quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

A claraboia e o holofote #31 (I)








Razões para lembrar de 1917




Em 1997, quando a Revolução Russa completou oitenta anos, a União Soviética já tinha desmoronado. Os partidos de esquerda no Ocidente e nos países emergentes tinham abdicado da luta revolucionária e tentavam conciliar as políticas de bem-estar social com o incentivo ao livre fluxo de capital. No campo liberal-conservador, dizia-se que “esquerda” e “direita” eram noções ultrapassadas e que a história tinha chegado ao fim; no campo oposto, os radicais denunciavam o "pensamento único" e o "Consenso de Washington", os moderados exaltavam a “terceira via” do novo partido trabalhista britânico, enquanto os militantes jovens eram seduzidos pela agenda ecológica. O verde parecia ser o novo vermelho. 

Naquele ano, um grupo de historiadores franceses publicou o Livro Negro do Comunismo, um calhamaço que pretendia ser o levantamento definitivo dos crimes cometidos pelos regimes comunistas no século XX. O empreendimento era polêmico. Participantes do projeto vieram a público denunciar a obstinação dos organizadores em atingir, custe o que custasse, o número de cem milhões de vítimas, quando, em verdade, a cifra seria de sessenta milhões... Do lado da esquerda, houve tentativas para poupar a figura de Lenin e não demorou para aparecesse um Livro Negro do Capitalismo. A verdade é que o fim do século XX (que Eric Hobsbawn julgava breve e Giovanni Arrighi considerava longo) incentivava esse tipo de contabilidade.

Essa obsessão com os males do comunismo vinha acompanhada da resolução de não permitir que o totalitarismo se reerguesse. Não que houvesse algum perigo iminente a exigir o empenho máximo dos heróis da liberdade. Era justamente a derrocada sem remissão do socialismo real (a China constituía um caso à parte) que alimentava a coragem de um número crescente de indivíduos, cada vez mais dispostos a verbalizar a sua hostilidade e seu horror ao comunismo. Essa bravura retrospectiva diante do leão morto foi marca frequente dos ex-comunistas que se convertiam ao neoconservadorismo. Vinte anos depois, a situação ganharia contornos ridículos: qualquer rapazola que lê duas páginas de von Mises ou concorda com um twitter de Olavo de Carvalho se acha um hércules capaz de dar um piparote nas ventas de Stalin.

Os regimes socialistas, que chegaram a dominar a maior parte da Eurásia, com ramificações no Caribe e na África, regimes marcados pelos congressos do partido único, pela planificação ineficiente, pela burocracia kafkiana, pelos desfiles megalomaníacos, pelo culto ao trabalho, pelos privilégios da nomenklatura, pelos campos de "reeducação" dos dissidentes, pelos ciclos de tensão e distensão em relação aos Estados Unidos e aos membros da OTAN, esses regimes determinaram a geopolítica e o xadrez diplomático do século. A emergência dos fascismos, o processo de emancipação das antigas colônias africanas e asiáticas, a ascensão dos nacionalismos árabes e o crescimento do arsenal nuclear vieram apenas complicar a situação que já se esboçava desde a intervenção ocidental na Guerra Civil dos vermelhos contra os brancos na Rússia. A complexa oposição entre Lenin e Wilson prefigurava as ligações telefônicas entre Kennedy e Khrushchev.

Desse ponto de vista, o sucesso de obras de revisão histórica como o Livro Negro do Comunismo  e o Passado de uma Ilusão, de François Furet,  justificava-se pela importância inegável do objeto, mas evidenciava também uma certa pressa em declarar perempta não apenas a história do comunismo, mas a de toda a esquerda. Como se sabe, a previsão não se realizou.


Neste momento em que a Revolução Russa faz cem anos, o confronto entre visões de mundo (ou ideologias) se tornou mais agudo e não autoriza os discursos triunfalistas de duas décadas atrás. Em vários países, líderes conservadores declararam guerra tanto à globalização neoliberal quanto ao multiculturalismo da esquerda. Essas lideranças são persistentes e muito combativas. Sua mensagem é tosca e seus argumentos não resistem à análise lógica ou à verificação objetiva, mas esses líderes se mostram capazes de expressar o desconforto e a insegurança vividas pelos segmentos da sociedade que ficaram às margens dos benefícios da globalização ou daqueles que sentem seus valores identitários (outrora hegemônicos e “normais”) ameaçados pela complacência da esquerda com os comportamentos transgressivos e com as demandas de reconhecimento das minorias militantes. Ao mostrar sob uma mesma luz  o sofrimento dos trabalhadores precarizados e a insegurança existencial da pequena burguesia e ao propor uma saída, esses líderes conservadores ditos "populistas" repetem uma proeza política que, outrora, era praticada pelas esquerdas militantes.

A Revolução Russa nos lembra desse momento em que a massa de trabalhadores, camponeses e pequeno-burgueses se via representada pelos partidos de esquerda. Lembra-nos também do poder transformador de um grupo relativamente pequeno de líderes persistente e combativos, capazes de falar em nome das demandas de uma vasta maioria de insatisfeitos e sofredores. Por isso mesmo, estudar com atenção o movimento revolucionário que se estendeu de fevereiro a outubro de 1917 é, no mínimo, um dever de bom-senso seja para as lideranças empenhadas à direita e à esquerda, seja para aqueles que pretendam resistir ao empenho e às mentiras dessas lideranças.


(continua)




foto: "A Ceia", obra de Andrei Filippov, 1989









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