domingo, 28 de maio de 2017

A claraboia e o holofote #31 (VII)









Cenas da Revolução de 17


Cena II


A dualidade de poderes

(O Soviete de Petrogrado e o Governo Provisório)


Formado no mesmo dia – 28 de fevereiro [1917] – o Soviete de Petrogrado se reuniu sob a liderança dos mencheviques, apoiados pelo Grupo Central de Trabalhadores (...) O Soviete constituía-se de ‘deputados’ escolhidos aleatoriamente nas fábricas e nos quartéis, segundo procedimentos eleitorais que refletiam o consenso, mais do que uma relação matemática de votos. Pequenas lojas enviavam tantos representantes quanto as grandes fábricas, e as unidades das guarnições agiam de forma similar. A prática já tinha alguma tradição na Rússia, mas o sistema era tão confuso que nos quinze primeiros dias já haviam sido indicados três mil membros dos Soviete, sendo dois mil soldados – e isso numa cidade em que os trabalhadores industriais superavam os militares numa proporção de dois ou três para um. Esses dados demonstram como a Revolução de Fevereiro, na sua fase inicial, não passou de um motim de soldados.

As sessões plenárias do Soviete pareciam uma gigantesca assembleia de aldeia. Não havia agenda nem coleta de votos. Todos tinham o direito de usar a palavra e chegava-se às conclusões por aclamação. Fosse por causa dos discursos intermináveis de que era palco, ou devido à convicção dos intelectuais que, consciente ou inconscientemente, ‘conheciam melhor o que era bom para as massas’, o Soviete transferiu o processo de tomada de decisões para seu comitê executivo – Ispolkóm. De acordo com a norma estabelecida em 1905, os integrantes desse organismo não foram eleitos em assembleias, mas nomeados pelos partidos socialistas – três cadeiras para cada agremiação-, sobrepondo-se ao Soviete e agindo em seu nome.

Pouco notado na época, o fato acarretou três graves consequências. Fez crescer artificialmente a representatividade do Partido Bolchevique, que tinha poucos adeptos entre os trabalhadores e nenhum entre os soldados. Congelou o peso dos socialistas moderados, muito populares naquela época, mas que logo perderiam influência sobre a população. E burocratizou as decisões, que passaram a ser tomadas por meio de conchavos entre os intelectuais e os socialistas.

Refletindo o domínio inicial dos mencheviques, o Soviete adotou a doutrina da revolução “burguesa”, etapa que a Rússia estaria atravessando, e durante a qual seria preciso organizar as massas, preparando-as para a próxima fase socialista, permanecendo fora do governo. Sob tais argumentos, o Soviete recusou-se a enviar delegados ao Comitê da Duma, considerando que só lhe cabia garantir que a “burguesia” não traísse a revolução. Em consequência, a Rússia viu-se diante de um sistema peculiar de governo, ou ‘poder dual’ – dvovievlástie – que perdurou até outubro. Na teoria, o Comitê Provisório da Duma – logo batizado Governo Provisório – assumiu total responsabilidade pelos destinos da nação, enquanto o Ispolkóm funcionava como uma espécie de suprema corte da consciência revolucionária. Na realidade, e desde o início, o Ispolkóm assumiu funções legislativas e executivas. Esse esquema não era realista por dois motivos: em primeiro lugar porque dava responsabilidade a uma instituição e poder à outra, e, em segundo lugar, porque os partidos envolvidos tinham objetivos radicalmente diferentes. A Duma pretendia conter a Revolução e seus membros teriam ficado satisfeitos em represar o fluxo dos acontecimentos, na noite de 27 de fevereiro; o Ispolkóm queria aprofundar o processo – para eles, o 27 de fevereiro fora um mero prelúdio da ‘verdadeira’ revolução socialista.

A inexistência de autoridade pública conduziu os líderes da Duma à conclusão inexorável de que teriam que formar um governo, malgrado sua relutância em desafiar o soberano. A questão era como legitimar esse governo. Alguns sugeriram que se entrasse em contato com o czar, solicitando consentimento para formar um gabinete. A maioria, porém, preferiu voltar-se para o Soviete – isto é, o Ispolkóm. Do ponto de vista prático, dada a sua influência sobre os soldados e os trabalhadores, isso seria compreensível, mas do ponto de vista da legitimidade pretendida, tinha pouco sentido; o Comitê Soviético tinha caráter privado, e era constituído por indivíduos indicados pelos partidos socialistas, enquanto a Duma havia sido eleita.

Na noite de 1º para 2 de março, os representantes da Duma, guiados por Miliukov, encontraram-se com os socialistas para elaborar uma linha política mediante a qual o Soviete daria seu apoio ao novo governo. Os membros do Ispolkóm não tinham nenhuma intenção de lhes dar carta branca. O resultado foi um documento redigido por políticos exaustos, após uma noite de debates, contendo uma plataforma de oito pontos que serviriam de base à atividade governamental, até a convocação da Assembleia Constituinte. Os itens principais exigiam a anistia aos prisioneiros políticos, entre os quais terroristas; preparativos imediatos para uma Assembleia Constituinte, a ser eleita por voto universal; dissolução de todos os órgãos de polícia; eleições para recompor os conselhos distritais de autogestão; e permanência em Petrogrado das unidades militares que participaram da Revolução.

As cláusulas mais nefastas eram as que estipulavam a imediata dissolução da polícia e eleições para os conselhos distritais e municipais. Tais medidas significavam a dissolução da burocracia provincial e a anarquia. De pronto, elas aboliam toda a estrutura administrativa e de segurança que mantivera intacto o Estado russo. Apenas levemente menos prejudiciais eram os itens concernentes à guarnição de Petrogrado, que privavam o governo de autoridade efetiva sobre 160 mil camponeses armados descontentes, deixados sob a influência dos seus inimigos.

De qualquer forma, foi esse acordo que deu origem ao Governo Provisório, cujo gabinete era presidido pelo príncipe Lvov, ativista cívico inócuo e indolente, escolhido apenas por ter encabeçados a União dos Ziémstva, o que lhe conferia certa aura de representatividade social. Lvov entendia que democracia significava decisões políticas tomadas por cidadãos diretamente afetados por elas, e que o governo devia funcionar como um cartório. Convencido da imensa sabedoria do povo russo, ele se recusou a sugerir o que quer que fosse às delegações provinciais que foram a Petrogrado em busca de instruções. O secretário de gabinete, Vladimir Nabokov (pai do romancista), escreveu: ‘Não recordo uma ocasião sequer em que Lvov usou um tom de autoridade ou expressou decisão (...) ele personificava a passividade'.

Proeminentes membros do novo governo, e rivais mordazes, Miliukov e Kerenki foram designados, respectivamente, ministro das Relações Exteriores e ministro da Justiça.

Aos 58 anos, Miliukov possuía uma energia ia ilimitada. Historiador profissional, conciliava o trabalho erudito com a edição do jornal diário e a liderança do Partido Constitucional-Democrático [conhecido como Kadet , partido que representava o liberalismo russo]. O que lhe faltava era intuição política: alcançada uma determinada posição por dedução puramente lógica, ele se agarraria a ela, mesmo ao ficar evidente sua ineficácia. Mas, sendo o personagem político mais conhecido em todo o país, ele tinha razão de sentir-se como primeiro-ministro da Rússia democrática.

Kerénski era o seu oposto. Nos tribunais, defendendo prisioneiros políticos, e na Duma, adquirira fama de orador radical. Conferencista brilhante, embora destituído de filosofia, com apenas 36 anos, ele ardia de ambição política. Ciente de sua semelhança física com o imperador francês, fazia poses napoleônicas. Vaidoso e impulsivo, enquanto Miliukov era frio e calculista, ele ascendeu e apagou-se meteoricamente.

(Richard Pipes, História Concisa da Revolução Russa, Bestbolso, Rio de Janeiro, 2015, pp.97-100)








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