segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Burgueses e filisteus: a Nova Direita (parte 3)






Resposta a duas questões

Pretendo responder às duas questões que formulei no último capítulo:
(a) a violenta polarização vivida desde 2014 pode ser comparada às guerras culturais norte-americanas?
(b) a Nova Direita é portadora de algum consenso semelhante ao velho fusionismo norte-americano?

1.

Para explicar as guerras culturais nos Estados Unidos, James Davison Hunter partiu da premissa de que o pertencimento a grupos religiosos fazia parte da identidade norte-americana até que a modernização cindiu esses grupos entre os que aceitavam o progresso e os que lhe resistiam. Com isso, a distância entre judeus, católicos, protestantes e ateus no campo liberal (no sentido norte-americano de esquerda progressista) se tornou bem menor do que a distância entre a liberais e conservadores no interior do judaísmo, do catolicismo e do protestantismo. 

Enquanto os conservadores apelam ao chão firme da religião e da moral contra o que lhes parece a leviandade com que os liberais aceitam as forças corruptoras do mundo, os liberais apontam as constantes mudanças históricas contra a ilusão de perenidade sustentada pelos conservadores. Para os conservadores, os liberais são cínicos e imorais; para os liberais, os conservadores são hipócritas e anacrônicos. 

Como em toda polêmica, existe aí um campo prévio de entendimento tácito. Conservadores e liberais discutem a mesma questão: a de determinar, dentre as múltiplas temporalidades em que estamos todos inseridos, qual é a fundamental para nossa existência. Temos que escolher entre reverência ou desdém pelo passado, entre memória ou esquecimento, entre agir agora ou esperar, entre restaurar o velho ou projetar o novo. Temos que escolher entre o tempo cumulativo da experiência e o tempo cíclico do cotidiano, entre o tempo curto das modas e o tempo longo dos costumes, entre o tempo veloz da política e o tempo lento das sociedades, entre o tempo efêmero das novidades e o tempo longuíssimo da cultura e da história, entre o tempo na escala das gerações humanas e o tempo na escala da evolução, da geologia ou da astronomia, entre viver para o instante ou viver para a eternidade. A maneira como essas temporalidades são avaliadas e ganham forma narrativa em nossa comunicação com os outros constituem o cerne de nossa vida moral e cultural. Nossas escolhas políticas são versões grosseiras, abreviadas e simplistas de certas filosofias da história e de certas metafísicas do tempo às quais damos adesão quase sempre inconsciente.  


2.

Nas guerras culturais norte-americanas, os contendores lutam para definir a identidade e o futuro da nação. Um debate de tal envergadura e intensidade pressupõe convicções a respeito dos fundamentos da vida nacional que não têm equivalentes na história do Brasil.

Os intérpretes clássicos do Brasil divergiram quanto aos fatores formadores da sociedade brasileira. Para a tradição marxista, representada por Caio Prado Jr., a colonização do Brasil assumiu, desde o início, o caráter de uma grande empresa comercial voltada para a exploração dos recursos naturais em proveito do mercado europeu. Para a tradição liberal weberiana, representada por Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, a herança portuguesa teria deixado um legado de displicência em relação às regras e de trato patrimonialista da coisa pública. Para Gilberto Freyre, treinado na antropologia cultural norte-americana, a relação entre senhores e escravos nos engenhos de açúcar do Nordeste definiu as formas de sociabilidade no Brasil, tanto no afeto e na dependência, quanto na violência e no arbítrio.

Os nossos intérpretes tampouco chegaram a um acordo sobre a posição do Brasil no mundo moderno. Para Caio Prado Jr., a colônia já estava inserida na modernidade mercantilista antes mesmo de a Europa se libertar dos entraves feudais. Para Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, a sociedade brasileira, marcada pelas relações informais e pela obtenção de vantagens sem esforço, permaneceu pré-moderna. Para Gilberto Freyre, a experiência singular de mestiçagem na América lusitana não poderia ser reduzida às dinâmicas modernizadoras do mundo europeu e anglo-americano: o Brasil estaria fadado a seguir um caminho próprio e original.

Em que pesem as enormes diferenças entre nossos intérpretes, nenhum deles identificou no passado do Brasil uma matriz de ordem social legítima, mas apenas práticas de exploração, aversão ao esforço físico e intelectual, apadrinhamento, violência, arbitrio, promiscuidade e confusão entre a esfera pública e a vida privada. O resultado é a miríade lamentável de malandros, puxa-sacos, apaniguados, tolos, desleixados, oportunistas ingênuos ou sagazes, coitados, medalhões, cínicos, hipócritas, truculentos, inescrupulosos triunfantes, fazendeiros do ar, funcionários acovardados, casuístas e fracassados que povoam as obras dos grandes escritores brasileiros. Sobre essa massa amorfa, de expectativas cambiantes e destino incerto batem-se as ondas sucessivas de racionalização, burocratização e normatização impessoal, deixando como resíduo um certo discurso de feições modernas, que não causa cisões profundas - como ocorreram nos Estados Unidos - porque esse discurso nunca chega a tomar corpo nas práticas cotidianas, nem ameaça valores que, aliás, nunca vieram a ser realmente compartilhados em escala nacional.


3.

Essa modernidade superficial e de bom-tom é o pão servido diariamente pelos editoriais da grande imprensa. É um discurso todo feito de incompossíveis: é preciso austeridade e rigor fiscal, mas é importante não onerar as classes médias consumidoras nem as elites geradoras de riqueza; é urgente conceder benefícios aos  excluídos, mas é preciso acabar primeiro com a baderna dos que exigem direitos; é importante despertar a consciência política, mas é preciso criticar o ativismo desenfreado; a hora é de urgência e o momento é grave, mas é bom ser prudente e evitar precipitação; é necessário dar razão às demandas da esquerda e da direita, tomando o cuidado de nunca atendê-las. Esse discurso insosso é um véu  diáfano que mal encobre as verdadeiras relações da grande imprensa com o governo e com a sociedade. A empresa da família Frias, que edita a Folha de São Paulo com o sonho de fazer dela a versão brasílica do New York Times (a conhecida máquina de ganhar prêmios Pulitzer), também editava até 2001 o Notícias Populares, em que os mesmos jornalistas sérios da Folha se divertiam em desafiar a credulidade dos taxistas e das costureiras, inventando histórias estapafúrdias e divulgando fotos e fatos escabrosos da crônica policial das periferias. Enfim, all the news that’s fit to print. Enquanto isso, a família Civita, dona do grupo Abril, que publica a revista Veja, implora por verbas do governo federal para sustentar os articulistas que promovem campanhas contra o intervencionismo estatal. 

(Como se sabe, o imbroglio vem de longe. Quando Hayek visitou o Brasil em 1981, a sua palestra na Universidade de Brasília foi publicada pela Editora da UnB numa coleção subvencionada por verba federal no tempo em que o Brasil tinha uma das economias mais estatizadas do mundo. Mas, que importa? O dinheiro é uma grande rameira e o papel impresso aceita tudo, até neoliberalismo com subvenção do Estado). 

Esse jogo de morde-e-sopra, insuportável para os leitores mais críticos à direita ou à esquerda, tem uma contrapartida nas alianças inimagináveis às quais a classe política gostosamente se atira em nome da governabilidade, como foi, em meados da década de 1990, a aliança do PSDB (ainda posando de social-democrata) com o PFL (verdadeira retaguarda da vanguarda, ou vanguarda da retaguarda, dependendo de que lado se olha o jumento), ou as alianças mirabolantes construídas por Lula e Dilma, que terminaram por entregar a presidência a Michel Temer  e à tropa do trapo e da fatiota causídica que ora administra o país (a legião de filisteus redivivos que serviu de ponto de partida desta série).

4.

Não existe, portanto, uma clivagem equivalente às guerras culturais nos Estados Unidos. A polarização recente foi um fenômeno superficial atiçado pelo gritante insucesso da política econômica de Dilma Rousseff, que desnudou, para quem ainda não tinha percebido, os limites e contradições da experiência social-democrata: “Reindustrialização com oposição dos industriais, assalariamento precário com acesso à universidade, ampliação do crédito educacional com crescimento do ensino superior privado, walmartização do trabalho com internacionalismo dos sindicatos, agroecologia com agronegócios, autonomização dos mais pobres com passividade assistencialista, emancipação cultural com empreendedorismo, esperança de inclusão com rebaixamento de expectativas” (André Singer e Isabel Loureiro, As contradições do Lulismo, Boitempo, p. 13)

É fato inegável que o PT, cujos dirigentes estão, de um jeito ou de outro, lançados ao opróbrio, foi derrotado, mas a tese de uma vitória da direita nas eleições municipais de 2016 deve ser avaliada cum grano salis. A eleição de João Dória Jr. em São Paulo e de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro não são sinais inequívocos de guinada direitista.

João Dória Jr. é um empresário bem-sucedido, envolvido com a esfera governamental desde 1983, quando foi secretário municipal de Turismo de Mário Covas e, logo depois, diretor da Embratur na presidência de José Sarney. Nunca deu sinal de qualquer preocupação ideológica. Alegou ser um homem distante da política (embora carregasse como vice o neto de Mário Covas) e se declarou opositor ferrenho do PT (como se espera do PSDB paulista). De resto, sua vitória parece mais um episódio da alternância entre centro-direita e centro-esquerda na prefeitura de São Paulo do que um fenômeno novo a exigir recursos divinatórios da ciência política. 

Quanto a Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, dificilmente se pode colocá-lo na conta de representante da Nova Direita. Ele foi candidato pelo Partido Republicano Brasileiro – atualmente identificado como partido da Igreja Universal - , mas que teve como um dos seus fundadores José Alencar, então vice-presidente de Lula; além disso, o próprio Crivella teve apoio de Lula para a disputa do governo do Estado do Rio de Janeiro em 2006, antes de ser ministro da Pesca do governo Dilma Rousseff durante dois anos.  Que tipo de direita é essa? E por que seria nova? Havia um nome, hoje esquecido, para essas transações políticas ao sabor das oportunidades. Os mais velhos se referiam a isso como "fisiologismo", que é exatamente o oposto de uma política que leva a sério opções ideológicas.

Houve, é verdade, a eleição de figuras oriundas do Movimento Brasil Livre, agremiação jovem bastante ativa durante as passeatas e mobilizações contra a corrupção e a favor do impeachment de Dilma Rousseff. No entanto, o MBL saiu chamuscado quando alguns de seus militantes menos inteligentes se deixaram fotografar em gostoso conluio com Eduardo Cunha, o corruptíssimo presidente da Câmara dos Deputados que logo seria lançado ao geena. A eleição de um prefeito e de vários vereadores associados ao Movimento permitirá verificar o quanto o discurso enérgico da militância de rua pode ser desmentido pelos prazeres fáceis dos conchavos de gabinete e das ofertas irrecusáveis. Tomara que os rapazes do MBL tenham mais sorte do que José Dirceu, que outrora foi jovem, fazia discursos inflamados e era tão insciente quanto Kim Kataguiri.

Portanto, a hipótese de que uma Nova Direita tenha surgido no campo político ainda carece de provas e evidências. A vida política instituída parece o ninho de ratos de sempre e nada indica que a sociedade brasileira tenha sido modificada por alguma revelação epifânica. A pasmaceira e a geleia geral multissecular não podem ser resolvidas pelas marchas da Família com Deus pela Liberdade, nem pelas jornadas de junho de 2013 nem pelos patos amarelos da Fiesp.  

5.

Que não seja ainda possível identificar alguma novidade política vinda do campo da direita não implica que não haja um movimento ativo de ideias e aspirações que se alinham com o conservadorismo e com o liberalismo econômico. A partir das minhas leituras e de muitas conversas com direitistas, acredito que o que tem sido chamado “Nova Direita” parece vir em três modelos à escolha do freguês:

Há uma versão bonitinha e limpinha do conservadorismo, que fala mal da intervenção do Estado na economia, mas aceita de bom grado a pauta social esquerdista: o direito ao aborto, o feminismo, a sustentabilidade ecológica, a luta contra o trabalho escravo, contra a homofobia, contra o racismo e admite até um certo assistencialismo para as famílias mais pobres, desde que seja feito como na época de Fernando Henrique Cardoso... Para a direita limpinha, a liberdade é um bem fundamental, mas é possível sacrificar parte dela, desde que se preserve as boas maneiras, o respeito à família e o acesso ao consumo de bens importados. Esse é o “conservadorismo” politicamente correto dos eleitores do PSDB. 

A segunda versão é cafona e brega. Anseia por uma vasta restauração social com ênfase na disciplina, na ordem, na dureza ascética, no esforço e na luta contra a permissividade contracultural que amolece os jovens até a medula e destrói o núcleo moral dos indivíduos. É isso que tem que ser recuperado acima de tudo, nem que seja preciso votar em Jair Bolsonaro, o miles gloriosus, e trazer de volta a bancada do alicate. Os direitistas cafonas parecem saídos de um conto de Dalton Trevisan: usam roupas surradas, têm caspa na sobrancelha e sentem que podem governar o mundo desde Curitiba. Por isso repetem para si mesmo os dizeres do príncipe da Dinamarca: I could be bounded in a nutshell and count myself a king of infinite space.

A terceira versão é tão chic e grã-fina que tem até "vida interior", exibida com o ar blasé e o ceticismo trágico de quem espera morrer durante a queda da casa de Usher. Na vida real, porém, a direita chic é bem prosaica: acredita no mérito, nos bons vinhos e nas frases de Nelson Rodrigues, salmodiadas pour épater les bourgeois nos jantares inteligentes em que esquerdistas ricos (amplamente favoráveis às ciclovias) e conservadores limpinhos (que exigem iniciativa privada na implantação de ciclovias)  riem dos coitados que torram o dinheiro do bolsa-família pagando as mensalidades do curso de filosofia do Olavo de Carvalho. Forte indício de que a luta de classes não cessa só porque alguns a consideram uma perigosa ideia comunista que perturba a harmonia que sempre existiu em nosso país.

6.

Além do respeito ao mérito individual e da aversão ao estatismo, não parece haver um consenso teórico entre os publicistas da Nova Direita. Nem mesmo parece haver alguma chance de acordo entre eles, agora que a causa que lhes servia de fundamento comum se esgotou ou está perto disso: o governo do PT foi derrubado, os folclóricos coxinhas estão comemorando os resultados eleitorais favoráveis e a ameaça de uma vitória da esquerda nas eleições presidenciais de 2018 pode ser prevenida pela adoção miraculosa do sistema parlamentarista, amparado pela mais transparente legalidade. Mas isso nos leva de volta à tropa do trapo, à fatiota dos causídicos, aos misangelistas in nomine domine e ao inconfundível odor de filistinismo.
(continua)


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Reinaldo Azevedo, Contra o Consenso, Editora Barracuda, São Paulo, 2005 | Olavo de Carvalho, O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, Record, Rio de Janeiro, 2013 | Rodrigo Constantino, Esquerda Caviar, Record, Rio de Janeiro, 2014 | Bruno Garschagen, Pare de Acreditar no Governo, Record, Rio de Janeiro, 2015 | James Davison Hunter, Culture Wars: the struggle to define America, Basic Books, 1991 | Luiz Felipe Pondé, Contra um mundo melhor, Leya, São Paulo, 2013 | André Singer e Isabel Loureiro (orgs.), As contradições do lulismo, Boitempo, São Paulo, 2016



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