terça-feira, 7 de novembro de 2017

A claraboia e o holofote #31 (XVI)







Cenas da Revolução de 17



cena XI



A tomada do poder





[O que John Reed perdeu enquanto dormia]


Na quarta-feira, dia 7 de novembro, levantei-me muito tarde. A Fortaleza de Pedro e Paulo dava o tiro do meio-dia quando eu descia pela Avenida Niévski. Fazia um frio úmido e irritante. As portas do Banco do Estado estavam fechadas e guardadas por soldados com baionetas caladas.
- De que lado estão vocês? – perguntei. – Do governo?
- Já não mais mais governo, Slava Bogu! (graças a Deus) – respondeu um deles, com uma risada.
Foi tudo o que consegui saber. Os bondes passavam correndo pela Avenida Niévski, com homens, mulheres e crianças pendurados nos balaústres. As lojas estavam abertas e a multidão na rua parecia menos alarmada do que no dia anterior.



[Uma página perdida de Kafka]

Dirigi-me, então, para o Palácio de Inverno, seguindo a avenida Admiralteiski. Todas as entradas do Praça do Palácio estavam guardadas por sentinelas. A oeste, a não ser alguns soldados transportando pedaços de madeira, do pátio para a porta principal, tudo o mais permanecia tranquilo. Impossível saber se as sentinelas eram a favor do governo ou dos sovietes. Os papéis que obtivera no Smólni não serviam para nada. Resolvi, então, dar um golpe de audácia. Avancei com ar importante até a fileira de guardas e, exibindo meu passaporte norte-americano, disse em tom enérgico: "Serviço Oficial", e consegui passar. No saguão do palácio, estavam os mesmos porteiros de sempre, que gentilmente me desembaraçaram do chapéu e do capote. Subi. No corredor, sombrio e lúgubre, despojado de seus tapetes, passavam criados sem saber o que fazer. Diante da porta de Kerenski, estava um oficial ainda jovem, mordendo o bigode nervosamente. Indaguei se era possível entrevistar o presidente do conselho. Juntou os calcanhares, inclinou-se e respondeu-me em francês:
- Sinto muito, mas não é possível. Aleksandr Fiódorovitch está muito ocupado neste momento...
Depois, examinando-me, acrescentou:
- Na verdade, agora não está aqui.
- Onde poderei encontrá-lo?
- Partiu para a frente de combate... E, como seu automóvel estava sem gasolina, fomos obrigados a pedi-la emprestada no Hospital Inglês...
- E os ministros?
- Estão reunidos em sessão, mas não sei exatamente em que sala.
- Saberá dizer-me se é verdade que os bolcheviques vêm para cá?
- Sem dúvida. Não devem tardar. Espero, de um momento para outro, um telefonema anunciando sua chegada. Mas estamos preparados. Os junkers estão no palácio. Ali atrás daquela porta.
- Pode-se entrar?
- Não, impossível. É proibido.



[É uma loucura, uma loucura!]

Chegamos ao Smólni, cuja fachada maciça estava toda iluminada. Das ruas mergulhadas na escuridão chegavam sombras de forma imprecisa, movendo-se com precipitação. Passavam automóveis e motocicletas. Um enorme carro blindado, cor de elefante, avançava, buzinando, com duas bandeiras vermelhas nas portinholas. Fazia frio. Os soldados vermelhos tinham acendido uma fogueira ao lado da grade. Na parte de dentro, à luz do fogo, as sentinelas decifraram com dificuldade nossos passaportes e nos examinaram. (...)
Fiz Kamenev parar. Pequeno, movimentos vivos, rosto largo e expressivo, quase sem pescoço, Kamenev traduziu-me rapidamente para o francês a resolução que acabava de ser aprovada:
“O Soviete dos Deputados Operários e Soldados de Petrogrado apela a todos os operários de todos as partes da Rússia para que se coloquem com toda energia e com a maior abnegação a serviço da revolução operária e camponesa. O soviete declara ter certeza de que os operários das cidades, aliados aos camponeses pobres, saberão forjar uma disciplina inflexível e assegurar a ordem revolucionária mais perfeita, sem a qual será impossível fazer triunfar o socialismo. O soviete igualmente está seguro de que o proletariado dos países da Europa Ocidental auxiliará o proletariado russo na transformação socialista da Rússia, até a vitória completa e definitiva do socialismo em todo o mundo”.
- Então vocês acham que a partida está ganha? perguntei. Kamenev encolheu os ombros.
- Ainda há muita coisa por fazer, muita coisa mesmo. Estamos apenas começando.
Encontrei Riazanov no vestíbulo. Era vice-presidente do Conselho dos Sindicatos. Estava taciturno e mordia a todo instante o bigode grisalho:
- É uma loucura, uma loucura! – gritava. – Os trabalhadores da Europa não vão se mover. Toda a Rússia...
Levantou desesperadamente os braços para o céu e afastou-se rapidamente. Riazanov e Kamenev opunham-se à insurreição e tinham sido, por isso, severamente criticados por Lenin.
A sessão foi decisiva. Em nome do Comitê Militar Revolucionário, Trotsky declarou que o Governo Provisório não existia mais.
- Todos os governos burgueses – dizia ele – têm a característica de sempre enganar o povo. Nós, o Soviete dos Deputados Operários, Soldados e Camponeses, vamos fazer uma experiência sem precedentes na história. Vamos criar um governo cuja finalidade única será satisfazer as necessidades dos operários, dos soldados e dos camponeses.
Lenin foi recebido com imensa ovação. Profetizou a revolução social no mundo inteiro. E Zinoviev gritou:
- Hoje pagamos uma dívida ao proletariado internacional. Assestamos terrível golpe na guerra. Desferimos terrível golpe em todos os imperialismos, particularmente no imperialismo alemão, em Guilherme II, o Carrasco...
Logo depois, Trotsky anunciou que haviam sido enviados telegramas comunicando a vitória a todas as frentes do Exército. Mas até aquele momento nenhuma resposta chegara. Falava-se que tropas marchavam sobre Petrogrado. Era preciso enviar uma delegação ao seu encontro para fazê-las conhecer a verdade.
Alguém gritou:
-Vocês não esperaram que o Congresso Pan-Russo dos Sovietes manifestasse sua vontade!
Trotski respondeu friamente:
- A vontade do Congresso Pan-Russo dos Sovietes foi precedida pela sublevação dos operários e soldados de Petrogrado.


[Não fumem, camaradas!]

Era sufocante a temperatura da sala, apenas aquecida pelo calor de centenas de corpos suados. Espessa nuvem azulada elevava-se dessa multidão, tornando o ar irrespirável. De vez em quando, um dos presentes subia à tribuna e pedia aos camaradas que não fumassem. Então toda a sala, inclusive os fumantes, começava a gritar: - Não fumem, camaradas! – E todos continuavam fumando.


 [O nascimento de uma nação]

Mas, de repente, ouviu-se uma nova voz, mais profunda, dominando o tumulto da assembleia. Era a voz surda do canhão! Todos os olhares voltaram-se ansiosamente para as janelas. Uma espécie de febre ardente dominou a assembleia.
Martov pediu a palavra. E, com voz rouca, disse:
- Camaradas! A guerra civil já começou. É necessário discutir em primeiro lugar a solução pacífica da crise. Tanto por questões de princípios, como por motivos políticos, devemos começar a sessão de hoje discutindo com a maior urgência os meios de fazer cessar a guerra civil. Nossos irmãos estão morrendo nas ruas... neste momento em que se procura resolver a questão do poder, antes da abertura do Congresso dos Sovietes, por meio de uma conspiração militar organizada por um único dos partidos revolucionários – (Durante alguns instantes o trovejar da artilharia abafou-lhe as palavras) - ... Todos os partidos devem encarar este problema de frente. A primeira questão que o Congresso vai discutir é a do poder. Mas ela já está sendo resolvida nas ruas, pela força das armas... Temos a missão de criar um poder que toda democracia possa reconhecer. Se este congresso quer ser o porta-voz da democracia revolucionária, não deve ficar de braços cruzados ante a guerra civil que ameaça fazer explodir uma perigosa contra-revolução. Só há uma solução pacífica para a crise atual: a formação de um poder com a participação de todas as organizações democráticas num bloco unido... Proponho que se eleja uma delegação para negociar com todos os partidos e organizações socialistas.
O surdo rimbombar do canhão continuava a fazer estremecer os vidros das janelas, com intermitências regulares, enquanto os deputados discutiam e se insultavam.
Foi assim, sob o troar da artilharia, na obscuridade, no meio de ódios, de medo e da mais temerária das audácias, que nasceu a nova Rússia.

(John Reed, Os dez dias que abalaram o mundo, capítulo IV, Círculo do Livro, s/d pp. 98, 101-102, 107-110)








25 октября

Na terça-feira, dia 7 de novembro de 2017, levantei-me cedo. A estação Vila Madalena havia aberto há pouco quando eu desci a avenida Heitor Penteado. Fazia um frio úmido e irritante. As portas do Banco do Brasil estavam fechadas. 
Na esquina havia alguns policiais.
- De que lado estão vocês - perguntei - Do governo?
- Já não mais governo, graças a Deus - respondeu um deles, com uma risada.
Foi tudo o que eu consegui saber. Entrei no metrô e me dirigi ao local onde diariamente dispenso um pouco do meu sangue, do meu tempo e da minha vida para pagar minhas contas. Coloquei os auriculares e ouvi a Internacional cantada pelo coro do Exército Vermelho. Os meus camaradas de transporte público estavam taciturnos. 
Em frente ao SESC Pompeia, manifestantes do Movimento Brasil Livre iriam se reunir à tarde para apontar crucifixos e rosários contra a efígie da filósofa Judith Butler. No Palácio do Planalto, o Governo Provisório continuaria a sua luta desesperada para se manter no poder.

A Revolução Russa completa cem anos hoje.

Cem anos.





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abertura: Eugêne Laermans, A bandeira Vermelha, 1893 
Musée Fin-de-Siecle, Bruxelas







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