evolução que se produziu na Alemanha; digo apenas: aqui está um documento clássico que resume a concepção de que vivia a social-democracia alemã, ou melhor, que a matou. Aqui, camaradas, Engels expõe, com todo o conhecimento especializado de que dispunha no domínio da ciência militar, que, no estado atual de desenvolvimento do militarismo, da indústria e das grandes cidades, era pura ilusão acreditar que o povo trabalhador pudesse fazer revoluções de rua e vencer. Essa refutação teve duas consequências: primeiro, a luta parlamentar foi considerada a antítese da ação revolucionária direta do proletariado e quase o único meio da luta de classes. Essa crítica teve como resultado o parlamentarismo puro e simples. Segundo, considerou-se, curiosamente, que a mais poderosa organização do Estado de classes, o militarismo, a massa de proletários uniformizados, devia ser de antemão inacessível e imune à influência socialista. E quando o prefácio diz que seria mais insensato pensar que com o atual desenvolvimento de exércitos gigantescos o proletariado pudesse enfrentar soldados equipados com metralhadoras e com os mais recentes meios técnicos de combate, parte claramente do pressuposto de que todo soldado deve permanecer, de antemão e para sempre, um sustentáculo das classes dirigentes. Do ponto de vista da experiência atual e do Homem que se encontrava à cabeça de nosso movimento, esse erro seria incompreensível se não se soubesse em que circunstâncias efetivas nasceu o documento histórico mencionado. Em consideração a nossos dois grandes mestres e, sobretudo, a Engels que, tendo falecido muito mais tarde, defendia a honra e as opiniões de Marx, é preciso declarar que aquele, como se sabe, escreveu esse prefácio sob a pressão direta da fração parlamentar daquele tempo. Era a época em que na Alemanha – após o fim das leis antissocialistas no início dos anos 1890 – uma forte radical de esquerda se manifestava no interior do movimento operário alemão, procurando preservar os camaradas da total absorção numa luta puramente parlamentar. Para derrotar os elementos radicais na teoria e submetê-los na prática, para que graças à autoridade de nosso grandes mestres as massas deixassem de prestar-lhes atenção, Bebel e camaradas (exemplo típico do já era na época nossa situação: a fração parlamentar decidia, do ponto de vista intelectual e tático, sobre os destinos e tarefas do partido), Bebel e camaradas forçaram Engels, que vivia no exterior e devia confiar em suas afirmações, a redigir esse prefácio, uma vez que segundo eles era absolutamente necessário salvar o movimento operário alemão dos desvios anarquistas. Desde então essa concepção dominou a conduta da social-democracia alemã até nossa bela experiência de 4 de agosto de 1914. Foi a proclamação do parlamentarismo puro e simples. Engels não chegou a presenciar os resultados, as consequências práticas da utilização de seu prefácio, de sua teoria. Tenho certeza de que quando se conhecem as obras de Marx e Engels, quando se conhece o espírito revolucionário vivo, legítimo, autêntico que se manifesta em seus ensinamentos e em seus escritos, convencemo-nos de que Engels teria sido o primeiro a protestar contra os abusos resultantes do parlamentarismo puro e simples, contra essa corrupção, essa degradação do movimento operário tal como ocorreu na Alemanha décadas antes do 4 de agosto – pois 4 de agosto não caiu do céu como se fosse uma guinada inesperada, mas foi uma consequência lógica do que vivemos, dia após dia, ano após ano; Engels e Marx – se estivessem vivos -, teriam sido os primeiros a protestar com todas as forças contra isso, e frear brutalmente o veículo para que não caísse no pântano. Mas Engels morreu no mesmo ano em que escreveu o seu prefácio. Nós o perdemos em 1895; desde então, infelizmente, a direção teórica passou das mãos de Engels para às de um Kaustsky, e assistimos ao seguinte fenômeno: todo protesto contra o parlamentarismo puro e simples, o protesto vindo da esquerda a cada congresso do partido, sustentado por grupos maior ou menor de camaradas em luta encarniçada contra a corrupção cujas funestas consequências deviam aparecer a cada um, todos esses protestos foram tachados de anarquismo, anarcossindicalismo ou, no mínimo, antimarxismo. O marxismo oficial devia servir de cobertura para todas as hesitações, para todos os desvios em relação à verdadeira luta de classes revolucionária, para todas as meias medidas que condenavam a social-democracia alemã e, sobretudo, o movimento operário, inclusive o movimento sindical, a definhar nos limites e sobre o solo da sociedade capitalista, sem que houvesse a menor aspiração a sacudir a sociedade, a tirá-la dos eixos.

Camaradas, hoje vivemos o momento em que podemos dizer: retornamos a Marx, retornamos à sua bandeira. Ao declararmos hoje em nosso programa que a tarefa imediata outra não é senão – resumida em poucas palavras – fazer do socialismo uma verdade e um fato e destruir radicalmente o capitalismo, pomo-nos no terreno em que Marx e Engels se encontravam em 1848 e cujos princípios nunca abandonaram. Vê-se agora o que é o verdadeiro marxismo e o que era esse sucedâneo de marxismo que, sob o nome de marxismo oficial, ocupou tanto espaço na social-democracia alemã. Vejam pelos representantes desse marxismo a que ponto ele atualmente caiu: a assessor e adjunto de Ebert, David e consortes. Vemos aí os representantes oficiais da doutrina que durante dezenas de anos nos foi apresentada como o marxismo verdadeiro, autêntico. Não, o marxismo não levava a isso, a fazer política contrarrevolucionária com os Scheidemann. O verdadeiro marxismo combate igualmente aqueles que procuravam falsificá-lo; como uma toupeira, solapou os alicerces da sociedade capitalista e fez que hoje a melhor parte do proletariado alemão marchasse sob a nossa bandeira, a bandeira tempestuosa da revolução; e mesmo do outro lado, ali onde a contrarrevolução parece ainda dominar, temos partidários, futuros camaradas de luta.


Assim, camadaras, conduzidos pela marcha da dialética histórica e enriquecidos pela experiência do desenvolvimento capitalista dos últimos setenta anos, encontramo-nos, como já disse, no ponto em que se encontravam Marx e Engels em 1848, quando desfraldaram pela primeira vez a bandeira do socialismo internacional. Acreditava-se então, quando da revisão dos erros e ilusões de 1848, que o proletariado ainda tinha um longo caminho a percorrer até que o socialismo pudesse tornar-se realidade. Evidentemente os teóricos sérios não trataram nunca de fixar uma data obrigatória e certa para o colapso do capitalismo; porém, supunha-se vagamente que o caminho seria ainda muito longo, justamente o que exprime cada linha do prefácio escrito por Engels em 1895. Mas agora podemos fazer o balanço. Não foi um curtíssimo lapso de tempo em comparação com o desenvolvimento das antigas lutas de classes? Setenta anos de desenvolvimento do grande capitalismo bastaram para que hoje possamos pensar seriamente em eliminar o capitalismo da face da Terra. E mais: não somente somos hoje capazes de resolver essa tarefa, não somente é nosso dever para com o proletariado, como sua solução constitui hoje a única salvação para a sobrevivência da sociedade humana.

Será que essa guerra, camaradas, deixou alguma outra coisa da sociedade burguesa além de um enorme monte de escombros? Formalmente o conjunto dos meios de produção e mesmo numerosos instrumentos de poder, quase todos os instrumentos decisivos de poder, encontram-se nas ainda nas mãos da classe dominante. Não nos enganemos a esse respeito. Mas o que elas podem fazer com isso, fora tentativas obstinadas de restabelecer a exploração com um banho de sangue, não passa de anarquia. Elas foram tão longe que hoje o dilema enfrentado pela humanidade é: queda na anarquia ou salvação pelo socialismo. Os resultados da guerra mundial põem as classes burguesas na impossibilidade de encontrar uma saída no terreno de sua dominação de classe e do capitalismo. E é assim que podemos verificar a verdade que precisamente Marx e Engels formularam pela primeira vez num grande documento, o Manifesto Comunista, como base científica do socialismo: o socialismo se tornará uma necessidade histórica, no mais estrito sentido da palavra que hoje nós vivenciamos. O socialismo tornou-se uma necessidade, não apenas porque o proletariado não está mais disposto a viver em condições materiais oferecidas pelas classes capitalistas, mas também porque estamos todos ameaçados de desaparecer se o proletariado não cumprir o seu dever de classe, realizando o socialismo.

Camaradas, esta é a base geral sobre a qual foi elaborado o problema que hoje adotamos oficialmente e de cujo projeto vocês tinham tomado conhecimento na brochura ‘O que quer a Liga Spartakus?’. Ele encontra-se em oposição consciente à separação entre reivindicações imediatas da luta política e econômica, chamadas reivindicações mínimas, e o objetivo final socialista, como programa máximo. Em oposição consciente a isso, liquidamos hoje os resultados dos últimos setenta anos de desenvolvimento e, sobretudo, o resultado imediato da guerra, dizendo: para nós, agora, não existe programa mínimo nem programa máximo; o socialismo é uma única e mesma coisa – isso é o mínimo que temos de realizar hoje.

Não me estenderei aqui no que diz respeito às medidas detalhadas que propusemos em nosso projeto de programa, pois vocês têm a possibilidade de tomar posição sobre cada uma delas, e comentá-las aqui detalhadamente nos levaria muito longe. Considero como minha tarefa assinalar e formular apenas os grandes traços gerais que distinguem nossa tomada de posição programática daquela existente até hoje, a da assim chamada social-democracia alemão oficial. Em contrapartida, considero mais importante e mais urgente pormo-nos de acordo sobre a maneira de avaliar as circunstâncias concretas, a maneira de configurar as tarefas táticas, as palavras de ordem práticas que decorrem da situação política de acordo com a concepção que tentei caracterizar, segundo a qual a realização do socialismo constitui a tarefa imediata, cuja luz deve guiar todas as medidas, todas as tomadas de posição de nossa parte.

Camaradas, creio poder dizê-lo com orgulho, nosso Congresso é o congresso constitutivo do único partido socialista revolucionário do proletariado alemão. Esse Congresso coincide, por acaso, ou melhor, para falar com precisão, não por acaso, com uma guinada no desenvolvimento da própria revolução alemã. Pode-se dizer que com os acontecimentos dos últimos dias encerrou-se a fase inicial da revolução alemã, que encontramos agora num segundo estágio, mais avançado, do desenvolvimento; é dever de todos nós e ao mesmo tempo fonte de um melhor e mais profundo conhecimento para o futuro fazer nossa autocrítica, fazer um exame crítico aprofundado do que realizamos, do que criamos e do que negligenciamos; isso nos permitirá adquirir pontos de apoio para o nosso procedimento futuro. Lancemos um olhar perscrutados sobre a primeira fase da revolução que acabou de encerrar.

Seu ponto de partida foi o 9 de novembro. O 9 de novembro foi uma revolução cheia de insuficiências e de fraquezas. Não é de admirar. Essa revolução chegou após quatro anos de guerra, após quatro anos no decorrer dos quais, graças à educação da social-democracia e dos sindicatos livres, o proletariado alemão revelou uma dose de infâmia e de renegação de suas tarefas socialistas sem igual em nenhum outro país. Se nos pusermos sobre o terreno do desenvolvimento histórico – e é justamente o que fazemos como marxistas e socialistas -, não se pode esperar ver surgir de repente, em 9 de novembro de 1918, uma revolução grandiosa, com consciência de classe e dos fins a atingir, numa Alemanha que ofereceu a terrível imagem do 4 de agosto e dos quatro anos que se seguiram; o que o 9 de novembro nos fez viver foi muito mais o colapso do imperialismo existente do que a vitória de um princípio novo. Simplesmente havia chegado o momento em que o imperialismo, colosso de pés de barro, apodrecido por dentro, tinha que desabar; e o que se seguiu foi um movimento mais ou menos caótico, sem plano, pouquíssimo consciente, no qual o único vínculo unificador, o único princípio constante, libertador, era resumido na palavra de ordem: formação dos conselhos de operários e soldados. Era a palavra-chave dessa revolução que lhe conferiu imediatamente o caráter especial de revolução socialista proletária – apesar das insuficiências e fraquezas do primeiro momento; e quando vierem com calúnias contra os bolcheviques russos, nunca deveremos nos esquecer de responder: onde aprenderam vocês o abc da atual revolução. Com os russos, com os conselhos de operários e soldados; e aquela gentinha que hoje, à cabeça do ‘governo socialista’, considera sua função, de mãos dadas com o imperialismo inglês, assassinar traiçoeiramente os bolcheviques russos, apoia-se formalmente nos Conselhos de Trabalhadores e Soldados, é obrigada a reconhecer que foi a Revolução Russa a emitir as primeiras palavras de ordem da revolução mundial. Podemos dizer com segurança – e isso resulta por si mesmo de toda a situação: qualquer que seja o país, depois da Alemanha, em que a revolução proletária irrompa, seu primeiro gesto será a formação de Conselhos de Trabalhadores e Soldados.

É justamente nisso que consiste o vínculo que unifica internacionalmente a nossa ação, é a palavra-chave que separa fundamentalmente a nossa revolução de todas as revoluções burguesas anteriores; é bem característico das contradições dialéticas em que esta revolução se move, aliás como todas as revoluções, que em 9 de novembro, quando deu seu primeiro grito, seu grito de nascimento por assim dizer, ela tenha encontrado a fórmula que agrupou todo mundo. A revolução encontrou instintivamente essa fórmula, apesar de 9 de novembro estar situada muito aquém dela. Em virtude das insuficiências, das fraquezas, por falta de iniciativa pessoal e de clareza sobre as tarefas a realizar, ela deixou escapar, somente dois dias após a revolução, a metade dos instrumentos de poder que havia conquistado em 9 de novembro. Isso mostra, por um lado, que a revolução atual está submetida à lei todo-poderosa da necessidade histórica, o que nos garante que alcançaremos nosso objetivo passo a passo, apesar de todas as dificuldades, complicações e fraquezas pessoais; mas, por outro lado, ao confrontarmos essa palavra de ordem clara com as insuficiências da prática à qual estava ligada, é preciso dizer que esses eram justamente os primeiros passos da revolução; ela terá de fazer ume esforço poderoso e percorrer um longo caminho para crescer e realizar plenamente suas primeiras palavras de ordem.

Camaradas, a primeira fase, que vai de 9 de novembro até estes últimos dias, é caracterizado por ilusões de todos os lados. A primeira ilusão do proletariado e dos soldados que fizeram a revolução foi a da unidade sob a bandeira do ‘socialismo’. Nada pode caracterizar melhor as fraquezas internas da revolução de 9 de novembro do que seu primeiro resultado: elementos que, duas horas antes da explosão da revolução, estimavam ter por função persegui-la, torna-la impossível, chegaram à cabeça do movimento – os Ebert-Scheidemann com Haase! A ideia da união das diferentes correntes socialistas no júbilo geral da unidade era a divisa da revolução de 9 de novembro – uma ilusão que devia vingar-se de forma sangrenta e com a qual deixamos de viver e de sonhar só nos últimos dias; mesma ilusão da parte do Ebert-Scheidemann e mesmo dos burgueses – de todos os lados. Além disso, uma ilusão da burguesia ao fim desse estágio: ela esperava, na realidade, manter as massas com rédea curta e reprimir a revolução socialista graças à combinação Ebert-Haase, graças ao ‘governo socialista’; e uma ilusão do governo Ebert-Scheidemann, que esperava poder deter a luta de classes socialista das massas trabalhadoras com a ajuda das massas de soldados no front. Essas eram as diversas ilusões que explicam também os acontecimentos dos últimos tempos. Todas as ilusões desfizeram-se em nada. Viu-se que a aliança de Haase com Ebert-Scheidemann sob o emblema do ‘socialismo’ não passava, na realidade, de uma folha de parreira sobre uma política puramente contrarrevolucionária; e, como em todas as revoluções, pudemos nos curar dessa ilusão. Existe um método revolucionário particular para curar o povo de suas ilusões, mas a cura é paga, infelizmente, com o sangue do povo. Nessa revolução, exatamente como em todas as anteriores, o sangue das vítimas (...) marcaram a grande massa com o selo desse saber, dessa verdade: o que vocês juntaram como se fosse um governo socialista nada mais é que um governo da contrarrevolução burguesa; quem continua a tolerar esse estado de coisas trabalha contra o proletariado e contra o socialismo.
(...)
Camaradas, eis um imenso campo a lavrar. Devemos fazer os preparativos de baixo para cima, devemos dar aos Conselhos de Trabalhadores e Soldados tal poder que, quando o governo Ebert-Scheidemann ou outro parecido for derrubado, isso será apenas o ato final. Assim, a conquista do poder não deve ser feita de uma vez, mas ser progressiva: nós nos introduziremos no Estado burguês até ocuparmos todas as posições, que defenderemos com unhas e dentes. E a luta econômica, em minha opinião e na de meus amigos mais próximos do partido, deve ser igualmente conduzida pelos conselhos de trabalhadores. São também os conselhos de trabalhadores que devem dirigir os conflitos econômicos e fazer-lhes tomar vias sempre mais largas. Os conselhos de trabalhadores devem ter todo o poder no Estado. É nessa direção que devemos trabalhar nos próximos tempos; se assumirmos essa tarefa, resulta daí que devemos contar com uma colossal exacerbação da luta nos próximos tempos. Pois trata-se de lutar passo a passo, corpo a corpo, em cada Estado, em cada cidade, em cada aldeia, em cada comuna, a fim de transferir para os Conselhos de Trabalhadores e Soldados todos os instrumentos do poder que será preciso arrancar, pedaço a pedaço, à burguesia.

Para isso, é preciso primeiro educar nossos camaradas, é preciso educar os proletários. Mesmo onde existem Conselhos de Trabalhadores e Soldados, ainda falta a consciência de quais são suas funções. Precisamos primeiro ensinar às massas que o Conselho de Trabalhadores e Soldados deve ser, em todas as direções, a alavanca da maquinaria do Estado, que ele deve apoderar-se de todos os poderes para fazê-los convergir para o mesmo canal: a transformação socialista. Mesmo as massas trabalhadoras, já organizadas nos Conselhos de Trabalhadores e Soldados, encontram-se a milhas disso, exceto naturalmente algumas pequenas minorias de proletários, que têm clara consciência de suas tarefas. Isso não constitui uma carência, mas é algo muito normal, Exercendo o poder, a massa deve aprender a exercer o poder. Não há nenhum outro meio de lhe ensinar isso. Felizmente, foi-se o tempo em que se tratava de ensinar o socialismo ao proletariado. Para os marxistas da escola de Kaustsky esse tempo parece não ter acabado. Educar as massas proletárias de maneira socialista significava: fazer-lhes conferências, distribuir panfletos e brochuras. Não, a escola socialista dos proletários não precisa de nada disso. Eles são educados quando passam à ação. No princípio era a ação, é aqui a divisa; e a ação consiste em que os Conselhos de Trabalhadores e Soldados se sentem chamados a tornar-se o único poder público em todo o Reich e aprendem a sê-lo. Só dessa maneira podemos minar o solo, a fim de que se torne maduro para a transformação que deve coroar nossa obra. Eis porque, camaradas, era por um cálculo claro, com uma consciência clara que declaramos ontem, que eu, em particular, disse: ‘Parem de encarar a luta tão levianamente!”. (...) Quero dizer com isso que a história não nos faz a tarefa tão fácil como nas revoluções burguesas, em que bastava derrubar o poder oficial no centro e substitui-lo por alguns homens, ou por algumas dúzias de homens novos. Precisamos trabalhar de baixo para cima, o que corresponde precisamente ao caráter de massa de nossa revolução, cujos objetivos visam aos fundamentos, ao solo da constituição social, o que corresponde ao caráter da atual revolução proletária; devemos conquistar o poder político não por cima, mas por baixo. O dia 9 de novembro foi a tentativa de abalar os poderes públicos, a dominação de classe, uma tentativa débil, incompleta, inconsciente, caótica. Agora é preciso dirigir, com total consciência, toda a força do proletariado contra os fundamentos da sociedade capitalista. É na base, onde cada patrão se defronta com seus assalaridado, na base, onde todos os órgãos executivos de dominação política de classe se defrontam com os objetos dessa dominação, as massas, é lá que devemos arrancar, passo a passo, os instrumentos de poder aos dominantes., pondo-os em nossas mãos. Tal como o descrevo, o processo parece talvez mais demorado do que se estava inclinado a ver num primeiro momento. Penso que é saudável para nós encararmos com plena clareza todas as dificuldades e complicações dessa revolução. Pois espero que, assim como eu, nenhum de vocês deixará a descrição das grandes dificuldades, das tarefas que se acumulam, paralisar seu ardor ou sua energia; ao contrário, quanto maior a tarefa, mais concentraremos todas as nossas forças; e não esqueceremos: a revolução sabe realizar sua obra com extraordinária rapidez. Não pretendo profetizar de quanto tempo esse processo precisa. Qual de nós faz a conta, qual de nós se preocupa com que nossa vida mal baste para consegui-lo? Importa somente que saibamos com clareza e precisão o que temos que fazer; e o que temos que fazer, espero tê-lo de algum modo exposto, com minha poucas forças, em suas grandes linhas.


(Congresso de Fundação do KPD - Partido Comunista Alemão in Textos Escolhidos volume II, pp. 343-356)


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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.  


Die Befreiung der Arbeiterklasse muß das Werk der Arbeiterklasse selbst sein.