quarta-feira, 22 de junho de 2016

Burgueses e filisteus: o pequeno-burguês







Esse pombo triste: 

o pequeno-burguês



"Será preciso retumbar como tambores e pregadores de sermões quaresmais? 
Ou acreditarão somente nos que gaguejam?
Possuem alguma coisa da qual se orgulham. 
Como chamam, mesmo, àquilo que os torna orgulhosos? 
Chamam-lhe instrução e é o que os distingue dos pastores de cabras".


Nietzsche, Assim Falou Zaratustra,  Prólogo, 5






O filisteu é conservador e cauteloso; abomina a extravagância tanto quanto a vulgaridade; imagina soluções fáceis e rápidas para todos os problemas do mundo e lamenta sinceramente que uma conspiração de hipócritas, corruptos ou incompetentes esteja a impedir a aplicação da sua panaceia; tem opiniões pessoais a propósito de tudo e faz questão de expressá-las; reverencia os valores universais e também o torrão natal; acompanha com paixão as notícias (inclusive o fait divers), mas tem saudade dos “bons e velhos tempos”; experimenta volúpias de grandeza moral quando, diante de uma plateia, mostra-se indignado face ao “descalabro” da "situação atual”, ou enlevado com a beleza - sempre "comovente" - de uma autêntica obra de arte. Na sua profunda incapacidade de calar-se e refletir, o filisteu demonstra que, não menos que a natureza, tem horror ao vazio, razão pela qual o niilismo e o ceticismo lhe são absolutamente estranhos.

Para o bem da espécie humana e salvaguarda geral das nações, o filisteu-tipo que acabamos de desenhar não pode ser encontrado em estado puro nas condições ambientais normais, mas os traços de filistinismo, embora disseminados por todos os segmentos da sociedade, concentram-se nas frações inferiores da burguesia: os pequenos e médios empreendedores, os proprietários de imóveis de aluguel, os quadros subalternos que servem de capatazes aos gerentes do capital, os médicos, advogados e engenheiros que não conseguiram alcançar um status à altura de seus diplomas universitários, os profissionais da educação, os técnicos de maneira geral, os empregados melhor remunerados do setor de serviços.

Espremido entre a grande burguesia reluzente e a massa desbotada dos desclassificados, o pequeno-burguês pensa que sua posição, a cavaleiro da luta de classes, permitir-lhe-ia resolver o impasse e decidir o bem-comum.  E o que poderia ser melhor para todos senão o que é bom para a pequena-burguesia? Paz, prosperidade, harmonia familiar, amor, trabalho, oportunidades, esforço individual, empreendedorismo, recompensa financeira, gratificação emocional, segurança, tranquilidade e, se Deus quiser, um pouco de arte e diversão. Nessa tópica de horóscopo matinal, a summa summarum dos ideais de uma classe.

Por estar tão próxima da massa dos trabalhadores de baixa qualificação, que lhe presta serviços variados sob a rubrica de “moças da limpeza” ou “rapazes do conserto”, a pequena-burguesia anseia por distinção: a instrução diplomada exibida na pronúncia escandida exageradamente didática; a boa educação nos ademanes fora de hora; o requinte da xícara acompanhada do pires; a diversão das séries do Netflix; o cobiçado estágio “no exterior”; o conforto do sofá novo, do carro do ano e da conta conjunta superprime; as duas horas de fila para ver os impressionistas, tão impressionantes; os nenúfares de Monet na capa da agenda ou nos marca-páginas do livro mais vendido de não-ficção da revista Veja.  Esse esforço de distinguir-se da massa pobre de serventes e auxiliares com ensino fundamental incompleto consome os recursos e as energias da pequena-burguesia, sempre tão assombrada por pesadelos de declínio, crise e altos impostos. O pequeno-burguês padece no seu lar. O mundo, que lhe sorri e acena com promessas de oportunidades, é terrivelmente opaco e incompreensível.

As altas esferas do capital, porém, o fascinam. Não o capital impessoal, não o capital-processo, não o Sujeito Automático de Marx, já que no seu fetichismo às avessas o pequeno-burguês enxerga as relações abstratas e reificadas apenas na forma de "histórias humanas" em que o capital se faz carne. Daí o interesse pelos perfis dos megainvestidores elencados periodicamente pela Forbes, os emblemáticos “homens mais ricos do mundo”, que os pequenos-burgueses perplexos ora admiram como heróis de sucesso, ora infamam como bandidos ("a propriedade é um roubo” dizia o pequeno-burguês Proudhon).  Dilacerada por essa ambivalência face ao grande capital, a pequena burguesia não alcança a coerência política: ela pode aderir irrefletidamente a programas neoliberais que, cumpridos à risca, destruiriam o pequeno patrimônio de que dispõe; ou pode aceitar, com a mesma falta de reflexão, um radicalismo de esquerda que pende para o irracionalismo e descamba numa revolta que dificilmente vai além do impropério ou do "desabafo" irritado de alguma bela alma infeliz.

Incerta em suas prerrogativas de classe, dividida entre o ressentimento e a autocomplacência, a pequena-burguesia é um repositório de paixões tristes. Sem recursos para realizar suas fantasias de reforma universal, resta-lhe encenar de maneira cabotina um engajamento ansioso por soluções finais e explosivas, como já havia mostrado Drummond de Andrade num poema célebre, verdadeiro mea culpa do pequeno-burguês impotente que se revolta contra o mundo no recôndito do apartamento recém-adquirido:

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

(“Elegia 1938” in Sentimento do Mundo)

Não se poderia dizer mais nem melhor. Drummond conhecia todos os fios retorcidos que compunham o eu de uma certa burguesia brasílica. Todavia, o apequenamento da burguesia, embora justifique o feitio delicado do monstro filistino, não explica suas pretensões de sapiência nem suas audácias judicativas, demonstração que deixo para o próximo momento.


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Um comentário:

  1. Ó Harry Heine, cheguei atrasado
    para jantar contigo, que diabos!
    Quem há de demolir com tanto esmero
    a pompa da Filístia e o Lero-lero!

    (Ezra Pound)


    Nietzsche, Drummond, Heine, Pound; com troças tão bem feitas, fica até fácil suportar esses tristes pombos.


    Abraços.

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