quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

En medio de la plaza y sobre tosca piedra #8










Girona




"Cada manhã nos ensina sobre as atualidades do globo terrestre. 
E, no entanto, somos pobres em histórias notáveis. 
Como se dá isso? Isso se dá porque mais nenhum evento nos chega 
sem estar impregnado de explicações. Em outras palavras: 
quase nada mais do que acontece beneficia o relato; 
quase tudo beneficia a informação. 
Ou seja, já é metade da arte narrativa manter 
livre de explicações  uma história quando é transmitida".

Walter Benjamin, Imagens do Pensamento, "Pequenos trechos sobre a arte"





Onde aparecem um abade, um arcebispo e um livro



Aos pés dos Picos de Europa, na Cantábria, fica o vale de Covadonga, onde os nobres visigodos, à frente dos quais estava o duque Pelayo, venceram os muçulmanos em batalha no ano de 722. Para os leitores de língua portuguesa, o rincão com sua gruta e o duque belicoso são familiares por causa do romance de Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero. A uns sessenta quilômetros adiante pela estrada que contorna o maciço nevado, fica o mosteiro de San Toríbio de Liébana. Na segunda metade do século VIII, a comunidade era consagrada a São Martinho de Tours e seu abade era Beato de Liébana, um teólogo eminente e respeitado pela coroa de Astúrias, único reino cristão da Península que não havia caído sob o domínio islâmico.



Toledo, a antiga capital dos visigodos, estava nas mãos dos muçulmanos, mas o arcebispo da cidade ainda era o metropolita de toda a Espanha. Em 783, esse homem era Elipando. Na época, um certo Migécio defendia a curiosa doutrina segundo a qual, na Santíssima Trindade, o Pai era o rei Davi, o filho era Jesus e o Espírito Santo, Paulo Apóstolo. No concílio de Sevilha, convocado pelo arcebispo de Toledo, essas ideias foram condenadas e Elipando escreveu uma carta de reprimenda a Migécio, que foi conservada nas atas do concílio. No entanto, ao rejeitar a estranha concepção trinitária de Migécio, o próprio Elipando se afastou da ortodoxia e endossou o adocionismo, que ensinava que Jesus enquanto homem era apenas filho “adotivo” de Deus.



Ao tomar conhecimento das atas do concílio e da carta do arcebispo, Beato de Liébana escreveu a Elipando, chamando-lhe a atenção para a imprecisão e incorreção teológica de suas palavras. Em declarada oposição ao abade asturiano, Elipando tratou de ganhar aliados e recebeu o apoio de Félix, bispo de Urgell, nos Pirineus. Também enviou uma carta ao rei Carlos Magno, acusando o abade de Liébana de ser um lascivo que infectara com seu veneno vários líderes da Igreja. Eram acusações graves que expunham, talvez, a divisão entre a Espanha “ocupada” e a Espanha “livre”. Uns dizem que Elipando, ao depreciar a divindade de Jesus, desejava ficar em bons termos com os dominadores muçulmanos, especialmente o poderoso emir de Córdoba, Abd el-Rahman; outros julgam que Elipando só fazia retomar o arrianismo ao qual os  visigodos teriam abjurado, sem terem esquecido de fato. A verdade só Alá pode saber, mas Carlos Magno, há muito tempo desejoso de levar o poder do reino franco para além dos Pirineus, convocou um concílio em Frankfurt, que condenou o adocionismo e solicitou que Elipando voltasse à doutrina tradicional da Igreja.



Durante esse enfrentamento teológico e político, Beato compôs um comentário sobre o Apocalipse de S. João a partir de excertos dos Padres da Igreja, especialmente Gregório, Agostinho, Ticônio e Isidoro de Sevilha. A obra recebeu grande acolhida entre os eclesiásticos, e não apenas na Espanha. Dos Comentários  restam trinta e quatro manuscritos datáveis do século IX e XII, dos quais vinte e seis são iluminados com tal riqueza que o nome do Beato passou a designar, por antomásia, esses códices. Nas ilustrações são notáveis os traços mouriscos seja nas portas em forma de ferradura, seja na policromia brilhante. As figuras são desenhadas de maneira linear, estereotipada e bastante simplificada, ordenadas sobre faixas de cores vivas, segundo uma disposição que, apesar das diferenças estilísticas entre os vários códices, parecem remontar a um arquétipo perdido, que talvez tenha sido feito em Liébana, sob a orientação do Beato ou de seus auxiliares imediatos.



Vários mosteiros produziram cópias do Beato, entre eles o de San Salvador de Távara, perto de Zamora. Do scriptorium da torre do mosteiro saíram alguns dos códices mais célebres, entre os quais o Beato copiado e ilustrado pelo monge Emetério e pela monja Ende em 975, que passou para a Catedral de Gerona um século mais tarde, no reinado do conde Ramón Berenguer II.




Beato de Gerona


Beato de Gerona





Onde aparecem um emir, um rei, um conde e um tapete



Entre 748 e 750, uma revolução derrubou os omíadas que detinham o califado em Damasco. O único sobrevivente da família foi Abd el-Rahman, que fugiu para a Espanha, enquanto Abu Abas, que tomou o poder, transferia a sede do califado para Bagdá. Em Al-Andalus, Abd el-Rahman regrou as desavenças entre os chefes berberes, instalou a capital do emirado em Córdoba e começou um jogo de alianças para fazer frente aos califas abássidas de Badgá e avançar em direção ao reino dos francos, governado por Carlos Magno. As ambições do emir de Córdoba se voltaram, assim, ao nordeste da Península, mas no seu caminho estava a importante  cidade de Saragoça, cujo governador Husayn se proclamara leal ao califa de Bagdá. Para sustentar a rebelião contra o emir de Córdoba, Sulayman, aliado de Husayn que governava Barcelona e Girona, viajou até Paderborn para convencer Carlos Magno a intervir em seu apoio em troca da promessa de lealdade e submissão dos governadores.



A expedição franca de 778 foi desastrosa. Carlos Magno não conseguiu entrar em Saragoça, pois Husayn tinha sido derrubado entrementes, e, na volta para a França, a retaguarda das tropas francas foram atacadas pelos bascos num desfiladeiro dos Pirineus, episódio que, mais tarde, viria a ser lembrado na Canção de Rolando. Carlos Magno não pisará mais na Península, mas não desistiu do empenho de estender o domínio dos francos pelo território que ia de Girona até a foz do rio Ebro.  No ano mesmo da malfadada incursão, o rei institui o condado de Toulouse, para lutar contra os bascos, e o reino de Aquitânia, cujo soberano seria Luís, filho de Carlos Magno.



Sob as ordens do conde de Toulouse, as tropas francas fizeram nova incursão além da cordilheira. A entrada em Gerona em 785 foi o início do processo tumultuado e cheio de reveses da reconquista franca, que se concluiu em 803, quando Barcelona foi submetida. Todavia, Carlos Magno, já coroado imperador do Ocidente, morreu sem ter realizado o sonho de alcançar o rio Ebro. Dentro da recortada e confusa divisão administrativa carolíngia, a faixa espremida entre os Pirineus e o Mediterrâneo até o rio Llobregat se tornaria a Marca Hispânica. Para governá-la, os francos escolheram nobres godos que haviam tomado parte na conquista, por isso, a região foi  chamada Gothaland, nome do qual se originou  "Catalunya".



Ao longos de décadas de luta contra o emirado - depois califado - de Córdoba, os pequenos condados catalães foram passando para as mãos de uma única família, a dos condes de Barcelona e Gerona que, à medida que iam consolidando a sua autoridade, não se viam mais como dependentes da proteção e da intervenção das forças do Norte agora que se esboroava o império carolíngio. Um dos descendentes dessa dinastia de condes foi Ramón Berenguer II, cujo sepulcro está na catedral de Girona. Talvez tenha sido a sua viúva, Mafalda de Apúlia, quem patrocinou a elaboração da monumental Tapeçaria da Criação para a mesma catedral. A enorme alfombra traz, no centro, a criação do mundo. Na moldura ao redor, representam-se os meses do ano e as atividades campesinas. Figuras da mitologia clássica e das Sagradas Escrituras se combinam numa iconografia com matrizes bizantinas e carolíngia. O conjunto evidentemente expõe uma cosmologia teocêntrica, porém seu propósito político imediato é incerto, pois havia muito em jogo: o papa convocara a primeira cruzada, Girona sediava um concílio para resolver questões da Igreja na Catalunha e era preciso sustentar a linha sucessória do conde Ramón Berenguer II, que fora assassinado pouco antes do nascimento do seu herdeiro. O futuro Ramón Berenguer III viria a se casar com uma das filhas de El Cid antes de tornar-se ele mesmo um dos maiores caudilhos da Hispânia medieval. Em Barcelona, uma estátua equestre do conde, iluminada dramaticamente, projeta à noite sua enorme sombra nos prédios da via Laietana.


A Tapeçaria da Criação




Onde aparecemos nós em busca do livro e do tapete



O mês de janeiro estava perto de terminar quando chegamos para visitar a Catedral e seu museu, onde estão expostos a Tapeçaria da Criação, recentemente restaurada, e o Beato de Girona - na verdade uma réplica perfeita com a chancela do editor M. Moleiro, com quem tivemos o prazer de conversar no escritório da sua editora em Barcelona. (O Beato original está, espero eu, muito bem guardado nos cofres da catedral). 

Andamos pela cidade velha, entramos em becos, subimos várias "pujadas". Talvez fosse bom encerrar com o entusiasmo trazido pelo Empordá, que acompanhou as botifarras do almoço, e derramar algum lirismo sobre os prédios coloridos à beira do rio Onyar,  a gentileza do rapaz que nos atendeu em català na bilheteria da basílica de São Felix ou o crepúsculo sobre os Pirineus Ocidentais que vimos desde as antigas muralhas de Girona, enquanto os sinos da catedral de Santa Maria nos apressavam para pegar o trem... mas é tarde - sempre é tarde - e a viagem tem de prosseguir.



 





A catedral de Santa Maria




Lateral da catedral de Santa Maria




Terraço da entrada da catedral de Santa Maria. Ao centro, a torre da basílica de São Félix.



Praça da Catedral  vista do terraço da entrada.



Claustro românico da catedral de Santa Maria



Claustro românico da catedral de Santa Maria. Detalhe de capitel.



Porta com torreões ao fim da Pujada del Rei Martí





Pujada de San Feliu, com a basílica de São Félix ao fundo



Carrer de les Ballesteries







Carrer dels Alemanys



Jardin dels Alamanys



Igreja de São Domingos vista da muralha




Os becos, passagens e ladeiras do Bairro Judeu




 
Os becos, passagens e ladeira do Bairro Judeu



A torre da catedral de Santa Maria. Ao fundo, os Pirineus.


O centro histórico de Girona visto da Ponte de Pedra





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