quarta-feira, 29 de junho de 2016

Burgueses e filisteus: middlebrow








A Guerra dos Brows


"J'entends des familles comme la mienne, 
qui tiennent tout de la déclaration des Droits de l'Homme".

Rimbaud, Une saison en Enfer





I


Meus avós eram gente analfabeta do campo; meus pais tiveram uma escolarização elementar que lhes permitiu trabalhar como operários na indústria metalúrgica e têxtil. Como os mais afortunados da minha estirpe e linhagem, fui miraculado pela universidade e passei a integrar a fração superior da pequena-burguesia. Todavia, se o capital cultural acumulado pôde ser convertido em certa posição social, também me levou a uma atitude irônica, e muitas vezes hostil, face aos padrões culturais da classe a que pertenço. De várias maneiras sou um trânsfuga e um híbrido: sou o produto da herança rural ítalo-caipira-afro-baiana; da cultura de massas; da solidariedade do chão de fábrica, que era reproduzida pelos meninos e meninas no pátio da escola; do treino intelectual na graduação e na pós-graduação; do convívio e comunhão com a pequena-burguesia que trabalha no setor de serviços educacionais; do exercício crítico de scholar na esfera privada. Assim era inevitável que, ao longo de toda a minha vida, estivesse metido nalguma trincheira durante a Guerra dos Brows.

Da cultura lowbrow a que fui exposto quando criança e em parte da adolescência, restou muito pouco. Os infantes marxistas da turma de 82 rapidamente aprendiam a reconhecer nela os produtos espúrios da indústria cultural, mas o fato é que nosso próprio marxismo estudantil também era nutrido por essa indústria: pelos volumes da coleção “Os Pensadores”; pelos livrinhos da série “Primeiros Passos”; pelos episódios de “A Era da Incerteza” de John Kenneth Galbraith. Enfim, por toda uma gama de produtos de divulgação (ou “propaganda” como dirão os oponentes à direita) que compunha a paisagem da esquerda middlebrow naquela época hoje remota.

Pelas razões que acabo de expor, confesso que pertenço àquela grande família de beneficiários dos fascículos da editora Abril, da enciclopédia Barsa e da Delta-Larousse, dos programas educativos da TV Cultura de São Paulo, da série “Cosmos” de Carl Sagan, da revista "Planeta", dos programas musicais transmitidos a partir do SESC Pompeia, das coleções de bolso da editora Brasiliense, do catálogo do Círculo do Livro, das obras paradidáticas da editora Ática, dos "Concertos para a Juventude",  das minisséries “Raízes” e “Holocausto” transmitidas pela Rede Globo,  das palestras na biblioteca Mário de Andrade, dos clássicos nas edições baratas da Ediouro, da História da Filosofia Ocidental de Bertrand Russell, do catolicismo de esquerda divulgado pela Editora Vozes. Eu poderia passar muito tempo relembrando tudo o que aprendi imerso nesse caldo middlebrow ao qual eu devo meu ingresso no ensino superior, mas hoje não estou para reverências. Minha intenção é mostrar quão limitante pode ser a cultura middlebrow e como ela constitui um dos fatores do filistinismo.




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