quarta-feira, 27 de abril de 2016

A claraboia e o holofote #30 (III)






Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista





 Lenin


O Estado e a Revolução



"Também aqui a doutrina de Marx, como sempre,
 é um balanço da experiência iluminado 
por uma profunda visão filosófica do mundo 
e um rico conhecimento da história".
(O Estado e a Revolução, capítulo II)
  

2. Uma Antologia


Prefácio

A questão do Estado adquire atualmente uma importância particular tanto no aspecto teórico como no aspecto político-prático. A guerra imperialista acelerou e acentuou extraordinariamente o processo de transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado. A monstruosa opressão das massas trabalhadoras pelo Estado, que se funde cada vez mais estreitamente com as uniões onipotentes de capitalistas, torna-se cada vez mais monstruosa. Os países avançados transformam-se – falamos da sua ‘retaguarda’ – em presídios militares para os operários.
Os horrores e as calamidades inauditas da guerra que se prolonga tornam a situação das massas insuportável, aumentam a sua indignação. A revolução proletária internacional amadurece visivelmente. A questão da sua atitude em relação ao Estado adquire uma importância prática.’
(p. 223)


Capítulo I 

A sociedade de classe e o Estado

O Estado é o produto e a manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe. O Estado surge precisamente onde, quando e na medida em que as contradições de classe objetivamente não podem ser conciliadas. E inversamente: a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis.
(...)
Segundo os professores e publicistas pequeno-burgueses e filisteus – frequentemente com referências benevolentes a Marx! – o Estado precisamente concilia as classes. Segundo Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe sobre outra, é a criação da ‘ordem’ que legaliza e consolida esta opressão moderando o conflito de classes. Segundo a opinião dos políticos pequeno-burgueses, a ordem é precisamente a conciliação das classes e não a opressão de uma classe por outra.
(p. 226)

Por outro lado, a deturpação kautskiana do marxismo é muito mais sutil. ‘Teoricamente’ não se nega nem que o Estado seja um órgão de dominação de classe nem que as contradições de classe sejam inconciliáveis. Mas perde-se de vista ou esbate-se o seguinte: se o Estado é o produto do caráter inconciliável das contradições de classe, se ele é um poder que está acima da sociedade e que ‘cada vez mais se aliena da sociedade’, então é evidente que a emancipação da classe oprimida é impossível não só sem uma revolução violenta mas também sem a destruição do aparelho do poder de Estado que foi criado pela classe dominante e no qual está encarnada esta ‘alienação’. Esta conclusão, teoricamente clara por si mesma, foi tirada por Marx, como veremos mais adiante, com a mais completa precisão, na base histórica concreta das tarefas da revolução. E e precisamente esta conclusão que Kaustky ‘esqueceu’ e adulterou.
 (p. 227)

[A organização armada espontânea da população] é impossível porque a sociedade da civilização está dividida em classes hostis e, além disso, inconciliavelmente hostis, cujo armamento ‘espontâneo’ conduziria a uma luta armada entre elas. Forma-se o Estado, cria-se uma força especial, destacamentos especiais de homens armados, e cada revolução, ao destruir o aparelho de Estado, mostra-nos uma luta de classes descoberta, mostra-nos claramente como a classe dominante se esforça por reconstruir os destacamentos especiais de homens armados que a servem, como a classe oprimida se esforça por criar uma nova organização deste gênero, capaz de servir não aos exploradores, mas os explorados.
(p. 228)

Atualmente, o imperialismo e a dominação dos bancos ‘desenvolveram’ até uma arte extraordinária ambos estes métodos de defender e pôr em prática a onipotência da riqueza em quaisquer repúblicas democráticas. Se, por exemplo, logo nos primeiros meses da república democrática na Rússia, poder-se-ia dizer durante a lua-de-mel do casamento dos ‘socialistas’ – dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques – com a burguesia no governo de coligação, o sr. Paltchinski sabotou todos as medidas para domar os capitalistas e o seu banditismo, a sua pilhagem do tesouro por meio dos fornecimentos de guerra, se depois de ter saído do ministério o sr. Paltchinski (substituído, naturalmente, por um outro Paltchinski, absolutamente igual) foi ‘premiado’ pelos capitalistas com um lugarzinho com um vencimento de 120.000 rublos por ano, então o que é isto? Corrupção direta ou indireta? Uma aliança do governo com os consórcios capitalistas, ou ‘apenas’ relações amistosas? (...)
A onipotência da ‘riqueza’ também está mais segura numa república democrática porque não depende de determinados defeitos do mecanismo político, do mau invólucro político para o capitalismo. A república democrática é o melhor invólucro político possível para o capitalismo, e por isso o capital, depois de ter se apoderado deste invólucro, que é o melhor, alicerça o seu poder tão solidamente, tão seguramente, que nenhuma substituição, nem de pessoas, nem de instituições, nem de partidos nas repúblicas democráticas burguesas abala este poder.
(pp. 230-1)


[As duas citações fundamentais de Engels]
O proletariado toma o poder de Estado e começa por transformar os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, com isto, suprime-se a si próprio como proletariado, com isso suprime todas as diferenças de classes e antagonismo de classes, e com isto também o Estado como Estado. A sociedade anterior, que se movia em antagonismos de classe, precisava do Estado, isto é de uma organização da respectiva classe exploradora para manutenção das suas condições exteriores de produção, nomeadamente, portanto para a repressão violenta da classe explorada nas condições de opressão dadas pelo modo de produção vigente (escravidão, servidão feudal, trabalho assalariado). O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, a súmula desta num corpo visível, mas era-o apenas na medida em que era o Estado daquela classe que representava ela própria, para o seu tempo, toda a sociedade: na Antiguidade o Estados dos cidadãos proprietários de escravos, na Idade Média da nobreza feudal, no nosso tempo da burguesia. Ao tornar-se, por fim, efetivamente, representante de toda a sociedade, a si próprio se torna supérfluo. Assim que deixa de haver uma classe social a manter na opressão, assim que são eliminados, a par do domínio de classe e da luta, fundada na anarquia da produção anteriormente existente, pela existência individual, também as colisões e excessos deles resultantes, já nada mais há a reprimir que torne necessária uma força especial para a repressão, um Estado. O primeiro ato em que o Estado surge realmente como representante de toda a sociedade – a tomada de posse dos meios de produção em nome da sociedade – é, ao mesmo tempo, o seu último ato autônomo como Estado. A intervenção de um poder de Estado em relações sociais torna-se supérfluo num domínio após o outro, adormecendo, então, por si próprio. Em lugar do governo sobre pessoas surge a administração de coisas e a direção dos processos de produção. O Estado não é ‘abolido’, extingue-se. Portanto, por aqui se há-de aferir a frase sobre o ‘Estado livre do povo’, tanto no que toca à sua justificação temporária de agitação como no que toca à sua definitiva insuficiência científica; por aqui, igualmente, se há-de aferir a reivindicação dos chamados anarquistas, segundo a qual o Estado devia ser abolido de hoje para amanhã. (Anti-Dühring)

Que a violência, porém, ainda desempenha outro papel na história (além do de ser agente do mal), um papel revolucionário, que ela, nas palavras de Marx, é a parteira de toda a velha sociedade que anda grávida com uma nova, que ela é o instrumento com o qual o movimento social se realiza e quebra formas políticas petrificadas, mortas – sobre isso não há uma palavra do senhor Dühring. Só com suspiros e gemidos admite a possibilidade de talvez vir a ser necessária a violência para o derrubamento da economia de exploração – infelizmente!, pois todo o uso da violência desmoraliza quem a usa. E isto em face do elevado ascenso moral e espiritual que era a consequência de toda a revolução triunfante! E isto na Alemanha, onde um choque violento, a que o povo pode vir a ser obrigado, teria pelo menos a vantagem de exterminar o servilismo que penetrou na consciência nacional a partir da humilhação da Guerra dos Trinta Anos. E este modo de pensar de pregador, débil, sem seiva nem vigor, reivindica impor-se ao partido mais revolucionário que a história conhece? (Anti-Dühring) 
(pp. 232-3; 235)


A substituição do Estado burguês pelo proletário é impossível sem a revolução violenta. A supressão do Estado proletário, isto é, a supressão de todo Estado, é impossível a não ser pela via da extinção.
 (p. 236)


Capítulo II 

O Estado e a Revolução. A experiência dos anos 1848-1851

O Estado é a organização especial da força, é a organização da violência para a repressão de uma classe qualquer. Qual é então a classe que o proletariado deve reprimir? Naturalmente apenas a classe dos exploradores, isto é, a burguesia. 
(...)
Os democratas pequeno-burgueses, esses pretensos socialistas que substituíam a luta de classes pelos sonhos de entendimento das classes, concebiam a própria transformação socialista de um modo sonhador, não sob a forma do derrubamento do domínio da classe exploradora, mas sob a forma da submissão pacífica da minoria à maioria que ganhou consciência das suas tarefas. Esta utopia pequeno-burguesa, indissoluvelmente ligada ao reconhecimento de um Estado colocado acima das classes, conduzia na prática à traição dos interesses das classes trabalhadoras, como o mostrou, por exemplo, a história das revoluções francesas de 1848 e 1871, como o mostrou a experiência de participação 'socialista' nos ministérios burgueses na Inglaterra, na França, na Itália e em outros países no fim do século XIX e no princípio do século XX.
(p.238)

A doutrina da luta de classes, aplicada por Marx à questão do Estado e da revolução socialista, conduz necessariamente ao reconhecimento do domínio político do proletariado, da sua ditadura, isto é, de um poder não partilhado com ninguém e que se apoia diretamente na força armada das massas. O derrubamento da burguesia só pode ser realizado pela transformação do proletariado em classe dominante capaz de reprimir a resistência inevitável, desesperada, da burguesia e de organizar para um novo regime de economia todas as massas trabalhadoras e exploradas. 

O proletariado necessita do poder do Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores como para dirigir a imensa massa da população, o campesinato, a pequena burguesia, os semiproletários, na obra da organização da economia socialista.
Educando o partido operário, o marxismo educa a vanguarda do proletariado, capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, de dirigir e de organizar todos os trabalhadores e explorados na obra da organização da sua vida social, sem a burguesia e contra a burguesia. Pelo contrário, o oportunismo hoje dominante educa no partido operário representantes dos trabalhadores mais bem pagos, que se desligam das massas, que se 'arranjam' bastante bem sob o capitalismo, que vendem por um prato de lentilhas o seu direito de primogenitura, isto é renunciam ao papel de chefes revolucionários do povo contra a burguesia.
"O Estado, isto é, o proletariado organizado como classe dominante" (Manifesto Comunista) - esta teoria de Marx está indissoluvelmente ligada a toda a sua doutrina sobre o papel revolucionário do proletariado na história. O remate deste papel é a ditadura proletária, o domínio político do proletariado."
 (p. 239)


O poder do Estado centralizado, próprio da sociedade burguesa, surgiu na época da queda do absolutismo. As duas instituições mais características desta máquina do Estado são: o funcionalismo e o exército permanente. (...) 
O funcionalismo e o exército permanente são um 'parasita' no corpo da sociedade burguesa, parasita gerado pelas contradições internas que dilaceram esta sociedade, mas precisamente um parasita que 'obstruiu' os poros vitais. O oportunismo kautskiano hoje dominante na social-democracia oficial considera que esta concepção do Estado como um organismo parasitário é um atributo particular e exclusivo do anarquismo. (...)
O desenvolvimento, o aperfeiçoamento, a consolidação deste aparelho burocrático e militar prosseguem através de todas as revoluções burguesas que a Europa viu muitas vezes desde o tempo da queda do feudalismo. Em particular, precisamente, a pequena burguesia é atraída para o lado da grande burguesia e é submetia a ela, em grau significativo, por meio deste aparelho, que dá às camadas superiores do campesinato, dos grandes artesãos, dos comerciantes etc., lugarzinhos relativamente cômodos, tranquilos e honrosos, que colocam os seus possuidores acima do povo.
 (p. 241)


Quanto mais se procede às 'redistribuições' do aparelho burocrático entre os diversos partidos burgueses e pequeno-burgueses (entre os democratas-constitucionalistas, os socialistas-revolucionários e os mencheviques, para tomar o exemplo russo), tanto mais claro se torna para as classes oprimidas, com o proletariado à cabeça, a sua hostilidade irredutível em relação a toda a sociedade burguesa. Daí a necessidade para todos os partidos burgueses, mesmo para os mais democráticos e 'revolucionários-democráticos', entre eles, reforçar a repressão contra o proletariado revolucionário, de consolidar o aparelho de repressão, isto é, a própria máquina de Estado. Tal curso dos acontecimentos obriga a revolução a 'concentrar todas as suas forças de destruição' contra o poder de Estado, obriga a colocar a tarefa de não melhorar a máquina do Estado, mas de destrui-la, de suprimi-la.
(p.242)


Capítulo III 

O Estado e a Revolução. A experiência da Comuna de Paris de 1871. A análise de Marx

A única ‘correção’ que Marx julgou necessário fazer no Manifesto Comunista foi feita por ele na base da experiência revolucionária dos communards parisienses.
O último prefácio à nova edição alemã do Manifesto Comunista, assinado por ambos os seus autores, é datado de 24 de junho de 1872. Neste prefácio os autores, Karl Marx e Friedrich Engels, dizem que o programa do Manifesto Comunista ‘está hoje, num passo ou noutro, obsoleto’.
‘...A Comuna, nomeadamente, forneceu a prova de que a classe operária não pode limitar-se a tomar conta da máquina de Estado que encontra montada e a pô-la em funcionamento para atingir os seus objetivos próprios...’ 
(...)
Assim, Marx e Engels consideravam que uma das lições principais e fundamentais da Comuna de Paris tinha uma importância tão gigantesca que a introduziram como correção essencial do Manifesto Comunista.
É extraordinariamente característico que precisamente esta correção essencial tenha sido deturpada pelos oportunistas, e nove décimos, se não noventa e nove centésimos, dos leitores do Manifesto Comunista ignoram certamente o seu sentido. (...) Por agora bastará assinalar que a ‘compreensão’ corrente, vulgar, da famosa máxima de Marx citada por nós consiste em que Marx teria sublinhado aqui a ideia de um desenvolvimento lento, em oposição à conquista do poder, e outras coisas semelhantes.
Na realidade, é exatamente o contrário. A ideia de Marx consiste em que a classe operária deve quebrar, demolir a ‘máquina de Estado que se encontra montada’ e não limitar-se simplesmente à sua conquista.
(p. 246-7)


Pelo que substituir a máquina de Estado quebrada?
A esta pergunta Marx dava em 1847, no Manifesto Comunista, uma resposta ainda completamente abstrata, ou melhor, uma resposta que indicava as tarefas, mas não os meios para as resolver. Substitui-las pela ‘organização do proletariado como classe dominante’, pela ‘luta pela democracia’ – tal era a resposta do Manifesto Comunista.
Sem cair em utopias, Marx esperava da experiência do movimento de massas a resposta à questão de quais as formas concretas que tomaria esta organização do proletariado como classe dominante, de que maneira precisa esta organização se conciliaria com a mais completa e a mais consequente ‘luta pela democracia’.
(p. 249)


Aqui observa-se exatamente um dos casos de ‘transformação da quantidade em qualidade’: a democracia, realizada de modo tão completo e consequente quanto é possível, converte-se de democracia burguesa em proletária, de Estado (=força especial para a repressão de uma classe determinada) em qualquer outra coisa que já não é, para falar propriamente, Estado.
(p. 250)


A elegibilidade completa, a amovibilidade a cada momento de todos os funcionários públicos sem exceção, a redução dos seus vencimentos ao habitual ‘salário operário’, estas medidas democráticas simples e ‘compreensíveis por si mesmas’, unindo completamente os interesses dos operários e da maioria dos camponeses, servem ao mesmo tempo de ponte que conduz do capitalismo para o socialismo. Estas medidas dizem respeito à reorganização estatal, puramente política da sociedade, mas só adquirem, naturalmente todo o seu sentido e importância em ligação com a realização ou a preparação da ‘expropriação dos expropriadores’, isto é, com a transformação da propriedade privada capitalista dos meios de produção em propriedade social.
(p. 251-2)


A Comuna substitui o parlamentarismo venal e apodrecido da sociedade burguesa por instituições onde a liberdade de opinião e de discussão não degenera em engano, porque os próprios parlamentares têm de trabalhar, executar eles próprios as suas leis, comprovar eles próprios o que se consegue na vida, responder eles próprios diretamente perante os seus eleitores. As instituições representativas permanecem, mas o parlamentarismo como sistema especial, como divisão do trabalho legislativo e executivo, como situação privilegiada para os deputados não existe aqui.  Não podemos conceber uma democracia, mesmo uma democracia proletária, sem instituições representativas, mas podemos e devemos concebê-la sem parlamentarismo, se a crítica da sociedade burguesa não é para nós uma palavra oca (...)
(p. 253)


Organizaremos a grande produção partindo do que já foi criado pelo capitalismo, nós próprios, os operários, apoiando-nos na nossa experiência operária, criando uma disciplina rigorosíssima, de ferro, apoiada pelo poder de Estado dos operários armados, reduziremos os funcionários públicos ao papel de simples executantes das nossas diretivas, de capazes e contabilistas (naturalmente com técnicos de todos os gêneros e níveis) responsáveis, amovíveis e modestamente pagos – eis a nossa tarefa proletária, eis por onde podemos e devemos começar na realização da revolução proletária. (...)
Um espirituoso social-democrata alemão dos anos 1870 chamou aos correios um modelo de empresa socialista. Isto é muito justo. Os correios são agora uma empresa organizada segundo o tipo de monopólio capitalista do Estado. O imperialismo transformará progressivamente todos os trusts em organizações de tipo semelhante. Acima dos ‘simples’ trabalhadores, que estão sobrecarregados e que passam fome, encontra-se aqui exatamente a mesma burocracia burguesa. Mas o mecanismo de gestão social aqui já está pronto. (...)
Toda a economia nacional organizada como os correios, de forma  que os técnicos, os capatazes, os contabilistas, como todos os funcionários públicos recebam um vencimento que não exceda um ‘salário operário’, sob o controle e a direção do proletariado armado – eis o nosso fim imediato.
(p. 255-6)


Capítulo IV 

Continuação. Explicações complementares de Engels

(...) aquela ideia fundamental que passa como um fio vermelho através de todas as obras de Marx, a saber, que a república democrática é a via de acesso mais próxima para a ditadura do proletariado, Pois tal república, não eliminando de modo nenhum o domínio do capital e, consequentemente, a opressão das massas e a luta de classes, conduz inevitavelmente a um tal alargamento, desenvolvimento, clarificação, agravamento desta luta que, uma vez que surge a possibilidade de satisfazer os interesses fundamentais das massas oprimidas, esta possibilidade se realiza inevitável e unicamente na ditadura do proletariado.
(p. 269-70)


Engels chega aqui ao limite interessante em que a democracia consequente, por um lado, se transforma em socialismo e, por outro lado, reclama o socialismo. Pois para suprimir o Estado é preciso transformar as funções do serviço de Estado em operações de controle e de registro tão simples que sejam acessíveis e realizáveis pela imensa maioria da população e, depois, por toda a população sem exceção. E que a completa eliminação do carreirismo exige que o lugarzinho ‘honroso’, ainda que não lucrativo, ao serviço do Estado, não possa servir de trampolim para saltar para lugares altamente lucrativos nos bandos e nas sociedades por ações, como acontece constantemente em todos os países mais livres.
(...)
O desenvolvimento da democracia até o fim, a procura das formas desse desenvolvimento, a sua comprovação na prática, etc., tudo isso é uma das tarefas integrantes da luta pela revolução social. Tomado em separado, nenhum democratismo dá o socialismo, mas na vida o democratismo nunca será ‘tomado em separado’, antes será ‘tomado juntamente com’, exercerá sua influência também na economia, impelirá a sua transformação, sofrerá a influência do desenvolvimento econômico, etc. Tal é a dialética da história viva.
(p. 275)

Nos raciocínios habituais sobre o Estado comete-se constantemente o erro contra o qual Engels adverte aqui e que assinalamos de passagem na exposição anterior. A saber: esquece-se constantemente que a supressão do Estado é também a supressão da democracia, que a extinção do Estado é a extinção da democracia.
À primeira vista tal afirmação parece extremamente estranha e incompreensível; talvez mesmo surja em alguns o receio de que nós esperemos o advento de uma organização social em que não se observe o princípio da subordinação da minoria pela maioria, pois não será a democracia precisamente o reconhecimento de tal princípio?
Não. A democracia não é idêntica à subordinação da minoria à maioria. A democracia é um Estado que reconhece a subordinação da minoria à maioria, isto é, uma organização para exercer a violência sistemática de uma classe sobre outra, de uma parte da população sobre outra.
Propomo-nos como objetivo final a supressão do Estado, isto é, de toda a violência organizada e sistemática, de toda a violência obre os homens em geral. Não esperamos o advento de uma ordem social em que o princípio da subordinação da minoria à maioria não seja observado. Mas, aspirando ao socialismo, estamos convencidos de que ele se transformará em comunismo e, em ligação com isto, desaparecerá toda a necessidade da violência sobre os homens em geral, da subordinação de um homem a outro, de uma parte da população a outra parte dela, porque os homens se habituarão a observar as condições elementares de convivência social sem violência e sem subordinação.
(p. 277-8)


Capítulo V 

As bases econômicas da extinção do Estado

Democracia significa igualdade. Compreende-se a grande importância que tem a luta do proletariado pela igualdade e a palavra de ordem de igualdade se a compreendermos corretamente no sentido da supressão das classes. Mas a democracia significa apenas igualdade formal. E imediatamente depois da realização da igualdade de todos os membros da sociedade em relação à propriedade dos meios de produção, isto é, a igualdade do trabalho, a igualdade do salário, levantar-se-á inevitavelmente perante a humanidade a questão e avançar da igualdade formal para a igualdade de fato, isto é, para a realização da regra: ‘de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.’ Por que etapas, através de que medidas práticas a humanidade chegará a este fim supremo, não sabemos nem podemos saber. Mas o que importa é compreender como é imensamente falsa a concepção burguesa habitual segundo a qual o socialismo é qualquer coisa morta, cristalizada, dada de uma vez para sempre, quando na realidade apenas com o socialismo começa um movimento de avanço rápido, verdadeiro, efetivamente de massas, com a participação da maioria e depois de toda a população, em todos os domínios da vida social e individual.
A democracia é uma forma de Estado, uma das suas variedades. E, consequentemente, ela representa em si, como em qualquer Estado, a aplicação organizada, sistemática, da violência sobre as pessoas. Isso por um lado. Mas, por outro lado, significa o reconhecimento formal da igualdade entre os cidadãos, do direito igual para todos de determinar a organização do Estado e de o dirigir. E isto, por seu turno, liga-se ao fato de que num certo grau de desenvolvimento da democracia, ela, em primeiro lugar, une a classe revolucionário que está contra o capitalismo, o proletariado, e permite-lhe quebrar, demolir completamente, fazer desaparecer da face da terra a máquina de Estado burguesa, mesmo que republicana-burguesa, o exército permanente, a polícia, o funcionalismo, e substitui-los por uma máquina de Estado mais democrática, mas ainda uma máquina de Estado, sob a forma das massas operárias armadas que passam à participação de todo o povo na milícia.
Aqui “a quantidade transforma-se em qualidade’: este grau do democratismo está ligado à saída do quadro da sociedade burguesa, ao começo da sua reorganização socialista. Se todos participam realmente na administração do Estado, então o capitalismo cria, por sua vez, as premissas para que ‘todos’ possam realmente participar na administração do Estado. Entre estas premissas conta-se a alfabetização geral já realizada por uma série de países capitalistas mais avançados, em seguida o ‘educar e disciplinar’ de milhões de operários pelo grande, complexo e socializado aparelho dos correios, dos caminhos-de-ferro, das grandes fábricas, do grande comércio, dos bancos etc., etc.
Com tais premissas econômicas é perfeitamente possível, depois de derrubados os capitalistas e os funcionários, passar imediatamente à sua substituição de um dia para o outro – em matéria de controle da produção e da distribuição, em matéria de registro do trabalho e dos produtos – pelos operários armados, por todo o povo armado.
Nota: Quando um Estado se reduz na parte principal de suas funções a este registro e controle por parte dos próprios operários, então deixa de ser um ‘Estado político’, então as funções públicas transformam-se de políticas em funções simplesmente administrativas.
(p. 289)


Capítulo VI 

A vulgarização do marxismo pelos oportunistas

De uma maneira geral, pode-se dizer que do esquivar-se à questão da atitude da revolução proletária para com o Estado, esquivar-se vantajoso para o oportunismo e que o alimentava, resultou a deturpação do marxismo e sua completa vulgarização.
(p. 292)


A social-democracia germânica, na pessoa de Kautsky, parecia declarar: mantenho-me nas minhas concepções revolucionárias (1899). Reconheço em particular a inevitabilidade da revolução social do proletariado (1902). Reconheço que começa uma nova era de revoluções (1909). Mas, apesar de tudo isso, recuo em relação àquilo que Marx disse já em 1852, logo que coloca a questão das tarefas da revolução proletária em relação ao Estado (1912).
(p. 298)



Posfácio

É mais agradável e mais útil viver a ‘experiência da revolução’ do que escrever sobre ela.
(p. 305)




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(V.I. Lenin, O Estado e a Revolução in Obras Escolhidas, tomo 2, Edições Avante/Edições Progresso, Lisboa - Moscou, 1978, pp. 219-305)
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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein.  



вся власть Советам!













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