quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Madrid, Gran Via, 21 de enero de 2015



















No es tracta de textos on ja hi ha hagut

una intenció poètica; m'interessen textos

neutres, functionals, que jo puc convertir

en poètics pel fet d'haver-los triats.


Joan Brossa








O Sobrinho de Enesidemo

volta em fevereiro.






















sábado, 7 de janeiro de 2017

En medio de la plaza y sobre tosca piedra #9










Portbou



 
1.       O poeta sevilhano

No final de 1938, a Catalunha e a cidade de Madrid ainda se mantinham leais à República e resistiam a Franco. Todavia, com a vitória das tropas do general Juan Yagüe Blanco na batalha do Ebro, Barcelona passou a ser diretamente ameaçada. Entre 22 e 23 de janeiro de 1939, milhares de republicanos seguiram rumo à França, detendo-se em Portbou, última cidade espanhola antes da fronteira, à espera da autorização do governo francês. Ao amanhecer de 26 de janeiro, o exército franquista entrou em Barcelona. Na noite de 27 para 28, a França abriu suas fronteiras para receber os refugiados, entre os quais Antonio Machado, que se estabeleceu em Collioure, não muito longe de Portbou. Foi lá que ele morreu algumas semanas depois, no 22 de fevereiro. No mês seguinte, as tropas de Franco conquistaram Madrid.

De mar a mar entre los dos la guerra
más honda que la mar. En mi parterre,
miro a la mar que el horizonte cierra.
Tú, asomada, Guiomar, a un finisterre,

miras hacia otro mar, la mar de España
que Camoens cantara, tenebrosa.
Acaso a ti mi ausencia te acompanha.
A mi me duele tu recuerdo, diosa.

La guerra dio al amor el tajo fuerte.
Y es la total angustia de la muerte,
Con la sombra infecunda de tu llama

y la soñada miel de amor tardio,
y la flor imposible de la rama
que ha sentido del hacha el corte frio.

Estos dias azules y este sol de la infancia.

(Antonio Machado, "Recordando a Guiomar" in Antología Poética, Editorial Edaf, Madrid, 1990)




2.       O crítico berlinense

O incêndio do Reichstag, em fevereiro de 1933, dissipou qualquer dúvida sobre as intenções do novo chanceler alemão e de seu partido. Walter Benjamin, então com quarenta anos de idade, sem uma fonte estável de sustento e reconhecido apenas por uns poucos intelectuais de escol (que se encontravam em posição igualmente precária), decidiu mudar-se para a capital francesa e dedicar-se a uma obra monumental sobre a Paris  do século XIX. 

A situação política na França era bastante tensa. A extrema-direita havia rosnado e arreganhado os caninos na batalha campal na Place de la Concorde em 6 de fevereiro de 1934. A vitória do Front Populaire, coalizão de esquerda encabeçada pelo socialista judeu Léon Blum, atiçou ainda mais a sanha da Action Française e de um enxame de grupelhos fascistas. O governo de esquerda, apesar das suas conquistas trabalhistas, não foi capaz de debelar a crise econômica e terminou em 1938. 

Nessa altura, as pretensões imperiais da Alemanha já eram motivo de preocupação para os líderes europeus. No acordo de Munique de setembro de 38, Neville Chamberlain e Édouard Daladier tentaram evitar a guerra inevitável, atirando tchecos e eslovacos às mandíbulas do monstro germânico, com a mesma desfaçatez - disfarçada de Realpolitik - com que se decidiam as partilhas da África e do Oriente Médio. O golpe final, que desfez as esperanças de pôr um termo ao avanço do Reich, veio com o pacto de não agressão entre Hitler e Stálin, assinado em 23 de agosto de 1939.

Sob o impacto da notícia, Benjamin redigiu, no começo de 1940, suas Teses sobre o Conceito de História, nas quais ele exigia um materialismo histórico colocado sob a égide da teologia em lugar do historicismo burguês que contaminava os militantes da esquerda:

"Neste momento, em que os políticos nos quais os adversários do fascismo tinham depositado as suas esperanças jazem por terra e agravam sua derrota com a traição à sua própria causa, temos que arrancar a política das malhas do mundo profano, em que ela havia sido enredada por aqueles traidores. Nosso ponto de partida é a ideia de que a obtusa fé desses políticos no progresso, sua confiança no 'apoio das massas' e,  finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três aspectos da mesma realidade. Estas reflexões tentam mostrar como é alto o preço que nossos hábitos mentais têm de pagar quando nos associamos a uma concepção de história que recusa toda cumplicidade com aquela à qual continuam aderindo esses políticos".
(Walter Benjamin, “Sobre o Conceito de História”, Tese 10 in Obras Escolhidas volume I, Brasiliense, São Paulo, 1994)

Com o avanço da Wehrmacht sobre Paris em junho de 1940, Benjamin fugiu para o sul da França. Os lances finais são relatados pelo seu amigo Gershom Scholem:

"A despeito da impressionante paciência que ele demonstrou nos anos que se seguiram a 1933, combinado com um alto grau de tenacidade, Walter Benjamin não foi forte o suficiente para os eventos de 1940. Até setembro, ele mencionou em várias ocasiões a Hannah Arendt sua intenção de cometer suicídio. A única informação autêntica sobre os eventos ligados à sua morte se encontra num relatório minucioso escrito em 11 de outubro de 1940 pela Sra. Gurland, que atravessou a fronteira com ele, dirigido a Arkadi Gurland, membro do Instituto de Horkheimer. Eu recebi de Adorno uma cópia dessa carta em 1941. Da carta da sra. Gurland de 11 de outubro de 1940:
... Nesse meio tempo, você deve ter ouvido a respeito da nossa terrível experiência com Benjamin. Ele, José e eu deixamos Marselha juntos de modo a compartilharmos a viagem. Em Marselha, fiquei bastante amiga dele e ele me achou uma companheira de viagem conveniente. Na estrada através dos Pirineus, nós encontramos a Birmann, sua irmã a senhora Lipmann  e a mulher do Diário. Para todos nós, aquelas 12 horas foram uma provação absolutamente terrível. A estrada  era desconhecida para nós; em alguns trechos tínhamos que ficar de quatro para escalar. Ao entardecer chegamos a Portbou e fomos para a delegacia de polícia para requerer o carimbo de entrada. Por uma hora, quatro mulheres e nós três nos sentamos diante dos oficiais chorando, implorando e nos desesperando enquanto mostrávamos nossos documentos perfeitamente em ordem. Estávamos todos sem nacionalidade e nos disseram que, alguns dias antes, havia sido decretado que era proibido para pessoas sem nacionalidade viajar pela Espanha. Eles nos permitiram passar a noite num hotel, por assim dizer sob vigia, e fomos apresentados a três policiais que deveriam nos escoltar para a fronteira francesa pela manhã. O único documento que eu tinha era o norte-americano; José e Benjamin teriam que ser enviados para um campo. Por isso, todos nós entramos nos quartos no mais profundo desespero. Às 7 da manhã a senhora Lipmann me chamou porque Benjamin tinha perguntado por mim. Ele me disse que tinha tomado grande quantidade de morfina às 10 h da noite anterior e eu deveria dizer que se tratava de uma doença; ele me deu uma carta endereçada para mim e para Adorno. Então ele perdeu a consciência. Eu chamei um médico, que diagnosticou uma apoplexia cerebral; quando eu pedi com urgência que Benjamin fosse levado a um hospital, isto é, para Figueras, o médico se recusou a assumir qualquer responsabilidade, uma vez que Benjamin estava quase moribundo. Passei então o dia com a polícia, o prefeito e o juiz, que examinaram todos os documentos e acharam a carta aos Dominicanos na Espanha. Eu tive que trazer o padre e rezamos juntos ajoelhados por uma hora. Eu passei um medo terrível por José e por mim até que a certidão de óbito fosse feita na manhã seguinte.
Como foi previamente combinado, os policiais chamaram as quatro mulheres na manhã da morte de Benjamin. José e eu fomos deixados no hotel porque eu tinha vindo com Benjamin. E lá estava eu sem um visto de entrada e sem ter feito um controle de alfândega. Este último aconteceu no hotel mais tarde. Você conhece a Birmann e pode imaginar nossa situação quando eu digo que, quando ela e as outras chegaram à fronteira lá no alto, elas se recusaram a prosseguir e disseram que concordavam em serem levadas para o campo de detenção de Figueras. Enquanto isso eu fui para a delegacia de polícia com um atestado do médico, e o delegado ficou muito impressionado com a doença de Benjamin. Assim as quatro mulheres obtiveram o carimbo. (Na verdade um bocado de dinheiro também mudou de mãos). Eu obtive meu carimbo no dia seguinte. Eu deixei todos os meus documentos e dinheiro com o juiz e lhe pedi que chamasse alguém do consulado americano em Barcelona, para quem a Birmann tinha telefonado. (O pessoal de lá se negou a fazer qualquer coisa por nós, apesar das muitas explicações). Eu comprei um túmulo por cinco anos, etc.  Na verdade, não consigo descrever a situação toda para você com mais exatidão do que isso. De qualquer modo, eu tive que destruir a carta destinada a Adorno e a mim, depois que a li. Em cinco linhas dizia que ele, Benjamin, não conseguiria ir adiante, que não via uma saída, e que ele (Adorno) deveria receber um relato feito por mim, assim como seu filho."
Eu fiquei sabendo da morte de Benjamin em 8 de novembro por uma breve carta de Hannah Arendt, datada de 21 de outubro de 1940, quando ela ainda estava no sul da França. Quando ela chegou a Portbou meses depois, ele procurou em vão pela sepultura de Benjamin. "Não era para ser encontrada; seu nome não está escrito em lugar nenhum". (...) Hannah Arendt descreveu o lugar: "O cemitério fica diante de uma pequena baía donde se avista diretamente o Mediterrâneo; está escavado na pedra em terraços; os caixões são empurrados também para dentro desses paredões de pedra.  É de longe um dos lugares mais fantásticos e mais belos que eu já vi em minha vida".
(Gershom Scholem, Walter Benjamin: The Story of a Friendship, Schocken Books, New York, 1988, pp. 224-6)

Outro amigo de Benjamin registrou o que significava a morte dele naquele momento da história do mundo: 


Sobre o suicídio do refugiado W.B.

Soube que você levantou a mão contra si mesmo
Antecipando assim o algoz.
Oito anos banido, vendo a ascensão do inimigo
Por fim acuado numa fronteira intransponível
Você transpôs a que pareceu transponível.

Reinos desmoronam. Chefes de bandos
Andam como estadistas. Já não enxergamos
Os povos sob os armamentos.

O futuro está em trevas, e as forças boas
São fracas. Tudo isso você viu
Ao destruir o corpo sofrido.

(Bertolt Brecht, Poemas 1913-1956, seleção e tradução de Paulo César Souza, Brasiliense, São Paulo, 1990)





3. Algumas palavras famosas de Benjamin  e o nosso kadish

“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.
(Walter Benjamin, “Sobre o Conceito de História”, Tese 9 in Obras Escolhidas volume I, Brasiliense, São Paulo, 1994)

É em Portbou que quisemos terminar a nossa viagem. Ludmila e eu estamos na encosta que Hannah Arendt disse ser um dos lugares mais fantástico e mais belos que havia visto. Nos anos 90, foi construído aqui, junto da entrada do cemitério, um monumento em homenagem a Walter Benjamin, de autoria do escultor israelense Dani Karavan. Daqui é possível ver a baía, o mar, a fronteira com a França e a pequena e sonolenta cidade de mil e trezentos habitantes que vive dos veranistas da Costa Brava e da romaria dos “benjaminianos”, o que justifica a existência de um restaurante chamado Passatges na praça diante da baía, onde também vimos um barquinho chamado Angelus Novus.

Ontem, 26 de janeiro de 2015, foi o triste aniversário da queda de Barcelona em 1939. Hoje, 27 de janeiro é o aniversário de 70 anos da libertação do campo de extermínio de Auschwitz. Não há muito o que celebrar, apenas cacos de história a recolher. A Europa vive à sombra do terrorismo e do avanço dos populistas de extrema-direita. Milhares de refugiados se aglomeram na ilha de Lampedusa e na fronteira turca, outras centenas morrem na travessia todos os dias. E eles são apenas a ponta visível e noticiosa da miséria do mundo. 

Os autômatos do mercado, que proclamam aos quatro ventos o valor do progresso e da liberdade suprema de oscilarem entre as duas únicas emoções que conhecem - o pavor diante da expectativa de prejuízo e a euforia das oportunidades de lucro -, esses autômatos é quem tomam as decisões cruciais aqui como em alhures, com a mesma mão pesada e a mesma desfaçatez - disfarçada de racionalidade econômica - com que as potências de outrora faziam partilhas do globo em nome de Deus, do fardo do homem branco ou do Lebensraum.  

É daqui, junto do Memorial a Walter Benjamin, que contemplamos a montanha de ruínas que se eleva até o céu, enquanto sopra o vento do progresso. É aqui que recitamos nosso kadish.  Para mim, a Espanha sempre me veio aos pedaços. Para Benjamin, era próprio o mundo que estava partido desde a criação.



















































"É uma tarefa mais árdua honrar a memória dos seres anônimos que das pessoas célebres. 
A construção histórica se consagra à memória dos que não têm nome".