segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Burgueses e filisteus: conclusão




  


Nossos donos temporais ainda não devassaram
o claro estoque de manhãs
que cada um traz no sangue, no vento.
Carlos Drummond de Andrade, Contemplação no banco



Seis meses se passaram desde os sucessos iniciais que me trouxeram aqui. A crise econômica não foi debelada. Os governos estaduais não conseguem pagar os funcionários públicos. A insatisfação cresce e não encontra nos partidos figuras que mereçam confiança e respeito. Não há liderança, nem carisma, nem exemplo inspirador entre os profissionais da vida política. Sobretudo, não há projetos, além das variações já conhecidas do desenvolvimentismo e do neoliberalismo. A Operação Lava-Jato prossegue sua atividade inquisitorial e ganha os contornos de um quarto poder em vias de ser institucionalizado com a aprovação das 10 medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público. Todavia, a caçada aos que prevaricaram começa a acumular danos colaterais: o enfraquecimento das garantias legais de defesa, a erosão da credibilidade parlamentar, a suspeita lançada sobre a atividade política, a exposição das fraquezas demasiado humanas dos magistrados do Supremo Tribunal Federal, a incerteza quanto ao futuro das grandes empreiteiras investigadas, que estão entre as empresas mais poderosas do Brasil. Quando vai terminar a Operação Lava-Jato? Qual é a sua meta final? Prender o ex-presidente Lula? Derrubar o presidente Temer? Varrer todos os corruptos? Recuperar os bilhões de dólares que foram desviados ao longo dos anos? Conquistar a Presidência da República para o PSDB em 2018? Alavancar a carreira política do próprio juiz Sérgio Moro, o nosso Harvey Dent?

Os gritos de “Fora Temer” entoados pela esquerda desde maio e ridicularizados pela direita como “mi mi mi” de maus perdedores começam a despertar adesões de direitistas impacientes com a ineficiência da equipe econômica que se anunciava miraculosa, com a demora na aprovação dos pacotes de austeridade e com as recorrentes suspeitas de corrupção que envolvem as ratazanas maiores da ninhada (ver nota 1). A possibilidade de a Câmara dos Deputados aprovar uma anistia aos financiamentos irregulares de campanha política parece ter ultrapassado os limites do decoro que mantinha a civilidade aparente. Para quem é de esquerda, não causa nenhuma surpresa que os deputados que votaram com tanta alegria pelo afastamento da presidenta Dilma invocando Deus, a Pátria, a Família e a Província de São Tacanho de Cuaçu – deputados que ainda ontem eram os heróis da direita paneleira -, não causa surpresa que esses mesmos deputados tentem agora se safar da cadeia e passem a ser vistos como “comunistas” por alguns grupelhos de direita que, devido ao léxico reduzido, não conhecem outra forma de xingamento.

No dia 16 de novembro, um desses grupelhos invadiu o plenário quase vazio da Câmara Federal. Davam vivas a Sérgio Moro, o nosso Harvey Dent, e pediam uma intervenção militar. Uma das manifestantes confundiu o círculo vermelho da bandeira do Japão com um símbolo comunista. Esse foi certamente o ápice da má politização que, à direita e à esquerda, produziu tantas tolices desde as passeatas de junho de 2013, tolices engrossadas pelo tom muitas vezes chulo e sempre raivoso adotado por vários jornalistas e intelectuais ansiosos de obter adesão e formar rebanhos de fieis, em conquistar corações e mentes, sobretudo os corações ressentidos e as mentes confusas (ver nota 2).

O resultado foi uma polarização emocional e irracional, um certo gosto de vomitar diante dos outros, que foi tornando impossível a conversa serena e argumentada sobre os tópicos da vida pública. Nessas ocasiões, os clichês, os conceitos-de-guerra, as palavras de ordem e os xingamentos são disparados com presteza para humilhar, calar, punir e esmagar o infame que tem opinião diferente à direita ou à esquerda. Essa degradação do debate público parece ser consequência da redução da esfera pública de opinião. Ao se transferir para o âmbito da internet, parecia que o debate se tornaria universal e livre. No entanto, a internet foi sofrendo os enclosures praticados por empresas privadas como o Google e o Facebook e as áreas de conversação adquiriram o caráter de bolhas ou guetos de opinião e compartilhamento de gostos. Trata-se de um falso espaço público, uma vez que as vozes discordantes não precisam ser ouvidas já que podem ser eliminadas com apenas um clic. No Facebook, cada um tem o direito de ser Stalin e expurgar os dissidentes. Essa facilidade de bloquear um “coxinha fascista” ou um “peteba comunista” tem um efeito tão gratificante quanto deseducador porque, ao contrário do que pensam alguns, o desiderato da vida política não está em tornar-se o próximo tirano, assim como não está em alcançar um meio-termo morno com os adversários para não perder a popularidade. Em tempos menos escuros, o objetivo da vida política deveria ser o mais digno de todos: a formulação rigorosa, consequente e argumentada das posições que defendemos e que lutamos para realizar em confronto com as visões de oponentes de igual clareza e firmeza de propósitos.

A intensidade da vida política não deveria vir do frenesi jacobino que clama por mais guilhotina para os inimigos; também não deveria vir do sentimentalismo ressentido da pequena burguesia (a classe social especializada em mi-mi-mi à direita e à esquerda). A vida política exige inteligência porque exige soluções. Essas soluções não são neutras. Elas sempre causam descontentamentos. É preciso ter argumentos racionais diante dos ataques que vêm dos insatisfeitos. É preciso ter firmeza, aquela que vem da lucidez de quem vê o quadro mais amplo e não aquela que se reduz à segurança estreita de quem repete mantras. O dogmatismo à esquerda e à direita está tão afastado da inteligência política quanto a real politik fisiológica e baixa das ratazanas de fatiota.

A inteligência política compreende que a sabedoria, o conhecimento e a racionalidade não são monopólio da esquerda ou da direita, mas as decisões sobre as pautas públicas necessariamente serão posições partidárias e, por isso, nunca corresponderão à idealidade do conhecimento e da racionalidade, da mesma maneira que nunca corresponderão perfeitamente aos valores morais. Aceitar a imperfeição e a incerteza inerente às escolhas políticas e, ao mesmo tempo, reconhecer que elas devem estar circunscritas ao âmbito da racionalidade, do conhecimento e da sabedoria, é a quadratura do círculo que é preciso resolver no âmbito de cada ação política. Aqui não há fórmulas gerais nem receitas prontas.

 A inteligência política é, portanto, uma real politik da razão treinada na lida com a vida concreta e esclarecida pela meditação sobre os grandes autores. Nenhum esquerdista deveria se privar da prosa vigorosa e da inteligência de Edmund Burke, das fulminações clarividentes de Joseph de Maistre, da argúcia analítica de Tocqueville, das conquistas teóricas da Escola de Viena, do brilho racional insuperável de Raymond Aron, das escrupulosas construções teóricas de filósofos como Voegelin e Eric Weil. Nenhum direitista deveria tapar os ouvidos ao canto de sereia retórico e argumentativo de Rousseau, nem deveria negar o rigor das análises de Marx ou o empenho revolucionário insuperável de Lenin, tampouco deveria desprezar as grandes formulações de Gramsci, Adorno e Marcuse sobre a sociedade contemporânea, ou as incomparáveis provocações de Sartre, ou a capacidade de Foucault de perturbar consensos estabelecidos. E ninguém, à direita ou à esquerda, deveria fugir da leitura de Tucídides, Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Spinoza ou Max Weber.

A inteligência política brilha à esquerda e à direita em todos esses grandes pensadores e em todos aqueles que nem cheguei a citar e que deveriam ser o pão cotidiano do pensamento de qualquer um que acredita que a vida política é uma arena em que é preciso intervir pela ação, pela opinião, pelo voto, mas antes de tudo, pela inteligência, pelo cultivo da capacidade argumentativa, pelo exercício da paciência de ouvir as opiniões opostas. Será exigir demais que os militantes estudem? Que não se apressem a seguir um mestre? Que não sejam leitores de um único livro? Que se esforcem para não dizer tolices?  Que não pensem que alguém é inteligente só porque se diz de esquerda ou de direita?  É preciso que os militantes à esquerda e à direita aprendam a desmascarar os farsantes, a desmentir os fariseus e a desmoralizar os filisteus dentro da sua própria família política.  É desesperadoramente necessário, dada a gravidade da situação social e política do Brasil, que aqueles que estão empenhados na mudança não façam o papel de pós-otários que acreditam em pós-verdades.


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Nota 1: As incertezas internas foram agravadas, como sempre, pelas notícias do exterior que “sacudiram os mercados internacionais”. É de se admirar essa capacidade sismográfica dos mercados. Que sensibilidade tão suscetível! Basta um boato, uma intriga, alguma “pós-verdade”, e toda a confiança dos agentes econômicos racionais desaba em insegurança e pânico. Quando tudo está bem, exalta-se a capacidade autorregulatória dos mercados; quando começam a surgir os problemas, os mercados acusam a meteorologia (demasiadas chuvas ou demasiadas secas), a vida política (demasiado corrupta e ineficiente), a democracia (demasiadas concessões demagógicas e populistas) e o Estado (demasiadamente intrometido no fluxo normal dos negócios); quando a situação se torna catastrófica, os mercados caem de joelhos diante de qualquer governante forte que prometa ordem.  Os mercados são máquinas de externalizar os fracassos e os prejuízos. Se o avião voa bem, o mérito é da empresa que o construiu; se o avião cai, a falha está no piloto e na turbulência imprevista.

Nota 2:  Antes que alguém confunda mais uma vez a bandeira do Japão com a dos comunistas ou, o que dá no mesmo, veja aí mais uma intervenção maligna do Foro de São Paulo, faço questão de explicar que a expressão “conquistar corações e mentes” não tem nada a ver com o conceito de hegemonia de Gramsci. A expressão se refere a uma estratégia adotada pelo norte-americanos no Vietnam do Sul. A frase “corações e mentes” foi bastante usada pelo Presidente Johnson e a ideia subjacente retrocede até, pelo menos, John Adams, um dos Founding Fathers e figura reverenciada pelos conservadores norte-americanos e, tanto quanto eu saiba, acima de qualquer suspeita de comunismo.

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foto: obra de Joseph Kosuth, Self-described and self-defined, Museu Berardo, Lisboa







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