sábado, 3 de setembro de 2016

Burgueses e filisteus: dois contos da mesma cidade










No último 31 de agosto, o Senado aprovou a cassação do mandato da presidenta Dilma Rousseff, afastada desde maio. Tenha ou não ocorrido um golpe palaciano-parlamentar contra Dilma, com a conivência da grande imprensa, o que parece consensual é que, pelo menos desde 2014, duas narrações disputam os “corações e mentes” dos segmentos que se pretendem politizados: um é o relato do projeto redentor interrompido, o outro é o da intervenção salvadora. O primeiro é endossado pelos partidários do PT e de amplos setores da esquerda brasileira; o segundo é apoiado pelo PSDB, rival histórico do PT, e pelas agremiações da Nova Direita, que fizeram clamor nas ruas das capitais brasileiras em 2015.



Para os partidários do PT, os anos de Lula e Dilma à frente do governo federal representaram uma ruptura com a multissecular tradição política de conchavo das elites, que sempre redundou em opressão e pobreza para a maior parte da população brasileira. A elevação dos níveis salariais e o reforço dos direitos trabalhistas, juntamente com uma política de pleno emprego e de benefícios sociais, permitiu que camadas antes excluídas do consumo pudessem se integrar a uma classe média ampliada. Essa política teria sido tolerada pelas elites tradicionais e pelo grande empresariado paulista enquanto a economia se encontrava em sua curva ascendente, todavia, quando as dificuldades internacionais interromperam o ciclo de crescimento, as elites hostis às conquistas sociais do governo petista se articularam para impedir o avanço do projeto redentor e destruir aquilo que foi construído desde 2003. A classe média que foi às ruas em 2015 – isto é, os agora folclóricos “coxinhas” – teria sido apenas uma massa de descontentes manobrados por grupos poderosos.

Para os oponentes do PT, a história foi bem diferente. Lula e Dilma implementaram um programa assistencialista que garantiria vitórias constantes nas eleições, uma vez que teriam o apoio dos bolsões de pobreza assistidos pelo governo federal, transformados em currais eleitorais. Esse programa era irresponsável do ponto de vista econômico e clientelista do ponto de vista político e somente poderia ter apoio dos parlamentares e dos escalões técnicos por meio das piores formas de cooptação política criadas pelo presidencialismo de coalização vigente desde o governo Collor. Depois de três mandatos presidenciais petistas, a corrupção se entranhou nas áreas diretamente controladas pelo governo federal. O sangramento bilionário dessa corrupção associado ao gerenciamento incompetente da política monetária e fiscal fez com que o Brasil mergulhasse numa gravíssima crise econômica que destruiu qualquer aquisição que, por ventura, tenha ocorrido durante a temporada petista. Por isso, os setores da classe média e do empresariado, indignados com a corrupção e o assistencialismo irresponsável, se aliaram num amplo movimento espontâneo, análogo ao movimento das "Diretas Já" em 1984. Essa articulação só foi possível porque uma ampla frente de agremiações de Direita vinha se compondo nos últimos anos sob a inspiração intelectual ou política de figuras públicas que, há muito tempo, batiam-se contra as ilusões da esquerda. Para essa Nova Direita, os beneficiários do assistencialismo petista – os folclóricos “petralhas” ou “mortadelas”- eram cúmplices do esquema parasitário que sugava recursos que deveriam ser dirigidos aos empreendedores, os únicos capazes de trazer prosperidade duradoura ao país.

Essas são as duas narrativas. A adesão a qualquer uma delas depende mais das paixões políticas de cada um do que do esforço sincero de encontrar a verdade, que, pobrezinha, correu para se esconder no fundo de algum poço assim que essa guerra começou. Eis porque estamos à mercê das revelações bombásticas, vazadas de maneira maliciosa ou oportunista, e das interpretações dadas pelos pundits da grande imprensa e dos órgãos “independentes” da internet.  Em outras palavras, estamos completamente às escuras, guiados pelas opiniões desencontradas de um bando de cegos pretensiosos, aos quais damos ouvido em função do hábito de ler este ou aquele jornalista que nos parece mais simpático, processo tão científico de decisão quanto o uni-duni-tê que praticávamos com sacrossanta seriedade aos sete anos.

Em vista disso, é melhor baixarmos nossas pretensões de compreender o processo real e nos limitarmos ao pouco que nos é dado ver nessa hora de fumaça e poeira.  Ao invés de perdermos tempo discutindo as figuras borradas e fugidias que vemos projetadas nas paredes - Dilma, Temer, Eduardo Cunha entre outros -, observemos o comportamento daqueles que, como nós, estão acorrentados nesta caverna. Ao invés de discutirmos em vão um futuro que não conhecemos e um processo cuja totalidade sempre nos escapa, vamos nos contentar com aquilo que podemos realmente alcançar: uma descrição sócio-psicológica dos lulopetistas e dos neodireitistas.

O que essa observação me tem mostrado é que, embora suas aspirações políticas pareçam seguir caminhos opostos, os lulopetistas e os neodireitistas são muito parecidos: a mesma exasperação moral pequeno-burguesa, a mesma certeza de que podem salvar o Brasil, o mesmo gosto pela mobilização de rua e pelo alçamento de bandeiras, o mesmo ativismo nas redes sociais, o mesmo repertório de ofensas, as mesmas lacunas de formação intelectual manifestas na necessidade de incensar certos gurus que veem tudo e sabem tudo. Neste ambiente de declarações apressadas, fulminações, lágrimas, histrionismos, apóstrofes dirigidas a Deus ou ao Julgamento da História e conclamações em nome do povo – todos se julgam porta-vozes das ruas e arautos dos brasileiros em geral -, enfim, neste ambiente tóxico e hostil ao pensamento, o que tem proliferado é, na verdade, apenas o jacobinismo.

O jacobinismo é o ativismo político dos middlebrows: a mania de acreditar em conspirações (o Foro de São Paulo ou o Instituto Millenium como fábricas de golpes), a indignação moral, a aspiração de salvar a pátria, o espírito gregário, o radicalismo verbal, a disposição de apontar adversários políticos como inimigos a serem eliminados, a paixão pela tribuna (que agora está instalada nas redes sociais e nas seções de comentários da imprensa online). Esses cacoetes, extremamente fortes na esquerda brasileira, também aparecem em alguns dos mais prestigiados mentores da Nova Direita, uma vez que eles são egressos das fileiras do Partido Comunista (como Olavo de Carvalho) ou vieram das alas radicais do PT (como Reinaldo Azevedo), todos eles seguidores da retórica acusatória de outro ex-comunista, Carlos Lacerda. A Nova Direita brasileira é, na verdade, a velha esquerda às avessas, mas o mau hálito continua o mesmo, denunciando aquele velho refluxo gástrico que afeta a esquerda brasileira desde a década de 1930 (assunto longo e doloroso que, por si só, merecerá uma série vindoura).

Um genuíno conservador no Brasil sempre foi ave rara, mas é curioso que os jacobinos de direita se digam conservadores com a mesma santa simplicidade com que os jacobinos de esquerda, todos eles proudhonianos de segunda mão, se dizem marxistas. É que o rótulo de conservador ou de marxista tem um pedigree ao qual os middlebrows, na sua alodoxia, não conseguem resistir.

O que eu quero fazer no próximo capítulo é mostrar a imensa distância que existe entre um autêntico conservador (necessariamente highbrow porque o conservadorismo autêntico, como o marxismo autêntico é biscoito fino para poucos) e esse “conservadorismo” jacobino, verdadeiro aborto de fundo de quintal, que tem se visto nas redes sociais e na avenida Paulista.









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