segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

En medio de la plaza y sobre tosca piedra #5









 Madrid





Ao contrário da Itália e de Portugal, terras de pertencimento às quais me ata um longuíssimo cordão umbilical, a Espanha me veio em pequenas porções. Minha mãe, que tivera vizinhas e colegas espanholas quando morava na Mooca, foi quem me deu a primeira lição do idioma: filho se diz “hijo”, folha se diz “hoja”. Haciase la luz. Então o espanhol estava tão próximo do português que as diferenças podiam ser reduzidas a certas regras de transformação fonética? Não era bem assim, mas o iniciante precisava apoiar sua alavanca em algum ponto de Arquimedes. Com isso, o espanhol veio a ser a segunda língua que eu li, pois o italiano que se ouvia na minha casa, estropiado pelo analfabetismo e pela velhice balbuciante do nonos Giovanni Battista e Angelina, era demasiado escuro e sujo de terra, como costumam ser as raízes, ao passo que o espanhol era novo, brilhante e tinha algo de fulminante.

Na década de 1970, assistir ao Jornal Nacional à espera da novela das oito era um ritual para quase todas as famílias brasileiras que dispunham de aparelho de tv. Meu pai só comprava jornais aos domingos. Revistas, só aquelas com figurinos que minha mãe pudesse mostrar para as clientes que estavam indecisas quanto à roupa que iriam encomendar. É pela televisão que a Espanha nos chegava aos pedaços quase todas as noites. Os da minha geração devem se lembrar daquele ano de 1973, que começou com a morte de Picasso e terminou com o atentado do ETA que matou Luís Carrero Blanco, braço direito de Franco. Uma época estava para se encerrar. Menos de dois anos depois, vi a notícia da morte do Generalíssimo no Jornal Nacional.

O que se seguiu foi muito rápido e confuso para mim. A Espanha voltou a ser uma monarquia, mas quem governava o país era Adolfo Suárez, cuja pinta de cantor de tango contrastava com a sisudez do nosso general Geisel. Enquanto Suárez convocava as agremiações políticas e sindicais para negociar os pactos de Moncloa em 1977, vivíamos aqui os momentos tensos da nossa abertura gradual feita em slow motion para não assustar os homens das casernas. Quando ficou pronta a nova constituição democrática da Espanha no final de 1978, eu estava mais preocupado em acompanhar à noite as discussões entre Spock e McCoy em Jornada nas Estrelas, motivo pelo qual também não percebi que, a partir de 1º de janeiro de 1979, estávamos livres do Ato Institucional nº5.

A Espanha apareceu outra vez no Jornal Nacional em fevereiro de 1981. A inflação galopante e os atentados do ETA pareciam demonstrar a impotência da democracia em manter a ordem pública. Ao menos era o que parecia aos membros da Guarda Civil que invadiram o Congresso dos Deputados e dispararam suas carabinas para cima exigindo silêncio e obediência, mas o alzamiento de 1936 não se repetiu. Ao desautorizar a intentona no dia seguinte, o rei Juan Carlos mostrou uma decência que não se via entre os Bourbon desde os tempos de Henrique de Navarra. No mesmo ano do golpe malfadado, foi a vez de dois terroristas de quartel tentarem explodir um carro-bomba na frente do Riocentro no show do Dia do Trabalho. O sargento e o capitão, por demasiado afoitos ou incompetentes no manejo da matéria explosiva, subitamente viram-se diante dos portões do país desconhecido do qual ninguém volta. O alzamiento de 1964 não se repetiu.

Entre a Copa do Mundo e a Olimpíada de Barcelona, a Espanha viu o fundo do poço do desemprego, a recuperação “milagrosa”, o ingresso na Comunidade Europeia, o Oscar de Filme Estrangeiro de 1983, o Nobel de Literatura de 1989 e a consagração de Almodóvar como o expoente de um país sem recalques. O Partido Socialista Operário Espanhol, tendo à frente Felipe González, era um modelo de esquerda pragmática, disposta a abandonar da luta de classes em nome da governabilidade, como fará, na década de 90,  Tony Blair à frente do New Labour. Durante os anos de “milagre” espanhol, os bancos espanhóis se tornaram poderosos e o imenso conglomerado estatal da Rumasa foi desmembrado e privatizado. Os socialistas espanhóis pareciam ter encontrado a receita de sucesso para uma economia faminta de democracia e desenvolvimento. Tratava-se de uma combinação de welfare state socialdemocrata (inspirado de longe pelo modelo sueco que nós, brasileiros, também cobiçávamos), práticas neoliberais de incentivo ao capital rentista e ao consumo dos segmentos médios (já colocadas em prática no Chile, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos) e promoção de uma cultura laica e cosmopolita. No Brasil de meados dos anos 80, muitas figuras de centro-esquerda, especialmente as que viriam a fundar o PSDB, expressavam admiração pelos acordos de Moncloa e pelas conquistas de Felipe González. 

Essa Espanha, que volta e meia entrava em casa através da televisão, marcou-me a adolescência e o início da vida adulta. No curto governo de Calvo Sotelo, eu era um jovenzinho de família operária e católica. Entre meus colegas de escola, o filme era Mad Max e a música, Another Brick on the Wall. Todos éramos mais ou menos punks quando Guernica, de Picasso, passou a ser definitivamente exposta em Madrid. Na Copa de 82,  eu ouvia The Police e iniciava meu caminho para a filosofia. A Espanha entrou na Comunidade Europeia quando começavam minha vida universitária e o namoro com Ludmila. No auge do sucesso de Mujeres al borde de um ataque de nervios, que tornou Pedro Almodóvar mundialmente famoso, eu estava enfronhado em Nietzsche, Marx e Freud. No quinto centenário da chegada de Colombo à América, quando se celebraram as Olimpíadas de Barcelona, eu já era professor e apoiava meus alunos “cara-pintadas”, que saíam às ruas para pedir o impeachment do presidente Fernando Collor. Durante os anos da socialdemocracia brasileira, instalada por Fernando Henrique Cardoso e continuada por Luís Inácio Lula da Silva, enquanto o Brasil corria para integrar o clube das nações mais ricas do mundo, sucessivas ondas de "reconquista ibérica" trouxeram a Telefónica, os bancos Santander e BBV, a seguradora Mapfre e dezenas de outras empresas espanholas. Além disso, nossos craques, antes destinados às prestigiadas equipes italianas, passaram a ser adquiridos em transações milionárias pelas duas novas potências do futebol mundial: o Real Madrid e o Barcelona. 

No entanto, a Espanha sofreu graves reveses. O atentado na estação madrilenha de Atocha, que matou quase duzentas pessoas em março de 2004, abriu um novo período de terrorismo na Europa. A crise do sistema financeiro internacional de 2008 colocou o povo espanhol sob o jugo da  Troika, apelido dado ao Cérbero cujas cabeças são a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI. Contudo, ao desembarcarmos em Madrid em janeiro de 2015, tudo indicava que o pior momento ficara para trás. O governo conservador de Mariano Rajoy pôde anunciar alguns discretos sinais de recuperação econômica, embora o taxista com quem conversamos não estivesse tão animado. A maior novidade, porém, é que, numa Europa acossada pela extrema-direita, a Espanha viu a rápida ascensão da esquerda novíssima representada pelo Podemos, cujas práticas e propostas a esquerda brasileira em crise tenta compreender e assimilar. A história continua a nos dar lições a partir da Espanha.

Eu não amo Madrid. A Catedral de Almudena é um bloco de mau gosto gris, pesado em português e em espanhol. Os duraznos do Mercado de San Miguel souberam-me a mangas. A Gran Via na altura de Callao é uma Times Square rastaquera, com a marca enfática das modernidades de imitação. El churro con chocolate no me ha encantado e estou disposto a encarar a eternidade sem provar outra vez o cocidito madrileño. Definitivamente esta não é a minha cidade, mas gosto do sotaque  castizo e tenho enorme simpatia pela juventude ochentera que, durante a Movida Madrileña, enchia as ruas de Malasaña, bairro boêmio de majos, chulos y chisperos desde os tempo de Goya. Esses jovens que, em Madrid como em São Paulo, eram desprezados como a blank generation são agora uns cinquentões como eu, punks tardios que, apesar do aburguesamento, ainda levam a sério aquela outra Madrid da qual Antonio Machado, que aqui morou por tantos anos, escreveu:

Como y por qué el pueblo, precisamente el pueblo madrileño era el menos surpreendido por la traición fascista, y el más dispuesto a combatirla, es algo que los historiadores del porvenir nos explicarán, acaso, algún dia”.
(Antonio Machado, Madrid, Baluarte de Nuestra Guerra de Independencia, 7. XI 1936 - 7.XI.1937,  Servicio Español de Información, Valencia, 1937).








Aeroporto Madrid-Barajas. Terminal 4. Projeto de Richard Rogers e do Estudio Lamela




Porta de Alcalá


Palácio das Comunicações.



Praça de Cibeles




Gran Via na altura do metrô Callao


Porta do Sol



Mercado de San Miguel



Plaza de la Villa



Plaza Mayor: estátua de Felipe III

Museu Thyssen-Bornemisza


Museu Thyssen-Bornemisza: Exposição Givenchy. No centro, Mark Rothko/ foto: Ludmila Ciuffi.



Museu Thyssen-Bornemisza





Museu Thyssen-Bornemisza: Ghirlandaio/ foto: Ludmila Ciuffi




Museu Thyssen-Bornemisza. O Sobrinho de Enesidemo diante dos construtivistas russos/ foto: Ludmila Ciuffi



Museu do Prado





Parque do Retiro



Parque do Retiro/ foto: Ludmila Ciuffi




Parque do Retiro




Parque do Retiro




Parque do Retiro




Parque do Retiro/ foto: Ludmila Ciuffi


Paseo del Prado


Jardins cobertos da Estação de Atocha


A estação de Atocha vista do Museu Rainha Sofia




Museu Rainha Sofia. O projeto dos elevadores é de

José Luis Íñiguez de Onzoño, Antonio Vázquez de Castro e Ian Ritchie.





Museu Rainha Sofia. Detalhe dos elevadores.



Museu Rainha Sofia. O corredor ao lado o pátio central.



Museu Rainha Sofia: seção de fotografia/ foto: Ludmila Ciuffi.



Museu Rainha Sofia. Uma escultura de Chilida e uma pintura de Antonio Saura/ foto: Ludmila Ciuffi.




Museu Rainha Sofia. Pintura de Antoni Tapiès/ foto: Ludmila Ciuffi.



Museu Rainha Sofia. Pintura de Manolo Millares/ foto: Ludmila Ciuffi.


Museu Rainha Sofia. Área ampliada projetada por Jean Nouvel.



Museu Rainha Sofia. Área ampliada projetada por Jean Nouvel.




Museu da América: fardo de múmia da cultura Paracas/ foto: Ludmila Ciuffi.



Museu Arqueológico Nacional: coroas visigóticas.



Telhados do bairro de Malasaña.










No centro, o Sobrinho de Enesidemo
ao tempo do Mundial da Espanha 
e da Movida Madrileña.








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