quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A claraboia e o holofote #31 (XIII)







Cenas da Revolução de 17



cena VIII



Kornilov



"The reminscences of my childhood 
in Simbirsk connect me 
with the Lenin (Ulianov) family. 
In my youth fate brought me 
together with Korniloff."

Kerensky, The Catastrophe






[O  militar golpista de direita retratado por Kerenski]




A capital do Turquestão Russo era, acima de tudo, um centro militar. Muitas das figuras principais da Grande Guerra, particularmente os oficiais do Estado-Maior, serviram em algum momento de suas carreiras em Tashkent. Entre elas estava o jovem capitão Kornilov, que chegou a Tashkent imediatamente após sua graduação na Academia Militar. De compleição magra, esbelto e rijo, com olhos amendoados à maneira dos calmucos, Kornilov era de origem simples. (“Eu sou o general Kornilov, camponês, filho de um cossaco” escreveu o futuro general rebelado em uma das suas proclamações ao povo). O general Kornilov passava pouco tempo  nos salões da moda, embora suas portas estivessem sempre abertas para qualquer oficial do Estado-Maior, e não tinha gosto pelas damas nem pelas rodas sociais.  Era considerado um bocado tímido e até um tanto “bárbaro”.

Logo o capitão Kornilov se tornou o assunto da capital. Tendo dominado um dos dialetos locais, o capitão se lançou a um empreendimento corajoso. Sozinho, disfarçado de mercador nativo, ele entrou no estado-tampão entre o Turkestão e a Índia Britânica, nessa época o coração do Afeganistão, território proibido para todos os estrangeiros, em especial os militares. No seu retorno a Tashkent, o jovem capitão se tornou o herói do momento. Contudo, ele não se deixou levar pelas perspectivas de sucesso social. Logo ele surpreendeu novamente a “alta sociedade” da capital provincial ao casar-se com a filha de um oficial de baixa patente. Isso já era demais: as portas da sociedade se fecharam para ele!

Muitos anos depois, quase na véspera de sua revolta contra o Governo Provisório, o General Kornilov, Comandante-em-chefe, tomou café da manhã comigo no Palácio de Inverno. Depois de uma conversa bastante tensa em meu escritório, tivemos um bate-papo leve no momento do café.

“Você provavelmente não se lembra de mim”, disse o general Kornilov em tom jocoso. “Eu costumava visitar a sua família e até dançar em sua casa em Tashkent”.

“É claro que ninguém se esqueceria disso”, respondi, relembrando a impressão produzida pela sua ousada expedição ao Afeganistão.

Kornilov permaneceu toda a sua vida um homem de gostos simples, um homem do povo. Não havia nele nada de um burocrata hereditário ou de um aristocrata latifundiário. Aliás as três figuras do movimento “branco” – Kornilov, Alexeiev e Denikin – eram todas de origem humilde e abriram seu caminho até o topo da hierarquia militar pelos seus próprios esforços. Por serem pobres, eles experimentaram todos os fardos de uma carreira de oficial no antigo regime. Todos os três eram decididamente hostis aos elementos privilegiados no exército, representado pelos Guardas. Todos os três tiveram um brilhante registro na Academia Militar. Todos os três fizeram avanços rápidos durante a Guerra, que arruinou tantas carreiras brilhantes, aquele tipo de avanço promovido nos círculos da corte e nas antessalas ministeriais.

Já em 1915, Alexeiev chegou ao Quartel-General como chefe do Estado-Maior do Comandante-em-chefe, o czar Nicolau II. A eclosão da Revolução encontrou Denikin e Kornilov no front. Ambos fizeram um trabalho notável em todas as operações no front da Galícia. Em uma operação desafortunada, no qual mostrou toda a sua ousadia e bravura, Kornilov foi feito prisioneiro pelos austríacos. Sua fuga audaciosa e seu retorno espetacular às linhas russas se tornaram uma das fontes de uma espécie de lenda korniloviana, que não chegou a alcançar, porém, as grandes massas populares e a base do exército.

De todos os três futuros líderes do Exército Branco, Kornilov era o menos talhado para o trabalho político. Do outro lado, o general Alexeiev tinha considerável perspicácia política, mas era demais para um político. Em ciência militar, Kornilov não era um estrategista, mas somente um tático, o que correspondia inteiramente à sua natureza impulsiva e irrefletida, dada a não perder tempo em considerações nos momentos de perigo e agindo com ousadia, rápido como um relâmpago e esquecido das possíveis consequências.

Aparentemente foi exatamente essa características de grande determinação e zelo, nem sempre desejáveis em líderes militares responsáveis, o que impediu a ascensão de Kornilov. Até a Revolução, ele permaneceu na sombra. Depois da Revolução, sua carreira se desenvolveu contrariamente à vontade de seus superiores militares imediatos. Sua própria indicação nos primeiros dias da Revolução como comandante do distrito militar de Petrogrado não conseguiu obter o apoio do general Alexeiev. Contudo, no seu posto o general Kornilov se mostrou inteiramente fraco, e não conseguindo lidar  com a guarnição de Petrogrado, ele retornou para o front em maio.

Imediatamente antes da sua renúncia como ministro da guerra, Gutchkov queria indicar Kornilov comandante do front noroeste, mas encontrou uma forte desaprovação do general Alexeiev, que, com a ameaça de sua renúncia, obrigou Gutchkov a abandonar essa intenção. Kornilov se tornou então comandante do 13º exército na Galícia, onde Zavoiko o encontrou.

Quando, na época do começo da contra-ofensiva alemã na Galícia, eu sugeri ao general Brusilov, comandante-em-chefe, a remoção do obviamente incompetente general Koutor e a sua substituição como comandante do front da Galícia pelo general Kornilov, eu encontrei em Brusilov a mesma oposição que Gutchov tinha encontrado em Alexeiev.  Mesmo assim, Kornilov foi indicado para o posto. Contrariando essa oposição das autoridades militares, o general Kornilov foi nomeado por minha sugestão, em primeiro de agosto, comandante-em-chefe do exército russo no lugar de Brusilov, que perdeu sua vontade de comandar.

Eu apresentei esse relato da carreira do general Kornilov para que o leitor possa entender os eventos que se seguiram e possa imaginar porque eu, até o último momento, não podia nem poderia ver no general Kornilov um dos conspiradores, a despeito de todas as indicações de uma conspiração militar em preparação contra o Governo Provisório e da grande quantidade de evidências que eu reuni a respeito disso. Ao içá-lo ao posto mais alto do exército, face à oposição de seus superiores e da sua impopularidade entre a esquerda política, ao ignorar suas declarações extremamente indisciplinadas a respeito do Governo Provisório e, ao demonstrar em todas essas ocasiões muita paciência, acreditei firmemente que o soldado incomparavelmente corajoso não se envolveria num esconde-e-esconde político e não atiraria de emboscada.

Para grande infortúnio da Rússia foi o que aconteceu.

(Alexander F. Kerensky, The Catastrophe: Kerenky's own story of the Russian Revolution, D. Appleton and Company, New York, 1927)











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