A Guerra dos Brows
em 6 perguntas e respostas
There is not even silence in the mountains
But dry sterile thunder without rain
There is not even solitude in the mountains
But red sullen faces sneer and snarl
From doors of mudcracked houses
T.S. Eliot, The Waste Land
Os brows designam
os três níveis de cultura nas sociedades modernas: a alta cultura, a cultura
média e a baixa cultura (ou cultura de massa). As expressões highbrow,
middlebrow e lowbrow se tornaram correntes no mundo anglófono a partir
da década de 1920 e foram bastante utilizadas até o começo da década de
1960. Ao longo dessas décadas, os defensores da alta cultura, como
Virgínia Woolf, Aldous Huxley, Sinclair Lewis, George Orwell, Theodor W. Adorno,
Clement Greenberg e Dwight MacDonald fizeram violentos ataques à cultura de
massa, por sua vulgaridade conformista, e à cultura média, por sua
mediocridade pretensiosa e auto-satisfeita. Por sua vez, os defensores da alta
cultura eram criticados nos meios de comunicação como intelectuais elitistas, avessos à democratização do conhecimento (que seria beneficiada pelos clubes do livro, pelas Seleções do Reader’s Digest, pelas obras de divulgação de Will
Durant etc.) e aos prazeres do homem simples (ou seja, a música leve, o rádio,
a televisão, o esporte, o churrasco, a cerveja etc.)
A
partir dos anos de 1970, a distinção dos brows foi cada vez mais rejeitada em
nome de critérios de correção política até que, nos anos de 1990, começou a ser
recuperada – para além do seu aspecto polêmico e acusatório - quando os métodos
da historiografia das mentalidades passaram a inspirar pesquisas sobre a
cultura norte-americana. Um dos marcos dessa nova abordagem foi The
Making of the Middlebrow Culture, de Joan Shelley Rubin, publicado em 1992.
2. Como cada um dos níveis é
definido?
Cada
um deles pode ser definido tanto pelo grau de elaboração e complexidade do
ponto de vista da produção quanto pelo grau de acessibilidade do ponto de vista
do consumo.
No
nível alto, estão os produtores culturais cujas obras, ao realizar a síntese de
inúmeras e complexas mediações, exercem um efeito transformador sobre o campo
cultural. O consumo dessas obras exige várias condições: vasto capital cultural
acumulado através de um longo período de ócio estudioso (a especialização
técnica é estranha ao nível alto da cultura), postura ascética, gosto pela
solidão, acesso a recursos econômicos e culturais que estão além da maioria das
pessoas, geralmente acompanhado da disposição a renunciar às modalidades
hedonistas de comportamento. A estudiosa britânica Nicola Humble observou que é
próprio da alta cultura a atitude de debruçar-se sobre o texto no momento da
leitura. Trata-se da leitura lenta, anotada e acompanhada de aparato
crítico. É assim que se lê O Capital, de
Marx; A Origem das Espécies, de Darwin; Economia e
Sociedade, de Weber; Ser e Tempo, de Heidegger. Também é assim
que se faz a leitura erudita da grande tradição literária ocidental ou o estudo
das formas e práticas artísticas.
No
nível intermediário, estão os produtores culturais que primam pela
generalização, pela versatilidade, pela engenhosidade ou pela apreensão
intuitiva da natureza humana ou da vida social. A cultura média é avessa às
mediações numerosas, complexas e entrelaçadas valorizadas pela alta cultura.
Nicola Humble comenta que a atitude própria da leitura de nível médio é o
relaxamento físico de quem lê na rede, na cama ou na poltrona, mergulhado no
enredo e, muitas vezes, identificando-se com um dos personagens. A postura do leitor apaixonado de romances pode ser transposta para o leitor
de obras de divulgação, que busca um enriquecimento cultural prazeroso e um ócio proveitoso. O enriquecimento cultural, para o indivíduo de cultura média, consiste na aquisição de noções gerais que possam valer como moeda sonante nas ocasiões em que é preciso afastar a suspeita de que se é ignorante, noções que são obtidas pela redução das obras a uma “ideia
principal”, isto é, a fórmulas, tópicos, regras básicas, divisões binárias,
receitas, esquemas fáceis de serem entendidos, retidos na memória e comunicados. Esse procedimento pode
ser feito de maneira legítima: é o caso da transposição didática, ou de
maneiras ilegítimas: é o caso da tolice e das idées recues ridicularizadas por Flaubert. De qualquer maneira, a cultura
média, com seu gosto pelos esquemas, pela sua rapidez e pela sua comunicabilidade, se presta melhor às redes sociais do
que a alta cultura, cuja lentidão e caráter hermético repelem as práticas de
compartilhamento em rede.
No
nível mais baixo, que é o da cultura de massa, estão os produtores que dispõem
apenas de um pequeno repertório de padrões, satisfatórios justamente por não
quebrarem as expectativas e favorecerem a previsibilidade e a
compreensão instantânea. Os consumidores da cultura de nível baixo querem
diversão imediata a baixo custo.
3.
Essa distinção tem significado social?
A
divisão dos três níveis culturais é um aspecto da modernização nas sociedades
de classes. À medida que as conquistas sociais do movimento operário se
consolidavam, nas décadas de 1920-30, no reconhecimento legal de menores jornadas de trabalho e do descanso remunerado, ganhava força um ramo novo de atividades voltadas para o lazer e o entretenimento: tratava-se da indústria cultural que dava os seus primeiros passos. Todavia, por parte de muitos intelectuais, educadores e lideranças sindicais havia a expectativa de que o tempo livre propiciasse ocasião para o aprimoramento educacional dos menos instruídos. Essas duas
demandas contraditórias – propiciar evasão e promover o aperfeiçoamento pessoal – eram
satisfeitas de maneiras diferentes segundo as classes sociais e adquiriam as mais diversas formas: a mania das palavras-cruzadas, o almanaque do Biotônico Fontoura, as palestras radiofônicas, a criação de bibliotecas circulantes, o esforço editorial de Monteiro Lobato, as aulas noturnas nas sedes dos sindicatos, as enciclopédias vendidas de porta em porta etc.
Num artigo de 1949, notável como peça de humor e
como sociologia do habitus, Russell Lynnes descreveu os três níveis como faixas de
consumo que corresponderiam à partilha objetiva dos bens culturais nas
diferentes classes sociais e às atitudes subjetivas dos consumidores em relação
a esses bens. Assim, os níveis culturais seriam resultado tanto da posição de
classe (definida por renda e por escolaridade) quanto da inserção em certos
grupos de status (por exemplo, os que apreciam vinhos sentados em suas
cadeiras Barcelona, ou os que tomam cerveja barata diante da TV num sofá
comprado em liquidação).
Que
a equivalência entre níveis culturais e classes sociais não fosse perfeita,
Lynnes já o sabia, quando lembrou que a cultura highbrow não
estava vinculada à classe alta (e posso acrescentar que se trata de um fato
facilmente comprovável pois os ricos homens de negócio gostam de aparecer como patronos
da alta cultura pelas mesmas razões que os usurários medievais gostavam de aparecer como doadores da Igreja). Pode-se dizer mais: os pobres não são
necessariamente lowbrows e a classe média não é
necessariamente middlebrow, mesmo porque é geralmente nas classes
médias que se encontram os grandes produtores da alta cultura. Talvez seja
melhor dizer que o que Russell Lynnes percebeu não foi a correspondência entre
os níveis sociais e a estrutura tripartida das classes no capitalismo do século
XX, mas sim a homologia entre a partilha de bens culturais e a partilha de
renda e de escolaridade. A verdade não era que a cultura highbrow fosse
a cultura dos ricos, mas sim que a cultura highbrow, no seu
desprezo pela cultura middlebrow e lowbrow,
emulasse a intolerância, a exclusão e o autoritarismo com que a elite econômica tratava os moradores dos andares de baixo. O mesmo se passaria em relação à
cultura middlebrow, por um lado fascinada pelos bens da alta
cultura, por outro horrorizada diante da vulgaridade demasiado comercial da
cultura de massas.
Portanto,
a guerra dos brows seria uma forma da luta de classes, mas uma forma distorcida
e deformada pelo fetichismo de uma nova mercadoria que era a “cultura”, a
oferta de bens simbólicos materializados em produtos e serviços colocados à
disposição pela indústria cultural, que tinha, por sua vez, a capacidade de estender sempre e
cada vez mais o círculo do que é chamado de cultura, a ponto de abarcar todas
as práticas humanas. O problema é que essa extensão ilimitada do âmbito da cultura não se fazia sem prejuízo dos bens tradicionalmente associados à alta cultura, elencados nos cânones e referendados pelos currículos escolares. É esta situação que Allan Bloom, em The Closing of the
American Mind, e Alain Finkielkraut, em La Défaite de la Pensée,
ambos de 1987, tinham em vista quando denunciavam que um concerto de rock tivesse mais importância do que um curso sobre Aristóteles ou que um par de
botas pudesse valer tanto quanto as obras de Shakespeare. Quando tudo se torna cultura, quando a
indústria cultural abarca todo o fazer humano, a esfera da alta cultura
passaria a ser ameaçada pela nova barbárie representada pelo relativismo cultural
(queixa de Bloom) ou pelo multiculturalismo (queixa de Finkielkraut). Mas talvez
seja perigoso ir tão longe. Tanto em Bloom quanto em Finkelkraut, as lamúrias
indignadas diante do gosto pobre dos jovens da época (eu era um deles!) ou diante dos solecismos cometidos pelos universitários (resultado óbvio e previsível de qualquer expansão real do número de vagas nas universidades) se juntam com um esforço
por afirmar a supremacia do cânone cultural do Ocidente como o único legítimo, com a mesma certeza como outrora se afirmava a supremacia racial dos europeus e o fardo do homem branco. Essa veia
antidemocrática e reacionária que salta em certos críticos culturais (ela é
visível nas têmporas de Dwight MacDonald, por exemplo), é um mal que devemos
ter o cuidado de evitar, ao mesmo tempo que reconhecemos que esses críticos
tocaram em problemas legítimos.
A
guerra dos brows, como eu disse acima, é uma versão deformada da luta de
classes. Às vezes, deformada no limite da inversão. É preciso entender que a
defesa dos bens e práticas da alta cultura é, na verdade, tão solidária da
verdadeira democratização cultural quanto a defesa intransigente das formas
legítimas de transposição didática (próprias do middlebrow) ou o
reconhecimento do status cultural das formas populares e étnicas de arte, em
contraposição e em resistência às formas padronizadas da indústria cultural.
4. Que relação existe
entre o nível de instrução, a inserção social e a cultura middlebrow?
O
sistema educacional reproduz as relações das classes sociais com os bens
culturais, mesmo quando se trata de um sistema em aparência universal e
igualitário na transmissão dos conteúdos escolares como é o da França. No
começo dos anos 1970, Nicos Poulantzas argumentava que a formação escolar
francesa – baseada em avaliações de mérito escolar no cumprimento das condições
de um currículo afastado do mundo do trabalho – tinha pouco efeito sobre a
burguesia e sobre os trabalhadores, mas era de molde a prover a formação de uma
pequena-burguesia ansiosa por distinguir-se dos trabalhadores e identificar-se
com a classe dominante. A disfuncionalidade da escola se mostrava plenamente
funcional em reproduzir e reforçar a divisão de classes e a situação ancilar da
pequena-burguesia em relação à grande burguesia. Isso aconteceria tanto no caso
da formação bem-sucedida dos técnicos e engenheiros quanto no caso da
formação ratée: “Se uma secretária datilógrafa titular
do 'bac' se sente frustrada em suas expectativas, não é evidente que se
aproximará, por isso, da classe operária: é bem possível que sua ‘proximidade’
com a classe operária, articulada à sua qualificação escolar, reforce nela as
práticas de distinção em relação à classe operária” (Les
classes sociales dans le capitalisme d’aujourd’hui, p. 286).
Para Bourdieu, à posição
de classe pequeno-burguesa corresponde uma cultura mediana, cujo modelo não é a
cultura escolar legítima, mas a cultura assistemática, lacunar e avulsa dos autodidatas. Essa cultura exibe a enorme distância existente entre o simples reconhecimento extasiado de alguns bens da alta cultura e o autêntico conhecimento desses bens (que exige a capacidade de compreendê-los e de
apreciá-los). O pequeno-burguês revela seu caráter middlebrow justamente
na sua "boa vontade cultural": por não ser capaz de compreender
e, desta forma, avaliar criticamente as obras da alta cultura, o pequeno-burguês se
contenta em reconhecê-las e admirá-las docilmente, esvaziadas que estão de qualquer conteúdo
preciso e reduzidas ao name dropping inócuo ou ao cluster de clichés.
“O pequeno-burguês é reverência diante da cultura” (A distinção, p. 300), porém, essa reverência se manifesta de maneira equivocada uma vez que a cultura pequeno-burguesa toma os produtos de vulgarização e os símiles como exemplares da cultura legítima. “Diferentemente da vulgarização legítima – ou seja, escolar – que, ao proclamar abertamente seus objetivos pedagógicos, pode deixar aparecer tudo o que o esforço impõe para abaixar o nível da produção, a vulgarização habitual não pode, por definição, apresentar-se tal qual ela é.” (A distinção, p. 303). Enquanto a vulgarização feita através da transposição didática é uma simplificação legítima justamente por não deixar esquecer que há um universo mais complexo que deve ser alcançado por esforço e aproximações sucessivas, a vulgarização banal de que se serve o pequeno-burguês middlebrow para obter distinção social é apenas promessa de cultura com baixo esforço. Nessa ausência de esforço, a cultura legítima (ou alta cultura) só entra na forma de “referências” (fragmentos, citações ou alusões): “A cultura média deve uma parte de seu encanto, para os membros das classes médias que são seus destinatários privilegiados, às referências à cultura legítima que ela contém e mediante as quais tende e sente-se autorizada a confundir-se com ela”. (A distinção, p. 300). O pequeno-burguês é cúmplice do embuste na medida em que ele aceita alegremente o consumo dos símiles: ele toma o jornalista como pensador, lê o ideólogo como filósofo, vê originalidade e brilhantismo na imitação cediça, aceita como fato o boato, acredita em todas as conspirações. Em suma, é o freguês que habitualmente leva gato por lebre, marca da alodoxia da cultura middlebrow segundo Bourdieu.
“O pequeno-burguês é reverência diante da cultura” (A distinção, p. 300), porém, essa reverência se manifesta de maneira equivocada uma vez que a cultura pequeno-burguesa toma os produtos de vulgarização e os símiles como exemplares da cultura legítima. “Diferentemente da vulgarização legítima – ou seja, escolar – que, ao proclamar abertamente seus objetivos pedagógicos, pode deixar aparecer tudo o que o esforço impõe para abaixar o nível da produção, a vulgarização habitual não pode, por definição, apresentar-se tal qual ela é.” (A distinção, p. 303). Enquanto a vulgarização feita através da transposição didática é uma simplificação legítima justamente por não deixar esquecer que há um universo mais complexo que deve ser alcançado por esforço e aproximações sucessivas, a vulgarização banal de que se serve o pequeno-burguês middlebrow para obter distinção social é apenas promessa de cultura com baixo esforço. Nessa ausência de esforço, a cultura legítima (ou alta cultura) só entra na forma de “referências” (fragmentos, citações ou alusões): “A cultura média deve uma parte de seu encanto, para os membros das classes médias que são seus destinatários privilegiados, às referências à cultura legítima que ela contém e mediante as quais tende e sente-se autorizada a confundir-se com ela”. (A distinção, p. 300). O pequeno-burguês é cúmplice do embuste na medida em que ele aceita alegremente o consumo dos símiles: ele toma o jornalista como pensador, lê o ideólogo como filósofo, vê originalidade e brilhantismo na imitação cediça, aceita como fato o boato, acredita em todas as conspirações. Em suma, é o freguês que habitualmente leva gato por lebre, marca da alodoxia da cultura middlebrow segundo Bourdieu.
5.
O que é a cultura middlebrow no que tem de ilegítima,
isto é, afastada das formas autênticas de transposição didática?
É
o resultado de uma cultura escolar essencialmente disfuncional que, na sua
ânsia de distinção, recusa os sinais de vulgaridade e busca os sinais de
cultura legítima. Esses sinais de cultura legítima – geralmente associados a
conhecimentos de filosofia, literatura, história e arte – são adquiridos de
modo lacunar, à maneira dos autodidatas, cujo único móvel é a curiosidade (por
oposição à problematização, que é o móvel da cultura legítima). O conhecimento
se torna, assim, simples agregação de elementos avulsos obtidos nos acasos de
livraria ou dos meios de comunicação, ou por mero colecionismo de fatos diversos,
bem diferente do labor contínuo e sistemático da cultura legítima. As
formas básicas dessa cultura - como o almanaque, a revista, o jornal, as redes de compartilhamento na internet - são aquelas em que a miscelânea de fatos mais ou menos apócrifos e de opiniões mais ou menos autorizadas toma o lugar do esforço de compreensão abrangente. Se a cultura middlebrow tem
as qualidades da comunicabilidade e da rapidez, paga o preço de toda linguagem
que não tomou as medidas profiláticas que caracterizam a alta cultura, que é o risco de cair na tolice e no
falar-merda.
A
cultura middlebrow, precisamente por seu caráter alodoxo, não
consegue ser reflexão sobre si mesma, mas apenas reflexo consagrador dos
valores consagrados pelo momento.
6. Quais
as relações entre essa cultura middlebrow e o filistinismo?
Dwight
MacDonald apontava que a cultura middlebrow era a grande
ameaça à alta cultura, na medida em que pretendia se fazer passar por ela.
Todavia, enquanto a alta cultura era marcada pela pesquisa estética e pela
autonomia, a cultura middlebrow era uma cultura marcada pela
posse de certos produtos consagrados segundo um cânone definido por mediadores
culturais: os críticos, os editores, os ideólogos, os jornalistas de
prestígio, os “formadores-de-opinião”, os spin doctors e
os pundits. Sem autonomia crítica, a cultura middlebrow estaria
condenada à reprodução de cânones, das listas dos melhores e dos mais importantes e acabaria por mumificar-se no
conservadorismo, na vulgarização e na rotinização das conquistas da alta
cultura.
Se,
nesse aspecto, a cultura middlebrow é inegavelmente filistina, ela também o é
no que se refere à sua moralidade. Trata-se de um aspecto em que eu devo me
aventurar quase totalmente desabrigado pelos estudiosos, uma vez que – com exceção de Nietzsche
– ninguém se dedicou seriamente a investigar o substrato moral do filistinismo.
O pequeno-burguês middlebrow, não importa a sua posição política, é
um poço de exigências morais. Como
“bela alma” que é, acredita que suas exigências morais são universalmente válidas e, por si mesmas, possam eximí-lo de qualquer legitimação racional de suas ações. A ideia de que a moralidade
está autorizada a prescindir da inteligência, da cultura, do bom-senso, dos
meios de avaliação racional sempre constituiu o pior aspecto do jacobinismo, assim como de
diversas modalidades de anarquismo e de socialismo, mas também de várias
tendências da direita, tanto da velha quanto da nova. A inflamação do nervo
moral por causa das justas demandas de um punhado de homens bons (sempre pequeno-burgueses), que
representam o clamor da verdade em meio à corrupção generalizada é uma doença
que já teria sido debelada se Nietzsche fosse realmente um autor lido e não
apenas um autor reconhecido por um séquito admirativo de middlebrows, que nunca percebem que são o assunto e o alvo dos sarcasmos do pensador idolatrado.
Também
por causa desse filistinismo, que não é algo residual, senão a coisa em sua
essência mesma, o pequeno-burguês middlebrow vê em tudo
assunto para tomadas de decisão do tipo “culpado” ou “inocente”. Essa vontade ativa
de colocar-se como juiz e júri em julgamentos apressados, vontade tão próxima
da moralidade dos linchadores, é o aspecto mais repulsivo do
pequeno-burguês middlebrow, mas totalmente solidário da sua
alodoxia cultural e do seu conhecimento feito de miscelâneas.
Que
esse tipo social profundamente reativo e fundamentalmente infeliz tenha se
convertido no fiel da balança da vida política brasileira, seja na sua forma
lulo-petista, seja na sua forma neodireitista, é uma das infelicidades desse
momento. Que tenhamos que escolher entre Mino Carta e Reinaldo Azevedo, ou
entre Marilena Chauí e Olavo de Carvalho é algo que consterna. Todavia,
não é hora para lamentações. É preciso seguir a investigação. Estamos a
caracterizar os filisteus ressurrectos que emergiram da tumba recentemente. Já
lhe notamos os traços pequeno-burgueses e sua participação nos piores aspectos
da cultura middlebrow. Há, porém, um outro aspecto que temos que
estudar: a natureza do seu conservadorismo que, salvo equívoco, não parece
tributário das formas clássicas conhecidas (todas admiráveis e
respeitáveis), mas sim de partos recentes e de alguns abortos de fundo de quintal.
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O Sobrinho de Enesidemo
4ª ano