domingo, 1 de janeiro de 2017

En medio de la plaza y sobre tosca piedra #7








Montserrat





1.
Por volta de 1180, Chrétien de Troyes escreveu O Conto do Graal, dedicado ao conde Felipe de Flandres. Nesta novela de cavalaria, a derradeira do autor e a primeira a mencionar o Graal, o herói Percival é um jovem criado num lugar retirado, pois sua mãe queria mantê-lo longe da vida de cavaleiro. Ignorante e estouvado, ele não sabia sequer seu próprio nome. Um dia, pela primeira vez ele viu um grupo de cavaleiros com armaduras brilhantes. Cheio de admiração, ele os tomou por Deus, pois sua mãe lhe ensinara que Deus era o que havia de mais belo. Eles responderam que eram cavaleiros e que o rei Artur é que fazia de alguém cavaleiro. Ardendo do desejo de tornar-se também um cavaleiro, Percival abandonou a mãe e se dirigiu a Camelot. Lá encontrou o rei muito triste porque havia sido ofendido e roubado pelo Cavaleiro Vermelho. Para vingar essa ofensa, o jovem perseguiu e matou o insolente. Acreditando que vestir uma armadura bastava para torná-lo cavaleiro, Percival se apoderou das armas do vencido e não pensou em voltar a Camelot para ser recompensado pela sua proeza.

Nas suas andanças a esmo, Percival conheceu o velho cavaleiro Gornemant de Goorz, que, para sanar a ignorância do rapaz, tratou de ensinar-lhe boas maneiras e adestrá-lo no manejo das armas. Percival, porém, era impaciente e partiu para novas aventuras. Ele se apaixonou pela princesa Brancaflor, a quem prometeu desposar assim que tivesse notícias de sua mãe (como Percival iria logo descobrir, ela havia morrido de tristeza no dia em que ela a abandonou).

A caminho da casa da mãe, ele abrigou-se num castelo no meio da floresta, onde foi recebido por um velho soberano consumido pela doença, o rei Pescador. No salão do castelo, Percival viu um espetáculo estranho: os criados passavam em procissão com uma lança que pingava sangue e uma jovem carregava um graal com uma hóstia. Percival queria muito saber a quem se dirigia o serviço do graal, mas lembrou que Gornemant de Goorz lhe havia ensinado que não era cortês fazer perguntas e, assim, calou-se. O rei Pescador foi levado aos seus aposentos e Percival adormeceu. Quando Percival despertou e partiu no dia seguinte, o castelo estava completamente vazio. Pouco tempo depois, ele encontrou uma dama misteriosa que lhe reprovou o não ter perguntado a quem servia o graal, pois se ele o fizesse, teria curado o rei Pescador e eliminado a maldição que há muitos anos tornara estéril as suas terras. Cheio de arrependimento, Percival tentou voltar ao castelo, mas não conseguiu encontrá-lo outra vez. 

Nesse ponto, o relato deixa as aventuras de Percival e passa às de Gauvain, sem relação direta com o mistério do Graal. Como Chrétien de Troyes morreu sem ter concluído a obra, o destino de Percival ficou em suspenso, o que suscitou várias continuações francesas do romance, bastante curiosas, mas insatisfatórias porque não davam uma resposta ao enigma do Graal e do rei Pescador.



2.
Na segunda década do século XIII, o alemão Wolfram von Eschenbach retomou o relato de Chrétien de Troyes no seu poema épico Parzival. Quer tivesse à disposição alguma fonte francesa que se perdeu, quer tomasse liberdade para inventar, o poeta referiu muitos pormenores ausentes nas versões anteriores, como o nome do rei Pescador – Anfortas – e do lugar onde se encontrava o castelo do Graal – o Monsalväsche. A epopeia de von Eschenbach serviu de ponto de partida para o Parsifal, de Richard Wagner. No libreto da ópera, o Monsalväsche se tornou o Montsalvat, montanha da Espanha onde vivia uma fraternidade de cavaleiros castos e puros a serviço de Anfortas, o rei Pescador, que presidia a cerimônia do Graal.

Havia muito tempo, um cavaleiro chamado Klingsor desejara fazer parte da fraternidade do Graal. Para se libertar da sensualidade, ele decidiu se castrar, mas nem isso conseguiu afastar seus pensamentos impuros. Expulso de Montsalvat, Klingsor quis vingar-se. Dominou a magia negra e construiu um castelo cercado por um jardim com jovens belíssimas, cuja missão era seduzir e corromper os cavaleiros do Graal. Com a ajuda de Kundry, mulher ambígua e misteriosa que conseguiu seduzir Anfortas, Klingsor se apoderou da lança sagrada com que o soldado romano Longino havia ferido Jesus, lança que fazia parte das relíquias guardadas em Montsalvat. Armado dela, Klingsor atingiu Anfortas, causando uma ferida que nunca se fechava e provocava dores atrozes.

Um dia, enquanto os cavaleiros leais procuravam amenizar o sofrimento do rei, o cavaleiro Gunermanz lhe avisou que tivera, num sonho, a revelação de que um tolo casto e cheio de compaixão iria curar para sempre aquela ferida. Nesse momento, Gunermanz ouviu os cavaleiros gritarem, pois, em pleno voo, um cisne – animal sagrado no castelo de Montsalvat – fora atingido por um flecha.  Apareceu, então, um jovem com um arco que disse ter matado o cisne. Censurado por Gunermanz, o jovem mostrou remorso pelo que fez, mas, quando foi indagado, ele não soube responder a nenhuma das perguntas que lhe foram dirigidas, nem mesmo se lembrava qual era o seu nome. Gunermanz o levou para ver a cerimônia em que Anfortas revelava o Graal aos cavaleiros. As dores do rei aumentavam quando se aproximava do Graal, pois ele se deixara seduzir e falhara em defender as relíquias sagradas, razão pela qual Anfortas relutava em realizar a cerimônia. Por um momento, o jovem sentiu em si as dores do rei, mas sem conseguir explicar-se, foi mandado embora por Gunermanz.

O jovem se dirigiu, então, para o reino de Klingsor. No jardim, Kundry chamou o jovem pelo nome que ele havia esquecido: Parsifal. Ele lhe perguntou como ela sabia o nome dele. Kundry contou que conheceu a mãe de Parsifal, como ela quis protegê-lo do destino de tornar-se cavaleiro e como ela morrera cheia de tristeza com a partida do filho. Parsifal sentiu remorso por ter causado sofrimento à mãe. Ardilosamente, Kundry lhe disse que, com um beijo, podia fazê-lo entender o amor que a mãe lhe tinha. Contudo, ao beijar Kundry, Parsifal sentiu as dores de Anfortas e, cheio de compaixão por ele, repeliu Kundry. Ela o amaldiçoou e chamou por Klingsor, que lhe atirou a lança sagrada, mas ela parou no ar sem feri-lo. Parsifal a apanhou e, quando se persignou com ela,  o castelo e o jardim de Klingsor desapareceram, restando apenas Kundry.

Por causa da maldição de Kundry, Parsifal só conseguiu regressar a Montsalvat muitos anos depois. Gunermanz então lhe relatou que, durante todos esses anos, Anfortas não mais realizara a cerimônia e, sem o sustento místico que o Graal provia, o velho Titurel, pai de Anfortas, havia morrido. Parsifal se sentiu mais uma vez avassalado pelo remorso, mas Gunermanz lhe disse que lhe cabia um importante dever. Ungido com água da fonte sagrada e com os pés banhados por Kundry, que agora estava livre do poder maléfico de Klingsor, Parsifal foi  levado à presença de Anfortas, que implorava  que lhe dessem fim ao sofrimento. Quando o cavaleiro encostou no rei a lança sagrada e o absolveu da antiga falta, a ferida se curou. Parsival ordenou, então, que o Graal fosse mais uma vez revelado. O coro de cavaleiros entoou: “Milagre da suprema salvação / Nosso Redentor foi redimido”. O Graal brilhou com toda intensidade. Uma pomba desceu do domo e Kundry desabou sem vida. Gunermanz e Anfortas, cheios de reverência, ajoelharam-se diante de Parsifal.



3.
A propósito da ópera de Wagner, Dieter Borchmeyer comenta:

“O fim é o começo, a restitutio in integrum, restaurar todas as coisas e, ao mesmo tempo, marcar um novo começo.  Esta é a mensagem que se podia ouvir no final do Crepúsculo dos Deuses. O retorno cíclico ao estado original de perfeição: esta é a ideia clássica de apokatástasis pánton, um termo emprestado dos Atos dos Apóstolos, 3, 21, que pode ser traduzido como “a restituição de todas as coisas” e viria a ser importante para a inteira tradição cristã.  Ele é frequentemente associado à ideia heraclitiana de ekpyrosis, a dissolução do mundo no elemento primevo do fogo do qual surgiu (neste contexto, o fogo deve ser entendido no sentido de spérma, a semente da qual o mundo nasce). Esta ideia, também, é fundamental para o conceito wagneriano do Anel dos Nibelungos, cujo final marca a ‘restituição de todas as coisas’ na forma de um retorno às puras sonoridades da série harmônica natural desanuviada de qualquer cromatismo. 

Também no final de Parsifal encontramos uma restitutio in integrum, simbolizada pela reunião de dois objetos que haviam sido separados, a lança, que foi devolvida a Montsalvat, e o Graal, que mais uma vez brilha forte em toda a sua pureza. Ambos os objetos estão associados com Cristo: a lança feriu-lhe o flanco quando ele estava suspenso na cruz, e o Graal é o vaso no qual seu sangue escorreu. Na cena final, Parsifal levanta seus olhos para a lança sagrada e diz a Anfortas:  “Desta lança com a qual é possível fechar a sua ferida/ Eu vejo o sangue sagrado fluindo no seu anseio por sua fonte irmã, que flui e mana dentro do Graal”.
Aqui também o final significa o retorno cíclico ao começo numa forma intensificada. (...) A comunidade do Graal é restaurada. O mundo alternativo de Klingsor é esconjurado, e a natureza volta à sua inocência paradisíaca. O Cristianismo é destituído de sua historicidade em Parsifal e é devolvido à estrutura reiterativa dos mitos. De acordo com Kurt Hübner, ‘ele é colocado num mundo mitológico e num tempo mitológico, em nenhum lugar e em época nenhuma’.(...)

Como Hans Küng indicou, o ‘tema principal’ de Parsifal é ‘ a nossa participação no processo de redenção, com clara ênfase no nosso envolvimento ativo no processo, sem que o anterior ato redentor divino em Cristo seja por isso negado ou superado’.”
(Drama and the World of Richard Wagner, Princeton University Press, New Jersey, 2003 pp. 238-240; 241)



4.
Parsifal estreou no festival de Bayreuth de julho de 1882. Nietzsche, cuja amizade com Wagner terminara em 1878, recusou-se a assistir à première, mas estudou o libreto, que só fez aumentar o seu desprezo contra o antigo amigo, ídolo e mentor. Poucos meses mais tarde, no dia 13 de fevereiro de 1883, Wagner faleceu em Veneza (a respeito da relação de Wagner com Veneza, que se leia o meu Il moto non è diverso dalla stasi #5). Embora abalado física e emocionalmente com a notícia, Nietzsche sentiu um grande alívio, como relata na carta a Peter Gast, de 19 de fevereiro:

“Durante alguns dias estive muito enfermo, causando alguma preocupação aos donos da casa. A situação agora está melhor e até acredito que a morte de Wagner tenha sido o maior alívio que podia experimentar. Durante seis anos foi duro ser adversário daquele a quem mais se venerou e minha natureza não é suficientemente tosca para isso. Afinal, foi contra o Wagner envelhecido que tive que defender-me; no que diz respeito ao Wagner em sentido próprio, quero ser em boa parte seu herdeiro (...)”.
(Correspondência in Obras Completas, volume V, Aguilar, Buenos Aires, 1963, p. 582)

A partir daí, Nietzsche se sentiu livre para atacar o legado do Wagner envelhecido. Primeiro de maneira alusiva, como nesta passagem de Assim falou Zaratustra, que retoma de maneira paródica o verso final de Parsifal:

“Causam-me pena esses sacerdotes. Sem dúvida repugnam-me ao meu gosto, mas isso, para mim, é o de menos, desde que estou entre os homens.
Eu, porém sofro e sofri por eles: são, a meu ver, prisioneiros e marcados com ferrete. Aqueles que a quem chamam de Redentor, impôs-lhe grilhões...
Grilhões de falsos valores e de palavras ilusórias! Ah, se alguém os redimisse do seu Redentor!”
(Assim falou Zaratustra, Segunda Parte, “Dos Sacerdotes”, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1987)

O ataque se tornou frontal e obsessivo nos escritos de Turim, pouco antes do colapso mental: O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner, no qual se lê:

“O ‘Parsifal’ é um assunto de opereta por excelência... Seria por acaso o ‘Parsifal’ de Wagner seu riso secreto de superioridade sobre si mesmo, o triunfo de sua última e suprema liberdade de artista, seu mais além como artista: Wagner sabe rir de si mesmo?... Como disse, seria algo a se desejar. Porque, o que seria um ‘Parsifal’ pensado seriamente? Há necessidade de ver nele (segundo uma expressão usada contra mim) ‘o parto de um ódio louco contra o conhecimento, contra o espírito e a sensualidade’? Um anátema e uma conversão aos ideais cristãos, mórbidos e obscurantistas?  E, por último, até um renegar de si mesmo, um deturpar-se a si mesmo, realizado por um artista que até agora, com todo o poder de sua vontade havia mirado em sentido oposto, no sentido de uma extrema espiritualização e sensualização da arte? E não somente de sua arte, mas também de sua vida? Não se esqueça com que entusiasmo Wagner seguiu as pegadas do filósofo Feuerbach. A frase de Feuerbach sobre a ‘sensualidade sadia’ ressou nos ouvidos de Wagner, como em muitos ouvidos alemães (chamavam-se os jovens alemães), como uma palavra de redenção. Teria mudado de parecer nesse ponto? Por qual razão parece que teve vontade de mudar de ensinamento sobre esse ponto no último momento? O ódio contra a vida se apoderou dele como de Flaubert?... Porque ‘Parsifal’ é um obra de rancor, de avidez, de vingança, de secreto envenenamento das fontes da vida, é uma “má obra”. A predicação da castidade é uma incitação contra a natureza: eu desprezo todo aquele que não considere ‘Parsifal’ como um atentado contra a moral”.
(Nietzsche contra Wagner in Obras Completas, volume XI, Aguilar, Buenos Aires, 1963, p. 212-3)



5.
Em 1935, Heinrich Himmler, Walther Darré e Herman Wirth, todos eles admiradores de Wagner e de Nietzsche, fundaram a "Sociedade para Investigação e Ensino da Herança Ancestral Alemã", conhecida como Ahnenerbe. Para provar a antiguidade e a superioridade da raça ariana, a instituição promovia escavações arqueológicas, estudo de peças de grande valor histórico como a Tapeçaria de Bayeux, pesquisas antropométricas e experimentos médicos com prisioneiros dos campos de concentração. Himmler tinha grande interesse por ocultismo e estava especialmente disposto a encontrar certos objetos lendários aos quais a tradição atribuía grande poder, como o Graal.

Na tradição alemã que vai de Wolfram von Eschenbach a Richard Wagner, o Graal se encontrava num lugar chamado Monsalväsche ou Montsalvat.  Aqueles que acreditavam na existência real desse objeto poético que é o Graal, pensavam que se tratar de Mont Segur, refúgio dos cátaros no século XIII, ou de Montserrat, onde monges beneditinos se estabeleceram desde o final do século IX, depois que uma imagem da Virgem Maria foi descoberta por crianças que apascentavam cabras naqueles rochedos escarpados. Foi neste famoso santuário catalão que o capitão basco Iñigo Lopez, leitor voraz de novelas de cavalaria e da vida dos santos, passou uma noite em preces antes de abandonar os prazeres mundanos e tornar-se um asceta na gruta de Manresa, ao pé da montanha. Era o ano de 1521. Nas duas décadas que se seguiram, esse Parsifal hispânico viria a ser conhecido como Inácio de Loyola e fundaria a Companhia de Jesus. 

Diz-se que Himmler procurou imitar a estrutura hierárquica jesuítica ao organizar as SS. Fosse por isso ou por algum razão ainda mais obscura, Heinrich Himmler fez uma rápida visita ao Mosteiro de Montserrat na tarde de 23 de outubro de 1940. No mesmo dia, Hitler teve seu primeiro e único encontro com o ditador Francisco Franco na estação de Hendaye. Com o país arruinado pela recente guerra civil e sem obter de Hitler a promessa de um futuro domínio espanhol sobre o Norte da África, o Generalíssimo recusou aliar-se aos alemães. Da Espanha, Hitler e Himmler saíram de mãos vazias. Um, sem o desejado apoio militar, o outro, sem o elusivo Graal. 



6.
Quase quinhentos anos depois de Inácio de Loyola e setenta e cinco anos depois de Himmler, Ludmila e eu também fomos a Montserrat. Contudo, não vínhamos como penitentes, pois de nada nos arrependíamos, tampouco estávamos em demanda do Graal, contra a qual nos vacinara um filme do Monty Python que assisti vezes sem conta. Simplesmente entramos na basílica, rendemos visita à Moreneta, a estatueta negra da Virgem, e ficamos muito tempo na bela pinacoteca do mosteiro, antes de subirmos às trilhas no topo do maciço. Foi lá que vimos o pôr do sol daquele 29 de janeiro de 2015. De lá não se ouvia o ruído da história. Só o farfalhar do vento nos arbustos. Não precisávamos de redentores nem de redenção.



































































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