domingo, 29 de outubro de 2017

A claraboia e o holofote #31 (XV)





Cenas da Revolução de 17



cena X



Lenin




Durante todo esse período momentoso, Lenin se mostrou maior como estrategista do que como tático. Vivendo escondido primeiro em Helsingfors, depois em Viborg, perto de Petrogrado, chegando na capital apenas em 20 de outubro, dependente da informação dos jornais que lhe chegavam às mãos com algum atraso e dos encontros clandestinos com os membros confiáveis do partido, era natural que seu julgamento fosse falho em relação a alguns detalhes do levante planejado. Ele estava convencido, por exemplo, de que o sucesso seria mais certo em Moscou do que em Petrogrado e recomendava que o levante começasse em Moscou. Na verdade, Petrogrado caiu nas mãos dos bolcheviques quase sem luta, ao passo que vários dias de combate sanguinário foram necessários para conquistar Moscou. (...)

Mas esses eram apenas erros de pouca monta na avaliação dos detalhes, que poderiam ser corrigidos no desenvolvimento da ação. A grandeza indisputável de Lenin como líder revolucionário estava no fato de que ele percebeu imediatamente, após o colapso de Kornilov, que o tempo para a ação tinha chegado, de que ele sustentou sua visão com argumentos políticos de lógica implacável, disparados com paixão revolucionária, e de que ele nunca relaxou sua pressão sobre o Comitê Central do partido (em que alguns membros demonstravam hostilidade ou pouco entusiasmo com a insistência num levante) até que a oposição fosse esmagada e a organização do partido tivesse se alinhado com suas propostas. Aliás todo o conjunto do pensamento político de Lenin e dos traços mais salientes da sua personalidade estão refletidos com espantosa vivacidade nas cartas e panfletos que ele publicou em rápida sucessão naquele momento: “Os bolcheviques devem tomar o poder”, “Marxismo e Insurreição”, “Podem os bolcheviques manter o poder de Estado?”, “A crise está madura” etc.

De maneira geral, o estilo de Lenin não tinha nada de especial nem pretendia ter. Havia, porém, uma eloquência genuína na aspereza, dureza e timbre metálico de muitas frases nesses apelos ao levante. O que poderia ser mais forte, simples e decisivo do que a abertura de sua carta endereçada ao Comitê Central e aos comitês do partido em Moscou e Petrogrado: “Tendo obtido a maioria no Soviete dos Trabalhadores e Soldados em ambas as capitais, os bolcheviques podem e devem tomar o poder do Estado em suas mãos”. Ou o que poderia ser uma avaliação psicológica mais aguda das condições de uma revolução bem-sucedida do que o excerto seguinte de “Marxismo e Insurreição”:  “Uma insurreição deve apoiar-se num momento de virada na história de uma grande revolução, quando é maior a atividade nas fileiras mais avançadas do povo e quando são maiores as hesitações nas fileiras dos inimigos e dos amigos da revolução que se mostram fracos, frouxos e indecisos”.

Estas duas cartas foram lidas e discutidas na sessão do Comitê Central do partido em 28 de setembro. Lenin não apenas esboçava argumentos teóricos para uma tomada armada do poder, mas também um plano de ação bem definido. No entanto, essas cartas tiveram uma recepção fria. (...)

Todavia o momento e a crescente atmosfera revolucionária estavam do lado de Lenin. Em 12 de outubro, ele reforçou seu ponto de vista com outro artigo, “A crise está madura”, que começa com o grosseiro equívoco de que “estamos no limiar de uma revolução proletária mundial” mas faz uma análise correta das condições internas da Rússia, sublinhando pontos como os levantes camponeses que incendiavam o campo, a despeito de Kerensky, um socialista revolucionário, ser o chefe de governo; as tropas finlandesas e a frota do Báltico terem deixado o governo; o testemunho geral de que os soldados não iriam mais lutar; o movimento em direção ao bolchevismo refletido nas eleições municipais de Moscou.

Chama a atenção que durante todo o período crítico de preparo para o risco supremo do levante, Lenin mostrou pouco caso quanto às exigências estritas de disciplina no partido. Ele passou por cima do Comitê Central em mais de uma ocasião, enviando cópias de suas mensagens às organizações partidárias locais, entrando em contato direto com aqueles que ele via como os partidários mais confiáveis da insurreição, certificando-se de que cópias extras de seus apelos chegassem às mãos dos trabalhadores mais ativos ligados ao partido. Trotsky declara que no meio de outubro, Lenin anunciou sua renúncia como membro do Comitê Central “para ter liberdade de promover agitação nas fileiras inferiores do partido e no congresso do partido”. A renúncia não foi aceita e o incidente foi rapidamente encerrado, mas é sintomático do impulso infatigável de Lenin o medo de perder a oportunidade de um levante bem-sucedido. Entre 16 e 20 de outubro, ele mandou uma carta diretamente aos membros dos comitês de Petrogrado e Moscou, cujo conteúdo geral se resume às seguintes frases: “Esperar é um crime. Os bolcheviques não têm o direito de esperar até o Congresso dos Sovietes, eles devem agir imediatamente... Adiar é um crime. Esperar o Congresso dos Sovietes é um apego infantil à formalidade, é um vergonhoso apego à formalidade, uma traição da Revolução”.

Nenhuma imagem do pensamento de Lenin nessa época seria completa sem uma menção ao seu notável panfleto “Podem os bolcheviques manter o poder do Estado?”, amplamente dedicado a refutar os argumentos apresentados por Maxim Gorky no seu jornal Novaya Zhizn (Vida Nova): “Depois da revolução de 1905, 130.000 senhores de terra governaram a Rússia. E 240.000 membros do partido bolchevique não poderiam governar a Rússia em nome dos interesses dos pobres e contra os ricos? ... O Estado é uma concepção de classe. O Estado é um órgão ou máquina de violência de uma classe contra outras. Na medida em que ele é uma máquina de tirania da burguesia sobre o proletariado, só pode haver um único slogan proletário: a destruição do Estado. E quando o Estado for proletário, quando ele for uma máquina de tirania do proletariado sobre a burguesia, então seremos a favor da autoridade firme e do centralismo, de maneira completa e sem reservas... Uma revolução popular, real e profunda é um processo incrivelmente tormentoso de morte da velha ordem social e nascimento da nova, de uma nova maneira de viver para dezenas de milhões de pessoas. A revolução é a mais feroz, aguda e desesperada luta de classes e guerra civil. Nenhuma grande revolução na história se realizou sem guerra civil... E quando o último dos trabalhadores não-qualificados, cada cozinheira, cada lavrador empobrecido ver, não apenas pelos jornais, mas com os próprios olhos, que o poder proletário não rasteja diante dos ricos, mas ajuda os pobres, que não foge das medidas revolucionárias, que toma o excedente dos ociosos para dá-los aos famintos, que assenta os sem-teto nos apartamentos dos ricos, que obriga os ricos a pagar pelo leite, mas não lhes dá nenhuma gota de leite até que as crianças das famílias mais pobres sejam alimentadas, que transfere a terra para quem labuta, que põe as fábricas e os bancos sob o controle dos trabalhadores, que pune séria e imediatamente os milionários que escondem suas riquezas,  quando os pobres virem e sentirem isso, então nenhum poder dos capitalistas e dos kulaks, nenhum poder capital financeiro internacional, que roubou milhões, poderá vencer a revolução do povo. Pelo contrário, é a revolução que conquistará todo o mundo, por causa dos levantes socialistas que amadurecem em todos os países”.

Se a esse feroz evangelho da luta de classes adicionarmos o toque de acre desprezo com que Lenin se refere, neste panfleto, a um engenheiro ex-bolchevique que levantou a objeção de que os trabalhadores da Rússia eram muito ignorantes e atrasados para fazer uma revolução exitosa (“Ele estaria pronto a reconhecer a revolução social se a história conduzisse a isso de maneira tão pacifica, tranquila, suave e exata quanto um trem expresso alemão que se aproxima da estação e o condutor abre as portas anunciando: Estação Revolução Social. Desçam todos”), nós teremos uma boa visão psicológica da condição interior do homem que logo iria derrubar o instável poder de Kerensky.

(William Henry Chamberlain, The Russian Revolution, Volume One, The Universal Library, New York, 1977, pp. 287-290)