quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Burgueses e filisteus: a Nova Direita (parte 1)










A polarização


Desde as eleições presidenciais de 2014, quando os candidatos Aécio Neves (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) disputaram uma campanha renhida e ingrata, com uma estreita margem de vitória para o PT - que então ia para o quarto mandato presidencial -, houve uma notável polarização no plano político-econômico: de um lado, o “reformismo suave” do PT (nas palavras de André Singer), do outro lado, um programa de liberalização mais agressivo defendido pelo PSDB, com apoio do setor empresarial.

Nos meses que se seguiram à eleição, os opositores ao PT se levantaram em imensas manifestações de protesto e descontentamento por todo o país, em especial nas capitais da região Sudeste. A Fronda dos Coxinhas era fácil de se prever, mas difícil de ser categorizada em termos sociais: havia os representantes das agremiações da Nova Direita, todos bastante empenhados e aguerridos, alguns laicos, outros ligados às igrejas pentecostais; havia os representantes de uma Direita arcaica, envelhecida e incômoda: os últimos integralistas, os saudosos da caserna e da tortura, os fascistas de velha cepa, a reação católica tradicional. Havia, por fim, os descontentes avulsos sem bandeira. Não se tratava, portanto, apenas de partidários do candidato derrotado Aécio Neves ou do PSDB, que deu uma adesão morna a essas manifestações.  Também não se tratava, como queriam alguns, de uma passeata de madames burguesas que supostamente mandavam as empregadas baterem panela em sinal de desaprovação à presidenta Dilma.

O tom cada vez mais veemente assumido por articulistas como Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino ou Marco Antônio Villa, a ampla difusão de insultos e boatos pelas redes sociais, as capas agressivas da revista Veja levaram os defensores do governo (ou da esquerda em geral) a retrucar com igual veemência e agressividade. Do lado da oposição, os ataques convergiram para a questão da corrupção do governo federal e a prática das “pedaladas” fiscais, que supostamente teriam se tornado constantes no governo de Dilma Rousseff (ver nota).  Essa última acusação serviu de base legal para o pedido de impeachment de Dilma, mas como se viu na noite de 17 de abril de 2016, os 367 deputados que votaram a favor do afastamento da presidenta alegaram pretextos vagos ou motivos curiosos, que iam do folclórico ao patético, sem qualquer análise cuidadosa da questão.

Nas ruas e nas redes sociais, não se viu coisa diferente. A verdade é que a questão das “pedaladas” envolvia aspectos técnicos de difícil compreensão, por isso mesmo ela precisava ser apoiada por algo mais substancioso, capaz de sacudir a opinião pública. Isso foi oferecido pelos lances cada vez mais audaciosos da Operação Lava-Jato, que se apresentava como a versão brasileira da Operação Mãos Limpas que, na Itália dos anos 1990, investigou uma ampla rede de corrupção política, financiamento ilegal e envolvimento com a máfia, acabando por levar a uma reestruturação geral do sistema partidário italiano. No Brasil, subitamente alguns juízes de instâncias mais baixas e membros do ministério público passaram ao proscênio, com luzes e fotos de capa, disputando o espaço antes reservado aos altos magistrados do Supremo Tribunal Federal em evidência desde 2012, quando começou o julgamento dos envolvidos com o "Mensalão" (o grande escândalo de corrupção do governo Lula).

A oposição política ao governo do PT ganhou a forma de uma cruzada judicial e moral contra a corrupção, que passou a ser vista como um mal inerente às práticas assistencialistas da esquerda, acusadas de onerar os cofres públicos e impor uma sobrecarga fiscal sobre os setores produtivos. Apoiar tais políticas passou a ser sinal de parasitismo, mau-caráter e cumplicidade com a prevaricação. Alguns influentes formadores de opinião passaram a exigir a destruição total do legado esquerdista, mais ou menos nos mesmos termos que a esquerda dos anos 1980 queria a destruição do legado do regime militar: o “entulho autoritário” como se dizia nos tempos da redemocratização do Brasil.

O que quer que se pense dos representantes da Nova Direita, é óbvio que eles tiveram bastante sucesso na sua campanha no plano político e conseguiram impor uma série de temas intensamente discutidos nas redes sociais, na imprensa e nas ruas. Em linhas gerais, essa pauta consiste na luta contra a corrupção, na proposta de liberalização econômica e na criminalização da esquerda. As duas primeiras têm um forte apelo: (1) mesmo os corruptos se declaram contra a corrupção e (2) a liberdade dos agentes econômicos sob as regras de mercado sem intervenção do Estado parece realmente algo que ainda não foi tentado no Brasil (essa é a bandeira de Rodrigo Constantino).  A terceira é a tentativa de destruir a própria respeitabilidade histórica da esquerda como interlocutor político. Esse projeto tem várias ramificações, como o movimento Escola sem Partido (contra a doutrinação esquerdista nas escolas); a crítica ao "coitadismo" ou "vitimismo", isto é, às políticas de reconhecimento dos segmentos oprimidos: mulheres, homossexuais, negros e índios entre outros; ou a desqualificação da esquerda, apresentada como doença (a esquerdopatia segundo Reinaldo Azevedo) ou como imoralidade (na visão de Olavo de Carvalho).

A esquerda, hoje na defensiva, é compelida a rearticular suas posições em torno dos três itens da pauta mencionada. No que se refere à luta contra a corrupção, os partidários da esquerda criticam a orientação política dos juízes e promotores da Operação Lava-Jato, assim como a natureza ilegal de alguns de seus procedimentos, mas concordam com a necessidade de uma ampla investigação das redes privadas de financiamento e favorecimento ilegais que permeiam todo o sistema político (e não apenas a esquerda ou o governo petista).

No que diz respeito à proposta de liberalização, privatização e Estado mínimo, a esquerda mantém sua posição histórica contra os mercados não-regulamentados. Na medida que a liberdade de mercado exige o fim das cláusulas legais de proteção aos trabalhadores, os defensores do livre mercado encontrarão entraves não apenas na oposição parlamentar de esquerda, mas também nos sindicatos e nos segmentos populares que detém a força numérica do voto. Dadas as condições sociais do Brasil, uma total desregulamentação dos mercados somente poderia ser feita por meios de golpes que atentassem contra a democracia (o que não parece ser um problema para alguns expoentes da Nova Direita, que costumam zombar das ilusões rousseaunianas acerca da soberania popular).

Por último, o esforço em transformar a esquerda em patologia pode exercer um efeito irresistível sobre os neodireitistas radicais, mas seu poder de convencimento é limitado pelo seu próprio radicalismo. Por isso, justamente esse que é o lance mais ousado da Nova Direita também é seu calcanhar de Aquiles teórico. Algo parecido, com resultado igualmente insatisfatório, já tinha sido tentado pela esquerda quando Adorno coordenou a pesquisa que resultou no livro The Authoritarian Personality (1950), uma obra pouco convincente que tentava mostrar as raízes patológicas de uma certa direita. (É verdade que muitos esquerdistas veem os adeptos da direita como vítimas de recalques freudianos, mas isso pertence a um folclore teoricamente inócuo e não às bases teóricas das várias correntes de esquerda. Qualquer tentativa de transformar essa crença folclórica em argumento se torna uma acusação ad hominem falaciosa). 

Alguns intelectuais neodireitistas gostariam de expurgar não apenas as formas intransigentes e radicais do esquerdismo, mas também a própria herança iluminista que a esquerda sempre reivindicou. Não se trata apenas de afastar Dilma, prender Lula ou cassar o registro do PT, não se trata apenas de instaurar uma patrulha de direita inversa às antigas patrulhas de esquerda, não se trata apenas de denunciar os totalitarismos comunistas, não se trata apenas enterrar O Capital e banir o Manifesto Comunista, trata-se de negar Voltaire, Rousseau e Kant. Trata-se de um projeto coletivo ambicioso, mas que tropeça em alguns óbices práticos, que constituem seu calcanhar de Aquiles. É que no seu esforço de anular a esquerda como interlocutor político, a Nova Direita acaba por lhe prestar um serviço valioso, porquanto reaviva nas várias correntes de esquerda - todas abrangidas pela criminalização - a consciência dos princípios e tarefas históricas que irmanam os comunistas, os socialistas, os anarquistas, os social-democratas e os herdeiros mais consequentes de Stuart Mill. 

A meu ver, a novidade da Nova Direita brasileira consiste na aliança entre um ideário conservador visceralmente avesso ao diálogo com a esquerda e uma prática política jacobina de mobilização das “massas” em torno da caçada aos corruptos. Todavia, é difícil ver o que as obras intelectualmente refinadas de pensadores como Eric Voegelin, Russell Kirk, Constantin Noica ou Roger Scruton, que têm servido de suporte aos teóricos da Nova Direita,  têm a ver com o furor demogógico e jacobino que faz da caça a um punhado de corruptos uma espécie de catarse nacional, independentemente da questão da legalidade dos procedimentos, como se o juiz Sergio Moro fosse o novo Robespierre incorruptível do Comitê de Salvação Nacional.


Na minha análise do “conservadorismo” à brasileira, vou deixar de lado a proposta de desregulamentação dos mercados, não porque seja irrelevante, mas sim porque se trata de um debate já bastante antigo. O que desejo discutir é o contraste entre o conservadorismo teoricamente respeitável e a forma jacobina que assumiu nas ruas e nas redes sociais.

(continua)




Nota:
O termo “pedalada fiscal” se refere à prática de esconder o orçamento deficitário atrasando o repasse das verbas aos bancos públicos e privados como se, na prática, o governo tivesse tomado um empréstimo não autorizado com esses bancos, o que contraria a Lei de Responsabilidade Fiscal aprovada em 2000, durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).


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Foto: "Egg Fight", obra do artista Yinka Shonibare, Museu Afro Brasil, São Paulo, 2015
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sábado, 3 de setembro de 2016

Burgueses e filisteus: dois contos da mesma cidade










No último 31 de agosto, o Senado aprovou a cassação do mandato da presidenta Dilma Rousseff, afastada desde maio. Tenha ou não ocorrido um golpe palaciano-parlamentar contra Dilma, com a conivência da grande imprensa, o que parece consensual é que, pelo menos desde 2014, duas narrações disputam os “corações e mentes” dos segmentos que se pretendem politizados: um é o relato do projeto redentor interrompido, o outro é o da intervenção salvadora. O primeiro é endossado pelos partidários do PT e de amplos setores da esquerda brasileira; o segundo é apoiado pelo PSDB, rival histórico do PT, e pelas agremiações da Nova Direita, que fizeram clamor nas ruas das capitais brasileiras em 2015.



Para os partidários do PT, os anos de Lula e Dilma à frente do governo federal representaram uma ruptura com a multissecular tradição política de conchavo das elites, que sempre redundou em opressão e pobreza para a maior parte da população brasileira. A elevação dos níveis salariais e o reforço dos direitos trabalhistas, juntamente com uma política de pleno emprego e de benefícios sociais, permitiu que camadas antes excluídas do consumo pudessem se integrar a uma classe média ampliada. Essa política teria sido tolerada pelas elites tradicionais e pelo grande empresariado paulista enquanto a economia se encontrava em sua curva ascendente, todavia, quando as dificuldades internacionais interromperam o ciclo de crescimento, as elites hostis às conquistas sociais do governo petista se articularam para impedir o avanço do projeto redentor e destruir aquilo que foi construído desde 2003. A classe média que foi às ruas em 2015 – isto é, os agora folclóricos “coxinhas” – teria sido apenas uma massa de descontentes manobrados por grupos poderosos.

Para os oponentes do PT, a história foi bem diferente. Lula e Dilma implementaram um programa assistencialista que garantiria vitórias constantes nas eleições, uma vez que teriam o apoio dos bolsões de pobreza assistidos pelo governo federal, transformados em currais eleitorais. Esse programa era irresponsável do ponto de vista econômico e clientelista do ponto de vista político e somente poderia ter apoio dos parlamentares e dos escalões técnicos por meio das piores formas de cooptação política criadas pelo presidencialismo de coalização vigente desde o governo Collor. Depois de três mandatos presidenciais petistas, a corrupção se entranhou nas áreas diretamente controladas pelo governo federal. O sangramento bilionário dessa corrupção associado ao gerenciamento incompetente da política monetária e fiscal fez com que o Brasil mergulhasse numa gravíssima crise econômica que destruiu qualquer aquisição que, por ventura, tenha ocorrido durante a temporada petista. Por isso, os setores da classe média e do empresariado, indignados com a corrupção e o assistencialismo irresponsável, se aliaram num amplo movimento espontâneo, análogo ao movimento das "Diretas Já" em 1984. Essa articulação só foi possível porque uma ampla frente de agremiações de Direita vinha se compondo nos últimos anos sob a inspiração intelectual ou política de figuras públicas que, há muito tempo, batiam-se contra as ilusões da esquerda. Para essa Nova Direita, os beneficiários do assistencialismo petista – os folclóricos “petralhas” ou “mortadelas”- eram cúmplices do esquema parasitário que sugava recursos que deveriam ser dirigidos aos empreendedores, os únicos capazes de trazer prosperidade duradoura ao país.

Essas são as duas narrativas. A adesão a qualquer uma delas depende mais das paixões políticas de cada um do que do esforço sincero de encontrar a verdade, que, pobrezinha, correu para se esconder no fundo de algum poço assim que essa guerra começou. Eis porque estamos à mercê das revelações bombásticas, vazadas de maneira maliciosa ou oportunista, e das interpretações dadas pelos pundits da grande imprensa e dos órgãos “independentes” da internet.  Em outras palavras, estamos completamente às escuras, guiados pelas opiniões desencontradas de um bando de cegos pretensiosos, aos quais damos ouvido em função do hábito de ler este ou aquele jornalista que nos parece mais simpático, processo tão científico de decisão quanto o uni-duni-tê que praticávamos com sacrossanta seriedade aos sete anos.

Em vista disso, é melhor baixarmos nossas pretensões de compreender o processo real e nos limitarmos ao pouco que nos é dado ver nessa hora de fumaça e poeira.  Ao invés de perdermos tempo discutindo as figuras borradas e fugidias que vemos projetadas nas paredes - Dilma, Temer, Eduardo Cunha entre outros -, observemos o comportamento daqueles que, como nós, estão acorrentados nesta caverna. Ao invés de discutirmos em vão um futuro que não conhecemos e um processo cuja totalidade sempre nos escapa, vamos nos contentar com aquilo que podemos realmente alcançar: uma descrição sócio-psicológica dos lulopetistas e dos neodireitistas.

O que essa observação me tem mostrado é que, embora suas aspirações políticas pareçam seguir caminhos opostos, os lulopetistas e os neodireitistas são muito parecidos: a mesma exasperação moral pequeno-burguesa, a mesma certeza de que podem salvar o Brasil, o mesmo gosto pela mobilização de rua e pelo alçamento de bandeiras, o mesmo ativismo nas redes sociais, o mesmo repertório de ofensas, as mesmas lacunas de formação intelectual manifestas na necessidade de incensar certos gurus que veem tudo e sabem tudo. Neste ambiente de declarações apressadas, fulminações, lágrimas, histrionismos, apóstrofes dirigidas a Deus ou ao Julgamento da História e conclamações em nome do povo – todos se julgam porta-vozes das ruas e arautos dos brasileiros em geral -, enfim, neste ambiente tóxico e hostil ao pensamento, o que tem proliferado é, na verdade, apenas o jacobinismo.

O jacobinismo é o ativismo político dos middlebrows: a mania de acreditar em conspirações (o Foro de São Paulo ou o Instituto Millenium como fábricas de golpes), a indignação moral, a aspiração de salvar a pátria, o espírito gregário, o radicalismo verbal, a disposição de apontar adversários políticos como inimigos a serem eliminados, a paixão pela tribuna (que agora está instalada nas redes sociais e nas seções de comentários da imprensa online). Esses cacoetes, extremamente fortes na esquerda brasileira, também aparecem em alguns dos mais prestigiados mentores da Nova Direita, uma vez que eles são egressos das fileiras do Partido Comunista (como Olavo de Carvalho) ou vieram das alas radicais do PT (como Reinaldo Azevedo), todos eles seguidores da retórica acusatória de outro ex-comunista, Carlos Lacerda. A Nova Direita brasileira é, na verdade, a velha esquerda às avessas, mas o mau hálito continua o mesmo, denunciando aquele velho refluxo gástrico que afeta a esquerda brasileira desde a década de 1930 (assunto longo e doloroso que, por si só, merecerá uma série vindoura).

Um genuíno conservador no Brasil sempre foi ave rara, mas é curioso que os jacobinos de direita se digam conservadores com a mesma santa simplicidade com que os jacobinos de esquerda, todos eles proudhonianos de segunda mão, se dizem marxistas. É que o rótulo de conservador ou de marxista tem um pedigree ao qual os middlebrows, na sua alodoxia, não conseguem resistir.

O que eu quero fazer no próximo capítulo é mostrar a imensa distância que existe entre um autêntico conservador (necessariamente highbrow porque o conservadorismo autêntico, como o marxismo autêntico é biscoito fino para poucos) e esse “conservadorismo” jacobino, verdadeiro aborto de fundo de quintal, que tem se visto nas redes sociais e na avenida Paulista.